Day (1.º capítulo)

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Alfred estava a deixar crescer o bigode.
Um observador menos treinado poderia pensar que ele não tinha mais nada para fazer, deambulando sem objectivo no campo, mas não era esse o caso. Na verdade, ele estava a concentrar-se, a pensar a cada pêlo que aparecia, certificando-se de que se alinhariam e ficariam bem.
Até aqui, o desenvolvimento desse apêndice era bastante impressionante: exibia um tamanho respeitável que já sugeria confiança e calma. Havia nele, Alfred, aspectos menos positivos, certos defeitos: a sua pequena estatura, as mãos deselegantes, o possível rarear do cabelo, o hábito de engolir as palavras antes que elas pudessem deixá-lo, o hábito de olhar sobretudo para o chão – e aqueles quilos a mais na cintura, uma má condição física –, mas ele não era assim tão horrivelmente feio, não era assim tão má pessoa.
Acima de tudo, o seu problema era o cansaço – ou mais uma irritação com o seu cansaço – ou mais um cansaço que era causado pela sua irritação – ou possivelmente ambas as coisas. Já não sabia dizer.
Não era que ele fosse desajeitado, ou peculiar, muito pelo contrário: era dócil e sensível e comum, nada mais – mas até uma pessoa comum podia, por vezes, estar farta e ficar saturada e, por exemplo, querer que lhe dêem, de vez em quando, uma alternativa.
Isso só podia ser razoável, não é verdade? Um homem tinha de imaginar que tinha hipótese de ser livre, de ter um pouco de espaço. O intervalo entre alternativas é que nos dava espaço. Mas por vezes pensávamos em nós e só víamos obstáculos, e ficávamos espantados por alguma vez termos sido capazes de deixar a nossa casa – a nossa cama, até, quanto mais a nossa casa. Olhávamos para o espelho algumas manhãs e perguntávamo-nos porque é que ela não se via, a forma como a maior parte de nós estava sempre a gritar para sair.
Com bigode ou sem bigode, isso não mudaria.
O problema era que tínhamos demasiadas coisas para fazer: respirar, dormir, acordar, comer – não podíamos evitá-las, éramos feitos para precisar delas, e, por isso, elas simplesmente continuavam, continuavam, continuavam. Onde estavam as outras possibilidades, as mudanças que poderíamos querer fazer – como caminhar debaixo do oceano: não sendo peixe, ele odiava peixe, mas sendo um homem escondido no oceano, porque é que ele não podia experimentar isso? Porque é que não podia experimentar o que quer que fosse que pensasse?
E o próprio acto de pensar não ajudava nada e, no entanto, tínhamos de fazê-lo a toda a hora. Estava lá quando sonhávamos, quando falávamos, quando realizávamos as nossas muitas outras tarefas obrigatórias. Se não conseguíssemos manter o controlo e continuar cautelosos, poderíamos pensar qualquer coisa, o que era exactamente a única liberdade que evitaríamos. Podíamos esquivar-nos a certos pensamentos, dar meia volta e sair do caminho deles, mas mesmo assim eles perseguiam-nos.
Temos de estar vigilantes.
Esta manhã ele podia senti-los, por dentro e por fora, os maus pensamentos a fazerem-se de espertinhos, de manhosos, com ele. Batiam-lhe atrás do rosto como ondas de água suja e, fora do corpo dele, tornavam a brisa mais espessa, até que a superfície que o tocava, que lhe empurrava os lábios, era muito mais rápida e complexa do que o ar simples. Hoje cheirava a azul, ao azul quente da Força Aérea: o fedor a chuvisco a elevar-se da lã e, por toda a parte, o cheiro a azul vivo – graxa e óleo capilar e aquele maldito sabonete rosa-alaranjado horrível e os Woodbines e os Sweet Corporal e aqueles outros baratos, aqueles que davam depois das operações militares: cigarros Thames, para acalmar os nervos.
– Olá, parece outra vez o Nevoeiro de Londres.
Pluckrose é que os iniciara a chamar-lhe Nevoeiro de Londres, à névoa do fumo dos Thames na sala de briefings – primeiro ele e depois todos. Uma das coisas que tinham entre si como tripulação: outra vez o Nevoeiro de Londres.
Mas ele não queria lembrar-se de Pluckrose, não ia convidá-lo a vir-lhe à memória.
Corta essa. Ouviste?
