Cartas de Cuba (Excerto do 1.º capítulo)

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«Cinquenta e sete anos de idade, nível escolar universitário, sem antecedentes penais, mas de péssima conduta por frequentar a companhia de antissociais.» 

Acto de acusação a Raúl Rivero

Havana,4 de Abril de 2003

 

 

 

A folha de papel com aquele e-mail recebido às 13h18 do dia 30 de novembro de 2004 esteve pendurada com fita adesiva ao lado da mesa de trabalho de Miguel Rivero, na sua casa de Lisboa, durante tanto tempo que a cor das tintas começava já a desvanecer-se. Tinha apenas duas palavras, mas representava o desfecho feliz por que tantas e tantas pessoas tinham lutado, muitas delas sem ousarem acreditar que fosse possível, mas fazendo-o por imperativo de consciência e de solidariedade: Raúl libre. Sim, era verdade: o poeta e jornalista cubano Raúl Rivero tinha saído da prisão, depois de cumprir 19 meses dos 20 anos a que fora condenado. 

***

Conheci Miguel Rivero Lorenzo em finais de Dezembro de 1992, em Praga, na então ainda Checoslováquia, durante uma viagem ao serviço do Diário de Notícias, de Lisboa. Tivemos nessa altura uma longuíssima conversa que incidiu principalmente sobre assuntos políticos daquele país centro-europeu e da região em geral, tema que eu tratava profissionalmente e que me levava a Praga pela segunda vez no mesmo ano. A queda do Muro de Berlim tinha ocorrido escassos três anos antes, os países socialistas do Leste da Europa viviam os seus processos de adaptação ao pluripartidarismo e à economia de mercado e a Checoslováquia estava a poucos dias de se dividir em dois Estados. E falámos de Cuba, inevitavelmente.    

Miguel Rivero chegara àquela belíssima cidade da Europa Central em setembro de 1989, na qualidade de representante da União de Jornalistas Cubanos (UPEC) junto da Organização Internacional de Jornalistas (OIJ), mesmo a tempo de viver a Revolução de Veludo, e as dúvidas começaram a tomar forma na sua mente. As perguntas e as comparações eram inevitáveis quando presenciava aquelas manifestações que transbordavam da Praça Venceslau, quase sempre ordeiras, com centenas de milhares de pessoas a rejeitarem o regime socialista que as governara durante mais de quatro décadas e a imporem a uma Assembleia Federal ainda dominada pelo Partido Comunista a eleição do dramaturgo e dissidente Václav Havel como Presidente da República.

Nasceu em Villa Clara, no centro de Cuba, em 1939, numa família humilde, mas onde sempre imperou a obsessão materna em que aquele filho único estudasse. «Para ignorante, já chego eu», dizia ela com frequência. A mesma falta de recursos financeiros viria a determinar a opção mais imediata por uma escola de comércio e só muito mais tarde, já em finais da década de setenta, casadíssimo e pai de filhos, é que Miguel Rivero concluiria, a conta-gotas, a sua licenciatura em Ciências Políticas. 

A sua época estudantil foi de luta contra o regime de Fulgencio Batista e de adesão incondicional à Revolução e à luta de guerrilha que se desenrolava a partir da Sierra Maestra desde os inícios de 1957. Não fez parte dos combatentes da serra, ainda hoje tão endeusados pelo regime cubano, mas sim dos combatentes da planície, servindo de mensageiro ou participando em ações de sabotagem. Chegou a passar, se bem que por escassos dias e sem consequências de maior, pelas prisões de Batista. O seu fervor era tal que, anos mais tarde, acabaria por dar aos seus dois filhos os nomes de heróis revolucionários mortos ou nascidos nos mesmos dias em que os bebés nasceram: José Antonio [a partir do nome de José Antonio Echevarría, líder estudantil cubano assassinado a 13 de março de 1957] e Juan Manuel [como Juan Manuel Márquez, ativista político nascido a 3 de Julho de 1915, que participou na expedição do iate Granma e acabaria assassinado pelo exército de Batista em finais de 1956].  

Como em época de revolução – estava-se em 1961 – contava mais a adesão às novas ideias do que as qualificações, Miguel começou a sua carreira profissional logo como diretor de uma escola em Havana, a Secundária Básica Manuel Bisbé. Tinha apenas 22 anos e muitos dos alunos eram mais velhos do que ele: haviam combatido na Sierra Maestra e por isso não tinham feito a escolaridade normal. Andavam alguns deles armados de pistolas ou facas e faziam com frequência incursões aos dormitórios das raparigas ou aos lugares noturnos do bairro, incursões estas que o diretor tentava impedir deslocando-se de motocicleta entre as camaratas dos rapazes e as das raparigas. A esta experiência no ensino haveria Miguel de somar uma permanência de dois anos em Pequim como professor de língua espanhola, mesmo a tempo ainda de presenciar o início da Revolução Cultural chinesa em 1966. 

O gosto pelo jornalismo manifestara-se logo na sua época de estudante: nos últimos anos da década de cinquenta, chegou a ser chefe de redação do jornal Acción Estudiantil, publicado na Escola Profissional de Comércio do município de Marianao (Havana), que então frequentava. Regressado a Havana depois da experiência chinesa, iniciaria uma carreira de 23 anos de jornalismo, na qual convém não esquecer a «prestigiosa» publicação Bayardo, um jornal de uma só folha pertencente a uma coluna juvenil de trabalho voluntário, do qual foi subdiretor, cargo que o fez sentir-se moralmente obrigado a «voluntariar-se» também para o corte de cana-de-açúcar…    

 Mas Miguel Rivero trabalhou sobretudo nos principais órgãos de informação do seu país – Juventud Rebelde, agência Prensa Latina, revistas Prisma e Bohemia, nas quais ocupou cargos de direção, e Televisión Cubana, onde foi chefe de noticiário. Passou largos anos como correspondente no Vietname, em Paris e em Londres. Foi um dos primeiros jornalistas estrangeiros a entrar no Camboja após a intervenção vietnamita que pôs fim ao regime Khmer Vermelho e, das reportagens então feitas, resultou o livro Infierno y Amanecer en Kampuchea, editado em Havana em 1979.  

