Histórias e Morais (Excerto 1.º capítulo)

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I – DEUS E O CÉSAR


Europa, quem és tu?

As três notas da identidade europeia: a filosofia grega, o direito romano e a religião cristã



A Europa não é uma evidência geográfica. Com efeito, os seus limites não estão demarcados por nenhuma circunstância natural, como acontece, pelo contrário, nas nações ou nos continentes cujas fronteiras são acidentes naturais que se impõem por si mesmos. Se as comunidades políticas assentadas num espaço individualizado têm no seu território uma marca identificativa da sua realidade, o mesmo não acontece com a Europa, que partilha com a Ásia a extensa plataforma em que assenta. Em que se estriba então a sua identidade? Decerto, numa especial forma de ser e de estar no mundo.

Memória e identidade não são sinónimos, mas uma identidade que não se conhece e percebe historicamente não existe, porque é a consciência da permanência do sujeito, para além da mutabilidade das circunstâncias, que redunda na consciência do eu. Talvez já pouco haja de comum entre a matéria que é presentemente um corpo e a que o foi há vinte anos, mas a percepção nítida de que esse corpo permanece o mesmo, na medida em que, não obstante a sua óbvia evolução, é sempre o corpo de uma mesma e única pessoa, é suficiente para que se possa estabelecer a sua identidade. Embora distinto nas diversas etapas do seu desenvolvimento, é sempre o mesmo corpo, porque corpo de uma mesma consciên­cia, de uma realidade histórica constante, apesar das mutações verificadas.

Mutatis mutandis, a identidade europeia não decorre de nenhum seu acidente geográfico, mas de uma sua comum consciência, aferida na identidade histórica que a caracte­riza, não obstante a pluralidade das suas culturas e dos seus credos. Uma consciência que não é necessariamente percebida como tal por todos os europeus, mas que pode ser verificada, por assim dizer, através da sua história. Uma Europa que se constrói ou projecta para além da sua própria consciência ou até contra a sua tradição «constitucional» é necessariamente uma Europa suicida, porque contradizer a própria história é negar­‑se, resolver no nada a própria identidade.

A resolução histórica da identidade europeia permite também que o debate sobre a sua identidade, especialmente premente nestes tempos em que, de novo, se questiona um novo tratado constitucional europeu, evite os conflitos de interesses da intervenção política, para se situar nos terrenos menos movediços dos saberes consolidados. A política é decerto uma arte necessária e, muitas vezes, uma certeira intuição, mas nem sempre consegue evitar a influência perniciosa de interesses menos altruís­tas. Querer resolver a individualidade continental politicamente é negar, à partida, a identidade europeia, que ficaria assim sujeita à arbitrariedade. A Europa pode­‑se auto­determinar, mas não pode dar a si mesma a sua própria identidade, como também o homem, diante da evidência da sua personalidade, pode optar no que respeita ao seu comportamento, mas não decidir sobre a sua essência. Se a Europa é, é alguma coisa. Um continente, sem dúvida, «este» continente, se se quiser. Mas o que o determina e especifica é a sua consciência histórica, que se deduz com necessidade da realidade que ela própria é desde que existe como um espaço cultural, política e espiritualmente diferenciado.

Três elementos permitem estabelecer a identidade da Europa: a filosofia grega, o direito romano e a religião cristã. Aquela, na medida em que é o pensamento helénico que configura culturalmente o espaço europeu. O Império Romano dotou o nosso continente de uma organização jurídica e política que se pode considerar igualmente constitutiva da Europa politicamente estruturada, embora não de forma unitária. Last, but not least, o humanismo cristão deu ao pensamento grego e à organização romana uma dimensão ética que não é despicienda.

Uma Europa que renegue as suas origens, que repudie o legado helénico, que não se reconheça na tradição romana ou que rejeite a espiritualidade cristã que forjou a sua unidade e deu grandeza ao concerto das suas nações não é apenas uma Europa deficiente, mas uma não­‑Europa. E a quem inquirisse a sua identidade, esse continente à deriva não poderia responder de outro modo que não fosse fazendo sua a célebre confissão do romeiro: – Ninguém!





O Estado contra a nação

Em defesa do Estado laico e da liberdade religiosa da nação


Não é de estranhar que um reputado jurista de formação ideológica colectivista, com laivos de algum autoritarismo, defenda o laicismo, mas resultaria certamente absurdo que as suas teses, muito embora revestidas de uma aparente razão jurídica, fossem impostas a uma nação que não se revê na mundividência do eminente jurisconsulto. Seria igualmente disparatado deixar­‑se seduzir pelas suas conclusões, que, apesar de apresentadas como se de um imperativo categórico se tratasse, muito têm de discutível e, até, de erróneo.