E desta vez é a sério. Ouviste?
Por isso o ruído voltou a calar-se, obediente: deixá-lo estar onde estava.
Não que ele tivesse uma ideia clara sobre isso – o local exacto em que se encontrava –, para além do facto de que estava sentado, sentado atrás de um jovem bigode.
Tinham deixado o caminho havia uma eternidade, Alfred nem reparara quando, e não havia dúvida de que agora estavam perdidos, se é que alguma vez tinham sabido para onde ir. E isso fora assim como que uma dor, uma irritação: não chegar a lado nenhum, ter de tropeçar e caminhar dolorosamente por um carreiro que se dividia e se enrolava e depois os abandonava completamente – isso enviava-o, a transpirar, por entre vegetação enfezada e áspera, atrás de um homem que era um estranho: Vasyl, alguém de que se ouvia falar, rumores de um passado mau e de uma faca.
Mas está bem. Apesar de tudo, estou a gostar da minha situação. Não me preocupa nem um pouco. Porque estou a escolher ser feliz. É tudo tão grande e plano aqui que posso ter espaço para isso.
E está um dia bonito e bom para se descansar, para nos afastarmos disso e sairmos para o campo aberto. Por isso não vou desanimar: não há necessidade.
E mais, pelo menos isto é pacífico e eu sempre gostei de um pouco de paz. Podemo-nos saturar das multidões. Elas massacram-nos a cabeça.
Uma de cada vez, podíamos lidar com pessoas, mas não com multidões, e aquelas últimas semanas não tinham sido propriamente desertas – tendo sido transportados, ensinados, mandados para à esquerda e para a direita – tal como nos tempos antigos: de uma forma demasiado semelhante aos tempos antigos –, nós e os outros voluntários. Primeira regra da vida civilizada: nunca se oferecer como voluntário. Por isso é sensato, hoje, quando ninguém nos solicita, que relaxemos, nos instalemos, e ninguém pode fazer isso com um público: não é possível nem digno.
Vasyl, é claro, não é um público, e, por isso, não conta. Os homens sobre os quais ouvimos histórias não se interessam por aquilo que fazemos. Deixam-nos continuar como queremos e fingem que não viram. Agem da maneira que esperam que ajamos em relação a eles.
Já devia ter passado algum tempo desde que eles tinham acabado com o andamento, se tinham instalado num pedaço de relva salpicado de pequenas flores amarelas de que ele não sabia o nome. A vista da charneca que se abria à sua frente tremia suavemente de calor e ele apercebeu-se de que, ao caminhar, cobrira as botas, as bainhas das calças, de poeira branca. Tudo o que tinha vestido era emprestado, não era verdadeiramente da sua responsabilidade, mas, de qualquer maneira, numa parte dele, era um equipamento que ele estava habituado a manter. De outra forma, porquê continuar a usá-lo? Hoje ele não estava de serviço, o equipamento não era necessário.
Olha para ti – sujo, todo sujo –, terias sido severamente repreendido por isto, Day. Terias cometido um grave erro com isto. Uma desgraça completa para todos os envolvidos.
Mas, agora, que se lixe, eh? Acabaram-se as idiotices em relação a isso.
Já para não falar nos Regulamentos Militares, que já não se aplicam.
E a poeira, poder-se-ia dizer, estava tão afastada, lá, na extremidade distante do seu corpo, sem ter nada a ver com o que se passava ali em cima, nem com o nítido e natural sigilo do pensamento íntimo, do pensamento convidado.
Uma boa torreira torna-nos mais lentos, deixa-nos relaxar – e aqui, se houver algo de errado, podemo-lo ver vir com montes de tempo para fazermos o que se segue. Este é o local e o tempo atmosférico perfeitos para a paz, para se cultivar uma mente benévola.
Mexeu os dedos e concentrou-se em desfrutar do bem treinado murmúrio oco que lhe percorria suavemente o cérebro dentro do crânio, que lhe circulava no sangue, que o mantinha tranquilo e defendido e a funcionar, imaginando uma textura de feltro junto às suas mãos, no sítio onde elas se lhe encostavam à parte de trás da cabeça e o protegiam das protuberâncias e dos botões do casaco dobrado. O uniforme de campanha dava uma péssima almofada. Quase se poderia pensar que fora inventado com qualquer outro objectivo em mente.