Nesse inverno de 1992 em que o conheci em Praga, não havia ainda da sua parte uma rutura aberta com o regime de Fidel Castro. Desilusão, porém, havia. E muita. Cuba vivia uma das épocas mais difíceis desde que Fidel chegara ao poder – a desagregação da União Soviética e o fim da ajuda económica e alimentar dada por este país deixara a população cubana numa situação de penúria acentuada – e existia, em Miguel, como noutros cubanos que encontrei então na capital checa, uma frustração imensa quando constatavam que a sua luta da juventude pela revolução em que todos acreditavam tinha, afinal, conduzido a uma situação de quase fome três décadas depois.    

O peso da família era, porém, mais forte do que o da desilusão. O filho mais novo, Juan Manuel, vivia também em Praga desde Agosto de 1990, mas em Havana continuavam a sua mãe idosa, o seu filho mais velho, a esposa e a filha deste último. Os laços com Cuba mantinham-se, inevitáveis. Já não tanto pela ideologia política ou pela adesão ao regime, mas mais pela família. E foi também por aqui que a rutura se deu: quando convidou o filho, a nora e a neta a visitá-lo em Praga e a ditadura cubana lhes recusou a autorização indispensável para viajarem. Decidiu não voltar a Cuba, solicitou que lhe substituíssem o passaporte oficial, de representante da União de Jornalistas Cubanos junto da OIJ, por um passaporte comum – «Sim, porque eu já não sou o representante da UPEC; agora sou um cubano que trabalha na OIJ», argumentava. Encontrar uma maneira de o filho, a nora e a neta saírem de Cuba tornou-se então para Miguel uma prioridade, quase uma obsessão, sabendo que era também esse o desejo deles. Viria a consegui-lo faseadamente, até José Antonio, Teresita e a pequena Diana poderem reencontrar-se na capital checa em janeiro de 1994. 

Miguel Rivero fixou-se em Lisboa em finais de agosto de 1994, trazido pelo amor que nascera dos nossos encontros em Praga. Aos 54 anos, recomeçava do zero. Recorreu às traduções para espanhol, língua que, na altura, tinha pouca oferta e ainda menos procura em Portugal. Mas, exceção feita a esta atividade, conseguiu sempre trabalhar no que era o seu saber e a sua experiência: foi correspondente do jornal El Sol da Cidade do México, do entretanto extinto Diário 16 de Madrid, editor da edição espanhola do jornal da Expo 98, jornalista da agência noticiosa espanhola EFE e, por último, delegado do semanário El Triangle de Barcelona. A isto se somariam numerosos artigos na imprensa portuguesa e comentários na rádio, quase sempre sobre Cuba, assim como colaborações com a revista Encuentro de la Cultura Cubana, editada em Madrid e pertencente à associação do mesmo nome, e com o jornal digital Encuentro en la Red, mais tarde designado Cubaencuentro.com.

De início, foi imensa a sua relutância em escrever ou falar sobre Cuba para órgãos de informação. O facto de a mãe continuar na ilha e de ele saber que  o regime com frequência arranjava maneira de serem os mais fracos a pagar los platos rotos, como dizia, levava-o a evitar abordar o tema cubano na sua perspetiva agora crítica do regime implantado por Fidel Castro há mais de cinco décadas. Mas, quando surgiram os primeiros artigos suas na imprensa portuguesa, também as advertências veladas – ou não tão veladas – começaram a chegar. 

Em 1997, quando se completaram 30 anos da morte de Ernesto «Che» Guevara, tema a que Miguel Rivero dedicou um artigo num semanário português, o então adido de imprensa na embaixada cubana em Lisboa, cujo nome não recordo presentemente, explicava-lhe com grande «candura» como uma das suas funções era precisamente ler tudo o que se publicava na imprensa portuguesa sobre Cuba e enviar para Havana. «E, sabe, com os meios tecnológicos de que dispomos agora, chega lá tudo muito rapidamente», acrescentava. No ano seguinte, poucos dias antes da chegada de Fidel Castro a Portugal para a Cimeira Ibero-Americana que se realizaria no Porto, Miguel foi submetido a um verdadeiro interrogatório na embaixada do seu país por «um compañero que veio ajudar nestes dias de mais trabalho»: há quanto tempo estava em Portugal, onde trabalhava, onde tinha estado antes, se tinha família em Cuba, etc. 

Finalmente, em 2003, o Gabinete de Imigração e Estrangeiros, o organismo que em Havana devia dar à sua mãe, María Julia Lorenzo, a autorização para viajar para Portugal, decidiu demorar esta mesma autorização, depois de a ter dado sem qualquer problema à pessoa que iria acompanhar a senhora, que tinha à data 88 anos. «Ah, o seu filho vive em Lisboa? E o que é que ele lá faz? Temos de averiguar bem isso…». A autorização seria dada com atraso, a regañadientes – expressivo termo do espanhol para significar a contragosto – e só depois da intervenção de uma figura prestigiada a quem Fidel Castro escuta… Mas aí já o contexto era outro e já Miguel Rivero estava metido em pleno na contestação ao que ficou conhecido como a Primavera Negra de Cuba.   

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