Em primeiro lugar, importa questionar o modo simplista como é equacionado o pressuposto de facto. Com efeito, para o dito jurisconsulto, há uma «inadmissível promiscuidade entre o Estado e a religião» porque, «no fundamental, a Igreja Católica mantém os favores que vêm desde o Estado Novo». A bem dizer, este suposto casamento entre a Igreja Católica e o Estado Novo tem muito que se lhe diga, porque as relações entre ambas as instituições foram muitas vezes particularmente tensas – recorde­‑se a questão do bispo do Porto, a expulsão de missionários nas ex­‑colónias, o desagrado do regime pela visita papal à Índia, etc. Se o facto de alguns cristãos ocuparem lugares de chefia na administração do Estado Novo confere a este carácter confessional, seria preciso concluir que o anterior regime foi, pela mesma ordem de ideias, maçónico, o que não parece minimamente razoável. Afirmar que o anterior regime foi confessionalmente católico pode ser uma tese conveniente em termos políticos e ideológicos, mas está longe de ser uma evidência histórica ou, até, uma legítima conclusão jurídico­‑política.

Defende­‑se a laicidade do Estado decretando a sua aconfessionalidade absoluta: «O Estado não tem religião.» Mas de que o Estado não tenha religião não decorre que a não tenha a nação que esse Estado serve. Podem e devem ser laicas as instituições públicas, mas não podem nem devem impor o laicismo como religião oficial do Estado, porque uma tal política colidiria necessariamente com a liberdade religiosa da maior parte da sua população.

Convém não esquecer que o laicismo não é nenhum direito fundamental salvaguardado pela Constituição, mas a liberdade religiosa dos cidadãos é um direito solenemente consagrado na lei fundamental. Portanto, não é a liberdade religiosa dos cidadãos que deve ser limitada pela laicidade do Estado, mas esta que deve ser observada apenas na medida em que não ofenda aquela. Assim, nada tem de estranho que um ministro religioso compareça num acto oficial, se para tal efeito for convidado pelas competentes autoridades, como também parece razoável que, de acordo com uma praxe protocolar, os governantes, quaisquer que sejam as suas convicções religiosas, assistam em lugar de deferência às principais efemérides religiosas.

Invoca­‑se a Constituição e a Concordata para impor a absoluta separação entre a ordem religiosa e a civil, mas esquece­‑se que é de acordo com o ordenamento jurídico vigente no nosso país que o Estado reconhece ao ministro religioso, católico ou não, a competência necessária para oficialmente receber o compromisso matrimonial dos nubentes, equiparando­‑o, para este efeito, a um conservador do registo civil. Não se percebe então por que razão a função de um capelão, não necessariamente católico, não possa ser equiparada à de um psicólogo, à de um assistente social ou de um voluntário hospitalar ou prisional, a não ser que se entenda que o bem­‑estar psicológico, espiritual ou humano dos cidadãos viola o princípio da laicidade do Estado…

Um Estado laico de uma nação que se confessa maioritariamente cristã é um Estado à margem da nação; mas um Estado laicista de uma nação predominantemente católica, como se reconhece a portuguesa, é um Estado contra a nação. Assim foi, com efeito, a Primeira República portuguesa, que apostou na supressão da religião católica e na perseguição activa da Igreja. Assim ocorreu também com os Estados marxistas do leste europeu, em que o laicismo foi a desculpa ideológica para a imposição ditatorial de uma filosofia ateia e o pretexto para a perseguição de todas as expressões religiosas, sobretudo as de inspiração cristã, que, por ironia do destino, lhes sobreviveram.

Os defensores do laicismo são os inimigos da liberdade, ainda que o façam em nome da tolerância. Não é certamente por acaso que os hodiernos defensores da «mais estrita neutralidade religiosa» são também os herdeiros do pensamento totalitário. Em nome da justiça e da democracia, há que ter a coragem de defender a liberdade religiosa. E, por isso, do modesto canto desta tribuna, permito­‑me discordar respeitosamente do ilustre advogado do laicismo de Estado:

– Olhe que não, Senhor Doutor, olhe que não!