A erva rija picava-lhe através da camisa, mas, por qualquer razão, tinha um efeito calmante, assim como o barulho dos insectos, a cantarem em torno dele ao longo de quilómetro após quilómetro de vegetação rasteira. Estar assim deitado: era muito bom – passara muito tempo desde que se apercebera de que isso era tão aprazível, e essa sensação de satisfação era ainda intensificada pelo facto de ele ter aquele estranho com ele, aquele Vasyl, aquele imbecil que estava sentado a balançar-se e a mudar de posição e a ocupar-se com coisas sem nexo, a acender e a apagar constantemente um isqueiro americano, a sugar cigarros americanos roubados. É muito possível que também tenha roubado o isqueiro.
– Tens de fumar assim com tanto barulho?
– Tenho, sim. Tenho – sotaque engraçado, como se tivesse sofrido qualquer ferimento na língua, ou se ela estivesse dormente. – Estes são bons. Da melhor qualidade. Queres um? – e uma voz seca, monótona: fazia-nos sentir que uma parte dele morrera, embora ignorássemos essa sensação: não tinha nada a ver connosco.
– Não fumo.
– Toda a gente fuma, Mr. Alfred.
– Nesse caso não devo ser ninguém, Basil – disse-o a gostar da ideia de aborrecer um homem que poderia ser complicado perturbar.
– Vasyl. Vasyl. Não é um nome difícil. É um bonito nome ucraniano. Também me podem chamar Slavko. É outro nome que eu tenho. Um nome melhor.
– Queres dizer, um nome do meio? Como Basil Slavko?
– Quero dizer, o meu outro nome. Outro nome para outras coisas. Vasyl – aquilo soava tão incomodativo quanto uma voz morta poderia soar, mas ainda não era satisfatoriamente perturbador.
– Onde arranjaste o isqueiro? – e acrescentando Vasyl, certificando-se de que o dizia de uma forma cansada e demasiado alto, porque ninguém tinha de se aborrecer com os nomes das pessoas, isso já acabara: insistir em pormenores era absurdo, e talvez porque quisesse provocar uma briga. Alfred perguntava-se se isso, de facto, era o motivo por que viera: dar um pequeno passeio pela charneca para fazer exercício e para aprender, mandar alguém derrubar-nos com um soco, depois fugir. Para variar.
Mas agora Vasyl apenas soltava risinhos despropositados num tom uniforme que enjoava Alfred ligeiramente e que também o fazia sentir-se ridículo:
– Tire um – o maço oferecido com uma pequena e nítida pancada junto ao ombro. – Fume um. Havia de gostar – Vasyl encostado ao seu braço, a respirar, a transpirar. – Chesterfields verdadeiros – o uniforme dele estava possivelmente mais quente do que o de Alfred.
Alfred à espera até que o idiota desistisse.
– Fuma tu um por mim. Não sou ninguém, lembras-te? Não tenho outro nome. Não tenho outras coisas.
– Está bem.
Alfred lançou-lhe um olhar de soslaio, apanhou Vasyl a acender um segundo cigarro, segurando, nessa altura, um em cada mão e sorrindo – olhos profundos a ficarem preocupados, ou certamente ocupados com um cálculo qualquer, uma urgência – mas a boca aparentemente amistosa e satisfeita. Tinha uma pele estranha, ele, picada das bexigas – fazia Alfred pensar em granadas a desfazerem-se em estilhaços, em explosões. O que não estava de acordo com o seu estado de espírito.
– Nem sei dizer o que pareces – Alfred calou-se, voltou a alinhar a cabeça contra as palmas das mãos e esticou-se.
– Pareço um homem com muitos cigarros – disse-o com ênfase, num tom cortante, e a seguir soltou um riso seco que depressa passou a tosse, silêncio, depois a uma experiente passa à esquerda, outra à direita.
Eu nunca fumei, acontecesse o que acontecesse. Diziam que eu acabaria por fumar, mas não acabei. Ma disse-me para não o fazer – não me queria ver a gastar todo o meu dinheiro e, em seguida, massacrava-me com acidentes que eu poderia ter – gasolina e motores e incêndios. Disse-lhe que não precisava de se preocupar. Mas, seja como for, fazemos o que a nossa mãe diz, não fazemos, amigo? Temos de tentar ser fiéis a isso.
E eu enviei-lhe um pouco do meu dinheiro. Não o suficiente.
Não que ela tivesse pedido.
Ela nunca teria pedido.
