O mistério inglês e a corrente de ouro (1.º capítulo)

Publicado em

I
O MISTÉRIO INGLÊS 
E A CORRENTE DE OURO
Por que razão a Inglaterra resistiu a Hitler, inicialmente sozinha, e foi a primeira a denunciar a «cortina de ferro»?
Provavelmente, pela mesma razão que lhe permitiu assimilar todas as revoluções modernas sem nunca recorrer à Revolução.

«O tema do seu futuro doutoramento não é o mais importante», disse-me Karl Popper quando o conheci no Algarve, em 1987. Isso deixou-me um pouco surpreendido, porque eu tentava encetar uma séria discussão sobre temas de investigação. E fiquei ainda mais com o que se seguiu: «O mais importante é que vá es- tudar e viver em Inglaterra, pelo menos por algum tempo. Viver e estudar em Inglaterra, com verdadeira curiosidade intelectual, é mais importante do que o tema que se está a estudar.»

É certo que eu fora educado desde criança num ambiente de admiração por Inglaterra e pela América. Mas não esperava ouvir dizer – sobretudo por parte de um eminente filósofo – que uma experiência inglesa era mais importante do que uma tese de doutoramento. Insisti com Karl Popper sobre as razões dessa magna importância da experiência inglesa. Foi então que surgiu «o mistério inglês»:

É difícil explicar, e é por isso que é tão importante vivê-la. Nós devemos a Inglaterra a sobrevivência da democracia no século xx. Mas, antes disso, já lhe devíamos a mera credibilidade da hipótese democrática. E ao império inglês devemos a expansãodessa credibilidade pelos quatro cantos do mundo – aquilo que Winston Churchill chamou de «povos de língua inglesa». É um mistério, podemos chamar-lhe o mistério inglês.

Esta conversa com Karl Popper foi determinante para o que viria a fazer nos 22 anos subsequentes. Contrariamente aos meus planos iniciais, fui de facto estudar para Inglaterra com a minha mulher e as nossas filhas. Ao longo de todo o percurso que segui desde então, nunca me esqueci da conversa original com Karl Popper. De tal forma fui marcado por ela, que não é exagero dizer que me dediquei desde então ao estudo do «mistério inglês».

Vinte e dois anos depois dessa conversa no Algarve, vou aqui tentar esboçar algumas das coisas que julgo ter aprendido entretanto sobre «o mistério inglês».

ÁLCOOL EM ESTÔMAGO VAZIO A interrogação de Karl Popper sobre o mistério inglês pode ser formulada de muitas maneiras. Vim a perceber que era um mistério muito conhecido, desde pelo menos o final do século xvii, sobretudo entre aqueles que admiravam o regime constitucional inglês, por con- traste com o absolutismo continental, sobretudo francês e cas- telhano. Nessa época, o mistério inglês traduzia-se basicamente na pergunta seguinte: «Porque é que a Inglaterra tem um regime monárquico, liberal e ordeiro, enquanto no continente existem sobretudo monarquias absolutas?» Essa foi a pergunta de Mon- tesquieu, em 1748, no seu O Espírito das Leis.

Depois da Revolução Francesa de 1789 – essa «doença infecciosa», como lhe chamou Edmund Burke –, a pergunta manteve-se, com uma curiosa alteração: «Porque é que a Inglaterra mantém um regime monárquico, liberal e ordeiro, enquanto na Europa temos agora a paixão pelo despotismo popular e republicano, no lugar antes ocupado pela paixão pelo absolutismo real?»

Esta pergunta foi reformulada por Lord Quinton, no capítulo dedicado à filosofia política, através do qual deu o seu contributo para a Oxford History of Western Philosophy. Anthony Quinton afirma aí que «o efeito da importação das doutrinas de Locke emFrança foi muito semelhante ao do álcool num estômago vazio». E o autor acrescenta que, em Inglaterra, os princípios de Locke «serviram para sancionar uma ampla revolução conservadora contra a inovação absolutista» (referindo-se à chamada «Glorio- sa Revolução» de 1688). Em contrapartida, observa Quinton, a importação das ideias de Locke pela França conduziria ao radi- calismo da Revolução Francesa [1].

O MILAGRE DA INGLATERRA MODERNA Esta diferença, entre a revolução inglesa relutante de 1688 e a caótica revo- lução francesa de 1789, captou a imaginação de várias gerações de anglófilos na Europa. Em Anglomania: A European Love Affair (Nova Iorque: Random House, 1998), Ian Buruma oferece uma excelente panorâmica, divertida e informativa, do impacto da tradição política inglesa sobre várias gerações de anglófilos na Europa.