A fé e o fisco

Não separe o fisco a família que Deus uniu


Talvez não haja âmbito jurídico­‑económico mais árido do que a fiscalidade: as arrevesadas noções tributárias, a complexidade das pautas e das taxas, a emaranhada teia de normas aplicáveis, para já não falar do intrincado problema da sua interpretação, à luz da doutrina e da jurisprudência, são quanto basta para desanimar o mais afoito dos estudiosos. Pelo contrário, o discurso religioso, sobretudo na sua versão cristã, transpira simplicidade e poesia em cada parábola e em cada sermão, porque o Mestre fez­‑se pequenino entre os grandes da terra e deu­‑lhes não só como exemplo o seu coração manso e humilde (cfr. Mt 11,25­‑30), como também fez das crianças o modelo que há­‑de seguir o seu mais perfeito discípulo (cfr. Lc 18,15­‑17; etc.).

A aparente contradição entre estes dois discursos seria, porventura, razão de sobra para declinar a amabilidade do convite que me foi feito para colaborar nestas páginas, razão a que acresce a manifesta incapacidade de quem assina esta nota avulsa, sobretudo se comparado com os nomes ilustres que prestigiam esta publicação. Porém, a insistência amiga e a voz da consciência, que dificilmente consente o desaproveitamento de uma tão honrosa oportunidade de reflectir a partir da fé, prevaleceram sobre o bom senso de tal forma que, sem saber muito bem como nem porquê, aqui me encontro, quase como o Menino Jesus perdido entre os doutores… (cfr. Lc 2,41­‑52).

Se é certo que a fiscalidade raramente se eleva até aos píncaros do espírito, não obstante a sua fundamentação na justiça e o imperioso dever de a respectiva legislação corresponder às exigências do bem comum, não é menos verdade que há sintomáticas intersecções entre o prosaico mundo dos impostos e as místicas alturas da fé.

É recorrente, a este propósito, recordar as exigências éticas que devem pautar a política fiscal e, se os responsáveis da administração pública muito agradecem que a Igreja recorde aos seus fiéis o dever de atempadamente cumprirem as suas obrigações fiscais, os contribuintes, por seu lado, pedem encarecidamente aos pastores das suas almas que por eles intercedam, pedindo aos governantes a conveniente moderação na recolecção dos fundos necessários à res publica. Se a uns e outros alguma razão assiste em tais demandas, a verdade é que empobrecem o tipo de reflexão todos aqueles que, mesmo afligidos por necessidades prementes, reduzem a reflexão ao âmbito da moralidade das contrapartidas tributárias, como se o discurso da Igreja mais não fosse do que um outro meio para o Estado compelir os cidadãos para que honrem as suas obrigações cívicas, ou, pelo contrário, a instituição eclesial mais não fosse do que uma privilegiada e porventura poderosa defensora dos mais desfavorecidos, ante a omnipotente administração.

Sem pôr em causa a pertinência de uma abordagem ética ou moral da fiscalidade, importa esclarecer que o dever­‑ser não é, em termos de análise teórica, um a priori, mas uma consequência que pressupõe, com necessidade, uma instância ontológica primária, que não só a antecede no tempo como também lhe serve de fundamento lógico. Ou seja, não é possível concluir a obrigatoriedade do imposto ou a imoralidade da fuga ao fisco sem uma prévia fundamentação ontológica da própria realidade tributária, como também seria improcedente um discurso relativo às obrigações conjugais sem um prévio esclarecimento acerca da natureza jurídica do matrimónio. Neste sentido, o discurso do dever­‑ser surge como um desenvolvimento prático do discurso do ser, ao qual cabe a primazia em qualquer tipo de investigação intelectual que se pretenda razoavelmente fundada.

Permita­‑se um breve parêntese para responder a quantos persistem na leitura desta nota, mas se interrogam­ sobre a conveniência de continuar a gastar o seu precioso tempo com considerações tão vagas e imprecisas quanto as bizantinas discussões teológicas acerca do sexo dos anjos. Num derradeiro esforço por conquistar a atenção do leitor mais renitente, só lhe peço que atente a um pormenor, contudo decisivo: a análise meramente técnica ou contabilística de um qualquer problema humano, seja ele de matriz jurídica, de carácter económico ou financeiro é, à partida, meio caminho andado para uma resposta errada, precisamente porque não existem problemas técnicos que possam ser satisfatoriamente resolvidos apenas nessa dimensão, porque a todas essas questões é intrinsecamente essencial um vector humano ou social, que não pode ser ignorado em caso algum. A natureza política da realidade fiscal obriga, portanto, a uma análise mais abrangente, cujos contornos se confundem com os princípios filosóficos e, nesse sentido, roçam também a teologia, que não é apenas uma reflexão sobre o divino, mas também sobre toda a realidade enquanto entendida à luz da sua última causa e do seu mais universal princípio.