Eu tentei.
Isso é que importa. Que tentei.
Oh, sim. Eu era um bom menino. Assassinei e roubei e usei palavras caras, mas nunca fumei e era um bom menino. Um rapaz impecável, eu.
O céu estava a olhar para baixo, para Alfred, subitamente interessado, e ele olhou para cima, os olhos semicerrados, sentiu um equilíbrio consentido entre o céu e ele, a desenrolá-lo, a lavar-lhe os membros.
– Deve ter havido uma tempestade algures – ele estava suficientemente lento para perder completamente a sustentação, para se inclinar numa descida suave.
– Hum.
Névoas altas e obstruções nebulosas, nos locais onde o azul era mais forte: ele aprendera o que isso significava.
– Cirrostratos… humidade… Lá em cima é gelo. Tudo gela lá em cima – apanhei a ideia antes que ela abrisse caminho mais para a frente e se tornasse desagradável. – Deve ter havido uma tempestade algures. Há pouco tempo – e estava contente pelo facto de não a ter ouvido, de ninguém a ter ouvido, porque estava muito tranquilo no momento, mas nunca se sabia o que se poderia transformar em tensão, o que se poderia tornar uma inquietação para alguém. As pessoas eram imprevisíveis: no fim de contas, estar com elas mostrava-nos sempre a mesma coisa. Que não havia nada em que confiar. Qualquer pessoa podia estilhaçar-se à nossa frente.
Mas isso é um pouco deprimente de mais: não é, amigo?
O que não parece nada coisa nossa. Somos tão felizes quanto o maldito dia* é comprido.
Sim, mas este maldito Day[1] não é comprido. Um metro e sessenta e cinco de meias, muito obrigado. Isso é baixo.
Isso é utilmente baixo.
Como Pluckrose colocava sempre a questão: «Este é o meu amigo e colega, o Sargento Alfred F. Day. E, antes que você o diga, ele não é nenhum sacaninha enfezado, ele é utilmente baixo. De outro modo, não poderíamos fazê-lo caber na torreta, pois não?
Pluckrose, que também era sargento, embora a patente não lhe assentasse bem – não que uma patente de oficial lhe tivesse assentado melhor –, o seu rosto era simplesmente incompatível com as Instruções do Conselho de Aviação: tinha a atmosfera errada e os superiores levavam-no a mal. A acrescentar a isso, Pluckrose não conseguia calar-se nunca.
– Bem, eu não pedi para vir – espreitando por cima da cabeça de Alfred no primeiro dia, a irradiar alegria no hangar cheio de azul: homens de pé como se não pudessem pensar em fazer mais nada; outros à procura, como se estivessem atrasados, como se tivessem perdido alguma coisa, ou tivessem sido esquecidos; outros que não estavam sozinhos, a começarem a não estar sozinhos. – Na realidade, o Rei pediu-me. Recebi um convite escrito: através de intermediários, como era de esperar, mas devia fazer diferença, pensar-se-ia. É claro que me ofereci como voluntário para este papel. E nem uma única alma foi delicada comigo desde então, a não seres tu – sorriu para baixo e Alfred não viu nele qualquer dúvida, qualquer mal-estar, apenas aquela sensação de que se encontrava numa recepção. – Eu não teria aparecido, se tivesse sabido. Quer dizer, isto dificilmente terá sido organizado com eficiência, até aqui. Parece mais uma desordem total do caralho – e a afabilidade presente na sua voz fizera do seu praguejar não uma coisa pessoal nem uma explosão de raiva, mas mais um acréscimo musical. – A sério. Quer dizer, um homem podia morrer de frio aqui, para começar. E pior ainda, desconfio.
Alfred, as palavras presas debaixo da língua, envergonhadas de si próprias, mas saindo com um som decente, disse:
– Sim – estava a ser lacónico, agarrando-se às frases com que estava seguro, aquelas que talhara com o buril de Staffordshire, que podiam soar completamente RFA[2].
Mentalmente, ele ainda praticava.
Yo bin e yo bay. Yo doe e yo day[3].
Tu és ou tens sido, e tu não és ou não tens sido. Tu fazes e tu não fazes, ou não fizeste.
Tudo a ficar mais demorado, quando se começava a dizê-lo daquela maneira – e áspero, também, os h por toda a parte, a passarem-nos rasteiras, tendo de passar à pressa por cada um deles.