Desde a Revolução Francesa de 1789, gerações sucessivas de grandes intelectuais franceses – como Benjamin Constant, Guizot, Tocqueville, Élie Halévy ou Raymond Aron – observaram a propensão da França para o eterno conflito entre revolução e contra-revolução.

Em Inglaterra, a revolução mais recente ocorrera em 1688-89, e mesmo essa apresentara-se como revolução relutante, visando restaurar as antigas liberdades constitucionais consagradas na Magna Carta de 1215. Em França, pelo contrário, a revolu- ção de 1789, ela própria composta de uma sucessão de episódios revolucionários e contra-revolucionários, abrira caminho a uma profunda instabilidade constitucional. Entre 1789 e 1871, em es- cassos 82 anos, a França teve dois golpes de Estado (Bonaparte em 1799 e Louis-Napoléon Bonaparte em 1851), um consulado (1799-1804), um primeiro império (1804-14), uma restauração com duas monarquias (1814-30), uma monarquia constitucional (com Louis-Philippe, 1830-48), um segundo império (1852-70), e três repúblicas (1792-99, 1848-52 e 1870).

Este contraste gritante entre a estabilidade inglesa e a insta- bilidade francesa levou os anglófilos ingleses a lamentar que a chamada «Pátria das Luzes» não tivesse conseguido reproduzir o chamado «milagre da Inglaterra moderna», uma frase cunhada por Élie Halévy. É importante notar, no entanto, que este mi- lagre não residiu apenas, nem mesmo sobretudo, no facto de a Inglaterra ter sido poupada à revolução desde 1688. Como re- cordou a distinta historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb:

O verdadeiro «milagre da Inglaterra moderna» (a famosa expressão de Halévy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções – industrial, económica, social, política, cultural – sem recorrer à Revolução [2].

UMA CORRENTE DE OURO Creio que uma das melhores ilustrações desta versatilidade não revolucionária da cultura política inglesa reside numa passagem de Winston Churchill sobre a filosofia política de seu pai, Lord Randolph Churchill, um des- tacado parlamentar conservador. Disse Churchill sobre seu pai:

[Lord Randolph Churchill] não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham ad- quirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passa- do e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa [3].Seria muito difícil encontrar uma passagem deste tipo – que combina uma visão profundamente conservadora com uma vi- são profundamente democrática – num actor político marcante da tradição política continental. Como observou Tocqueville, no continente europeu, os políticos conservadores tendiam a opor-se à democracia, e os defensores da democracia tendiam a opor-se aos modos de vida e às mundovisões conservadoras. Esta dico- tomia fatal conduziu a Europa continental àquilo que Tocqueville designou por «conflito estéril entre Antigo Regime e Revolução». Na tradição política de língua inglesa, essa dicotomia não existiu, ou nunca foi levada a sério.

O MISTÉRIO INGLÊS E A CORRENTE DE OURO

Neste livro, procurarei mostrar que o «mistério inglês» não pode ser decifrado sem compreender essa «corrente de ouro» de que falava Winston Churchill. É ela que também explica o «milagre da Inglaterra moderna». E é a ausência dessa mesma «corrente de ouro» que explica o «efeito do álcool em estômago vazio» produzido em França pela importação das ideias de Locke.

Argumentarei, finalmente, que é ainda essa «corrente de ouro» que explica que a Inglaterra tenha resistido a Hitler, inicialmente sozinha, e, logo em 1946, tenha sido a primeira – de novo pela voz de Winston Churchill – a denunciar a «cortina de ferro» soviética.

 

[1] A. Quinton, «Political Philosophy», in Anthony Kenny (ed.), The Oxford Illustrated History of Western Philosophy, Oxford: Oxford University Press, 1994, pág. 327. 

[2] Gertrude Himmelfarb, Victorian Minds: A study of intellectuals in crisis and ideologies in transition, Chicago: Ivan R. Dee, 1995 (ed. orig. Knopf, 1968), pág. 292.

[3] Winston S. Churchill, «Personal Contacts», in Thoughts and Adventures, Londres: Thornton Butterworth, 1934, pág. 52.


Partilhar esta publicação



← Publicação Mais Antiga Publicação Mais Recente →


0 comentários

Deixe um comentário

Tenha em atenção que os comentários precisam de ser aprovados antes de serem exibidos.