Mesmo quem não partilha as teses contratualistas sobre a origem e natureza do Estado, não pode pôr em dúvida que a prestação fiscal corresponde, objectivamente, a uma retribuição compensatória dos serviços prestados pela administração pública aos particulares. Numa perspectiva mais subjectiva, porque centrada na realidade singular do contribuinte, o imposto grava o rendimento ou o património de cada indivíduo, segundo a medida das suas capacidades financeiras. Ora, ainda que uma certa visão individualista pudesse levar a crer que cada cidadão é, nesse sentido, o núcleo mais básico da actividade económica, na realidade os recursos financeiros são sobretudo das famílias e, portanto, é a família que deve ser tida em conta, como um todo, para efeitos de tributação fiscal.

Imagine­‑se que, por absurda hipótese, uma nova lei fiscal estabelece um novo imposto relativo aos diversos cargos desempenhados pelos diversos agentes económicos das empresas, em virtude do qual todos os administradores, gerentes, directores comerciais ou financeiros ficassem obrigados a deduzir uma percentagem respectiva dos seus salários. Obviamente, ninguém admitiria tamanha bizarrice, porque é evidente o entendimento de que não é o mesmo ser administrador de uma grande empresa ou de uma pequena entidade comercial, nem podem ser equiparados, em termos fiscais, todos os directores comerciais existentes no país. Pois bem, também não tem sentido que a carga tributária imposta ao chefe de família tenha quase exclusivamente em linha de conta o montante dos seus rendimentos e não o agregado familiar a que esses recursos estão prioritariamente destinados. Mais do que exigir ao indivíduo para depois compensar a família, por via do abono de família ou outras medidas compensatórias, faria todo o sentido que a família fosse o verdadeiro núcleo à volta do qual gravitasse o sistema fiscal.

Com efeito, as diversas gerações que partilham o mesmo lar têm também a mesma riqueza que, precisamente por pertencer indiferenciadamente a todos, ao jeito de um bolo comum, sem ser especificamente de ninguém, deve ser tida preferencialmente como sendo de natureza familiar e não individual, ainda que decorra, na sua génese, da contribuição de cada um dos seus membros. Exigir o tributo ao cidadão tendo sobretudo em consideração os seus rendimentos é, portanto, uma violência e um atentado à célula primária da sociedade, isto é, a família.

Já que Mateus era, antes do chamamento para o apostolado, cobrador de impostos (cfr. Mt 9,9), não será despropositado recorrer a um seu texto. Conta, com efeito, Levi, filho de Alfeu (cfr. Mc 2,14), que, em dado momento, Simão Pedro foi questionado pelos cobradores dos tributos, que lhe perguntaram se Jesus iria pagar a taxa para o templo. O primeiro Papa não hesitou na sua resposta afirmativa e, depois, quando entrou em sua casa, que era também a do Mestre, Cristo disse­‑lhe que fosse ao mar, lançasse o anzol e retirasse um estáter da boca do primeiro peixe que pescasse. E, depois, acrescentou: «Toma­‑o e dá­‑o por Mim e por ti» (Mt 17,24­‑27).

É significativo que ninguém tivesse mencionado as obrigações tributárias de Pedro e que, no entanto, Cristo providenciasse o pagamento de ambos, sublinhando desta forma que a unidade que constituíam, por virtude da sua vida em comum, devia também reflectir­‑se no âmbito fiscal. Se Cristo se alimenta à mesa de Pedro e Pedro beneficia das pescas que milagrosamente o Senhor lhe oferece, é lógico que também para efeitos tributários o discípulo e o Mestre sejam um só contribuinte, na medida em que são uma só família, uma única comunidade. Por maioria de razão a família, comunhão de vida e de amor, deve ser tida, para efeitos de tributação, como uma única entidade. Não separe pois o fisco aqueles que Deus uniu.