I bin.
Eu sou. Eu fui.
Como fui. A forma suave como fui.
O pai sempre dissera:
– Não fales com suavidade – mas ele queria dizer «não fales» como se uma pessoa fosse estúpida, ele queria dizer que Alfred era estúpido. Agora Alfred estava a falar com dureza.
Mesmo assim, não soava nada como Pluckrose, não queria soar – Pluckrose tinha vindo de outra Inglaterra. Pluckrose poderia ter estado na rádio: talvez inspector da polícia, amigo de Paul Temple, ou um cavalheiro com papéis desaparecidos que procura a ajuda de Sexton Blake. Um cavalheiro com montes de coisas para dizer e agora empenhado em listar as suas queixas.
– Algumas daquelas latas grandes de compota, sabes? São da Grande Guerra. Compota de ameixa e de maçã, devolvida das trincheiras. Isso não pode ser bom augúrio.
Alfred não ia soar como Pluckrose, só iria soar como o seu eu alterado, o seu melhor palpite sobre a forma como um sargento Day seria.
Para as outras alterações de Alfred houvera treino, houve ajuda, e ele habituara-se a tudo aquilo com um género de prazer: adaptando as mãos, enfiadas uma na outra para se pôr à vontade, colocando numa a alça da alavanca de armamento por cima da cavilha, verificando o curso no bloco da culatra, aprendendo os seus próprios movimentos, a sua nova forma – o homem no centro da torreta, o coração de uma arma.
E isso tivera o sabor da escolha, de ser livre. Algumas manhãs esse sabor acendia-se na sua respiração: uma autorização para manter esta pele fresca, para amar os padrões e os hábitos da vida do seu aviador. Agora, no entanto, podia ser diferente, isto era um lugar operacional e sério, demasiado movimentado para arranjarmos ajuda. Partes dele próprio, como a sua fala, não estavam muito bem, não funcionavam bem, e talvez isso fosse sinal de outras falhas mais graves que ele ainda não encontrara. Via-se a si próprio a falhar, a esvanecer-se, desaparecido para o Norte, para um lugar frio e sem graça, um maçarico a caminho de cascas de batata e latrinas. E não seria isso um género de cobardia: um medo que não temos de admitir, porque simplesmente nos esgueiramos ao perigo ao cometermos demasiados erros? E talvez tenhamos magoado outras pessoas antes disso, porque estávamos assustados. Foi isso que sempre nos disseram – entrem em pânico e danificarão equipamento valioso, destruir-nos-ão a nós, homens treinados.
Pluckrose ainda falava, enquanto olhava para a entrada, para o tecto, para Alfred e para a testa de Alfred – que estava franzida – e para a asa solitária que se encontrava por cima do bolso que Alfred tinha no peito: as letras AG bordadas por baixo, o emblema do atirador, o sinal da sua competência. O primeiro teste que Alfred alguma vez passou. O primeiro que alguma vez fizera.
Pluckrose piscou o olho.
– Mas não andas à procura para ti próprio, pois não? Estás a seguir instruções? Vais avançar e reunir uma tripulação?
– Encontrei-te a ti para o comandante – estas palavras eram uma cadeia resmungada de ruídos do Black Country[4]: I fownd yo fur the skippah –, mas não fazia mal, porque aqui foi a primeira vez que ele disse a palavra – comandante – e sentiu o fogo da emoção a arder dentro do peito, por baixo do peso daquela asa solitária. Alfred tinha um comandante, estava a seguir instruções, estava bem. Era firme, enquanto todo aquele sítio bulia de confusões que ele não conseguia entender: homens inquietos e, algures, o bater do vento no metal solto, e eles todos ali deixados, depois das conversas de ânimo e coragem, para se combinarem e sabendo que teriam de se arranjar, de fazer aquilo bem, porque não se podia acabar junto dos homens de reserva e dos enfezados, não se podia ser obrigado a fazer parte de uma tripulação sem mais nada a não ser sacanas com cara de idiotas, os tipos que nos matariam.
Ele pensara-o muito rapidamente mas com muita clareza – os tipos que nos matariam –, permitira-se fazê-lo, mas isso não tivera qualquer impacto, talvez porque tivera esperança de estar já com alguma sorte, encontrando-se arrumado, integrado numa tripulação, seguro.
De estar com sorte e quase a mostrar um sorriso. Ele tinha o seu comandante.
Pudera dizer a Pluckrose:
– Então vamos lá. O comandante está à espera.
Mas o comandante precisa de ser o primeiro. Se tivermos de passar pelo mesmo novamente, teremos de começar por ele.
O comandante é aquele que se encontrava atrás de nós e um pouco a estibordo, aquele que estava ali e que esperava que nós o soubéssemos em toda aquela multidão, para ver se tínhamos consciência dele, se tínhamos instintos. Quando nos virávamos, ele estava sério, de braços cruzados, fixando-nos, a pala do boné inclinada para a frente, de forma que não detectávamos mais do que um vislumbre da sua inspecção: ele mantinha-se em silêncio em relação a isso, mas já parecendo quase satisfeito.
– És casado? – com a pergunta, não estava a gozar connosco, não pretendia faltar-nos ao respeito, deixando transparecer que, de certa maneira, éramos companheiros e que tínhamos passado outros tempos juntos e que aquilo era o fim de uma longa conversa, a última coisa a verificar.
Ele inclinou a cabeça por um instante e nessa altura pudemos ver-lhe os olhos, aquilo que tínhamos a certeza que deviam ser os verdadeiros olhos de um piloto – não fazíamos ideia de nada, mas eles deviam ser realmente assim: o interesse deles demasiado à frente e uma temperatura estranha por trás. Mais tarde, veríamos o mesmo noutros homens e pensaríamos no comandante, quer quiséssemos, quer não.
Apercebemo-nos de que ele estava à espera de uma resposta e balbuciámos:
– Não, meu comandante. Não sou – como se fôssemos meninos e nunca tivéssemos tocado numa mulher.
E, por outro lado, não éramos casados e só nos tínhamos tocado a nós próprios, para depois nos afligirmos com isso, e éramos quase infinitamente mais jovens do que pensávamos.
Infinitamente: uma palavra que aprenderíamos em breve – quando o infinito começasse a aproximar-se e a respirar contra nós. O infinito gosta de guerras, elas dão-lhe uma forma de entrar.
– Não, meu comandante. Não sou.
– Resolvi perguntar. É melhor ter todos solteiros. É mais fácil. É esse o meu plano – e tira o boné, estende a mão, e, antes de nos apercebermos, estamos também com a cabeça descoberta e a apertar-lhe a mão. Há murmúrios de descontentamento e gritos de tantos outros à nossa volta, cotoveladas, à medida que os homens passam, e nós deixamos de apertar as mãos, mas agora estamos juntos. Ele examina-nos o rosto e faz com que paremos, e nós observamos algo de duro a surgir no cinzento claro do olhar dele, e sentimos que ele fará o que tiver de fazer, o que quer que isso possa ser, e parece que ele detectou isso em nós também, e está satisfeito. Faremos ambos tudo o que for necessário.
– Posição? – ele está quase a sorrir.
– Posso ficar com o centro superior, se for preciso.
– Mas preferias não ficar? Preferes ficar sozinho na torreta da cauda.
– Tem-se uma vista melhor – e matam-nos. Somos aqueles que é mais provável que matem: é por essa razão que queríamos aquela posição, desde a primeira vez que ouvimos falar nisso. – Gosto de uma boa vista – desde a primeira vez que ouvimos falar nisso.
– Foi o que pensei – dito de uma forma que tinha um certo calor, quando não exigíamos nada disso: precisávamos apenas de conseguir o que queríamos. E ele deu-no-lo. – Logo vi que tinha o homem certo – e agora ele sorria mesmo. – Sou Peter Gibbs – passava a mão pelo cabelo, deixando-nos perceber que a cor dele o aborrecia quando pensava nisso. – Ou Ruivo. Por razões óbvias.
Tivemos de levantar a voz acima de uma onda de ruído, e era sabido que isso tornava as coisas pouco confiáveis, embora nesse momento não nos importássemos.
– Day, Alfred – ao dizê-lo, surpreendemo-nos a nós próprios por fazermos a continência como deve ser, absolutamente da forma como eles queriam, da forma como um cão bem disciplinado o faria, se pudesse. Esticámo-nos na pose, acrescentámos brilho ao serviço militar, acreditávamos na hierarquia e acreditávamos no homem e acreditávamos em nós próprios, até em nós próprios. Após o que nos sentimos embaraçados, naturalmente. Fazer a continência sem o boné: até que ponto podíamos ser idiotas?