A mal da nação

Um acto infeliz, incoerente, contrário ao bem comum, à moral natural e à fé


A promulgação da lei que permite o chamado casamento entre pessoas do mesmo sexo teve um raro êxito: conseguiu desagradar a todos. Muitos portugueses ficaram decepcionados com esta iniciativa do Governo, sancionada pelo Parlamento, viabilizada pelo Tribunal Constitucional e, por último, promulgada pelo Presidente da República. Não obstante o complexo itinerário observado por este diploma legal, persistem dúvidas quanto à sua legitimidade democrática, sendo certo que o mesmo ofende princípios básicos da vida social, para exclusivo benefício de uma muito poderosa minoria que, com a cumplicidade dos órgãos de soberania, se impôs­ à maioria silenciosa da nação.

O momento escolhido para a promulgação da dita lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, dois dias depois de o Santo Padre ter deixado Portugal, não poderia ter sido mais infeliz, sobretudo se se tiver em conta que Bento XVI também em Fátima recordou que o casamento é a união indissolúvel entre um homem e uma mulher e que o chefe de Estado, em sintonia com o comum sentir do povo português, fez questão em dispensar ao ilustre visitante um acolhimento muito mais caloroso do que o que lhe era protocolarmente devido. Desdizer um insigne

convidado, dois dias depois de o ter recebido com reiteradas expressões de apreço e admiração, é, no mínimo, um comportamento muito deselegante.

Do ponto de vista eclesial, todos, a começar pelo senhor patriarca, não puderam deixar de lamentar a promulgação presidencial, que nenhum católico coerente é capaz de compreender. Ao ofender, deste modo, princípios fundamentais da moral natural e da doutrina da Igreja Católica, o protagonista desse acto não só desiludiu irremediavelmente uma muito significativa parcela do eleitorado, como evidenciou uma confrangedora ausência de convicções. Não está em questão a liberdade religiosa do primeiro magistrado da nação, mas a sua coerência: pode­‑se ser católico ou não, mas não sê­‑lo e depois agir como se não se fosse.

São também muitos os não crentes que manifestaram a sua perplexidade pelo comportamento do titular do primeiro órgão de soberania, na medida em que o mesmo é, em termos éticos, insustentável. Com efeito, todos os seres são livres de optar, mas a ninguém é lícito agir contra a própria consciência, como supostamente se procedeu neste caso. Note­‑se bem que não é por força de nenhum ilícito processo de intenções que assim se pode e deve concluir, mas porque foi o próprio que fez questão de sublinhar o seu desacordo com o diploma que, no entanto, promulgou.

Em termos estritamente jurídicos, também não colhe a atitude presidencial. Pergunta­‑se: se entende, com razão, que a dita lei é prejudicial para a sociedade portuguesa, porque a não veta, quando a própria Constituição lhe aufere essa possibilidade, precisamente para estes casos?! Agindo contra a sua consciência e o que sabe ser o interesse nacional, recusando para o efeito o uso de uma legítima prerrogativa constitucional, o chefe de Estado parece ter­‑se demitido da superior função arbitral e supra­partidária que lhe competia segundo a lei fundamental, para se subalternizar aos poderes legislativo e executivo. Mais do que um garante isento do interesse nacional, perfila­‑se assim como um mero funcionário da maioria parlamentar.

É certo que a crise nacional foi apontada como eventual razão justificativa da promulgação do polémico diploma, mas não existe nenhuma relação lógica entre a crise económica e financeira e o casamento de pessoas do mesmo sexo. Mesmo a hipotética recusa em promulgar uma tal lei não iria ter, previsivelmente, nenhum impacto social negativo que pudesse, de algum modo, comprometer as reformas em curso. A prova é que, até à data, a inexistência da possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo contraírem matrimónio civil tem sido gerida pacificamente na sociedade portuguesa, pelo que é de supor que continuaria a sê­‑lo se, como se impunha, se tivesse vetado o diploma que permite o mal chamado casamento homossexual.

As razões invocadas para a promulgação da lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo foram, afinal, razões para a sua não promulgação, a não ser que a lógica desse acto contraditório radique em inconfessáveis motivações de carácter eleitoral, as únicas que, na realidade, o poderiam explicar com alguma razoabilidade política, mas nenhuma legitimidade ética.

Um acto infeliz, deselegante, incoerente, contrário à fé cristã, à moral natural e ao bem comum. Talvez conveniente para a promoção mediática de certas organizações alternativas, ou para os interesses pessoais de alguns políticos, mas decididamente prejudicial para o país: neste caso, forçoso é concluir que os órgãos de soberania – o Governo, o Parlamento, o Tribunal Constitucional e a Presidência da República – não agiram a bem da nação. 


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