Mas o comandante foi condescendente em relação a isso, à medida que cobríamos a cabeça e nos sentíamos a transpirar – e ele estava novamente a sorrir: para nós, não de nós. Um sotaque de oficial, só que nada parecido com um oficial.
– Eu quero um avião bonito, sargento – isso é algo em que ele tem pensado e que nos diz para que se torne realidade. – Mas acho que não teremos muito tempo para cerimónias – a voz dele encerra uma amabilidade que nos conquista e nos faz confiar. – Escolhi-te em primeiro lugar, porque tens de me guardar a retaguarda. Tu cantas e eu farei com que subamos até ao inferno, se for preciso. Tentarei, de qualquer maneira. Evadir-nos-emos – e em seguida, para o caso de pensarmos que ele é um gabarola, acrescenta: – Mas, na verdade, eu sou um mau piloto. Por isso, esta é a última oportunidade que tens para te afastares…
Esboçamos-lhe um sorriso como resposta, depois insistimos:
– Bem, se tudo o resto falhar, o meu comandante pode sempre levar-nos a voar em círculos no sentido contrário aos ponteiros do relógio e desatarraxar-lhes as lâmpadas dos holofotes… – o que é uma piada muito velha, mas precisamos dela para preencher a pausa, porque nenhum de nós pode adivinhar como serão as coisas, mas é impossível admiti-lo, não há aí futuro, e, por isso, deixamos que um plano pareça tão plausível quanto outro, porque todos eles têm de ser pelo menos meio loucos e nós ambos temos de soar como se tivéssemos a certeza, quando não a temos, e desconfiamos de que podemos começar a rir, a simular uma luta contra um adversário imaginário, a cantar Jerusalém[5]: não podemos prever; qualquer coisa serve para nos desencaminhar a mente, porque estamos realmente aqui e a começar a fazer parte da tripulação de um avião e de uma guerra, nós próprios no todo de uma guerra, e porque estamos tão vivos, tão infinitamente, infinitamente vivos.
O comandante tosse, não se queixando, mas gostaria de ser o responsável, obrigado, e nós gostamos de nos acalmar por ele, com ele a fazer-nos concentrar. Podemos concentrar-nos – um bom atirador concentra-se.
– Sargento Day, vou procurar por aí um apontador de bombas. Arranja-me um navegador, está bem? Encontramo-nos junto àquele balde de incêndio daqui a dez minutos.
– Com certeza, comandante.
Já quase nos fomos embora, quando ele nos toca no braço e se inclina para ficar à nossa altura.
– Olha, suponho que um atirador quer disparar coisas, não é? Bem, espero nunca te deixar ter essa oportunidade. A não ser que consigas fazer pontaria com a cabeça a bater no tecto da torreta. Quero fazer-nos passar e bombardear. Bombardear é a nossa função. Se isso não te agradar, deves dizer-me agora.
– É evidente. Temos de bombardear – mas sentimos um desacordo em nós, o sabor da forma como nos treinaram e gostar de atingir o alvo, compreender como nos posicionarmos para matar: 1150 balas por minuto; conhecemos esse processo quente e sinistro.
– Tens a certeza? O que eu quero dizer é que não há lugar a viragens amaricadas.
Nós deixamos passar, porque temos de o fazer: ele é o nosso comandante.
– Se vier um caça na minha direcção e a tornar-se demasiado amigável, atiro-lhe. Mas estarei sempre a cantar – gostámos daquele cantar: da forma como ele colocava a questão. – Não se importe de me fazer bater com a cabeça quando mergulhar: não tem nada de valor lá dentro.
– Quando disseres vai!, eu vou.
– Quando eu disser vai!, o meu comandante vai.
Mas ele verá o seu desejo realizado: o bombardeamento será sempre o mais importante, aquilo para que estamos ali, aquilo para que o Metralhador Harris, o Big Boss, diz que estamos ali. Ele diz que seremos os rapazes que vão trazer o furacão.
E nós não obedecemos simplesmente ao comandante, queremos obedecer-lhe, e isso faz uma maravilhosa diferença. Mesmo que, no fim de contas, seja precisamente a mesma coisa. Dizemos mais do que teríamos esperado:
– Bombardearemos. Bombardearemos os sacanas – e não nos preocupamos, não nos desorientamos, porque estamos à vontade com o segundo-tenente aviador Gibbs; sempre estaremos. O comandante é de confiança, e nós sabemo-lo. – Não se incomode comigo a esguichar balas tracejantes por todo o lado: faça-nos sair da confusão e chegaremos a casa.
– Quando disseres vai!, Chefe.
– Quando eu disser vai!.
Depois surgiu um sorriso diferente na boca dele, um sorriso maior, meio encharcado.
– É isso mesmo, Chefe. Estamos combinados.
Não há razão para ele nos chamar chefe – talvez ele queira sentir-se mais leve, porque acabámos de lhe dar o comando, ou talvez porque somos pequenos e isso torna as coisas divertidas. Nunca chegaremos a saber porquê, mas a partir de agora ele chama-nos mesmo «chefe» e isso leva os outros a fazerem a mesma coisa, até que, pelo final da semana, esse já é o nosso nome. Um nome que não faz sentido escolher, porque nunca fomos chefes de nada.
Quando lhe trazemos Pluckrose, há outro aperto de mão e reparamos na forma como o comandante se movimenta: que ele é amável, formal, e podemos erradamente tomá-lo por não ser grande coisa como homem, mas, na verdade, não há nada de supérfluo nele. Coloca-se exactamente onde escolhe e está tranquilo. Se ele nos batesse, fá-lo-ia muito rapidamente e muito bem.
Não temos ainda apontador de bombas. – Desculpa, Chefe – o comandante encolhe os ombros na nossa direcção, divertido com o facto de estar triste. – Não consegui encontrar ninguém de jeito. Quem é este?
Pluckrose entra na conversa, antes de podermos responder, o que não constitui surpresa.
– Pluckrose. De uma longa linha de Pluckroses: o meu pai e o meu avô, e por aí fora, todos eles Pluckroses até ao último homem, e a minha mãe, é claro, apanhou o nome, arrancou-o à força, embora possivelmente sob a influência da bebida, e, assim, tendo-o aguentado eles próprios, ficaram encantados por mo poderem passar a mim – ele parece não respirar. – Aqueles que ainda estão vivos. Os outros podem muito bem ter sido menos entusiastas, embora, quem sabe? Uma vez Pluckrose, suponho que Pluckrose para sempre – e o comandante observa-o, impenetrável e tranquilo, e perguntamo-nos se cometemos um erro terrível ao trazer-lhe um Pluckrose. – Pode imaginar quanto anseio por conhecer novas pessoas, especialmente miúdas, e, caramba! Como gostei das minhas escolas, todas as oito. Não tenho realmente qualquer formação de que falar, mal sei somar, por isso não confiaria de forma alguma nos meus cálculos, a geometria é terra estranha para mim, e as terras estranhas, é evidente: também são para mim terras estranhas. Struan Macallum Pluckrose, é esta a bagagem completa, um pequeníssimo toque de Escócia do lado da minha mãe – Pluckrose pisca o olho ao comandante, permite um momento de notável silêncio: – Gostaria de ver a minha caderneta de voo?
Estende-a antes de ter perguntado, o rosto a debater-se entre a resignação e um peculiar género de satisfação, e o comandante examina todas as páginas muito calmamente, fecha-a, devolve-a com suavidade.
– Bem, ninguém disse que és perigoso.
– Posso enganar muito, se for preciso.
– O que pode dar jeito.
Pluckrose a expirar, parecendo encolher um centímetro e já sem estar prestes a berrar.
– Espero bem que sim.
– Peter Gibbs, o Ruivo – o comandante esfrega o pescoço, olha para o navegador, que é Pluckrose, e depois para o atirador da cauda, que somos nós, e depois para o hangar, onde se formam mais grupos, pares e equipas de homens a ganharem definição. – Isto é só um palpite, sabem... – murmura ele, apenas suficientemente audível para nós dois, a sua tripulação –, mas penso que podemos levar algum tempo a habituar-nos. Assim, talvez a partir de agora devêssemos viajar en masse, formar num pequeno e belo V e apresentar-nos juntos. Então eles podem abater-nos ou deixar-nos a todos de uma só vez.

 

 

[1] Joga-se com a palavra day, que significa «dia» e que, aqui, é também o apelido do protagonista. Nesta passagem, joga-se ainda com os antónimos long e short e com o seu duplo sentido: longo, comprido, alto, e baixo, curto, respectivamente. Usa-se ainda o adjectivo relacionado little, que significa «pequeno» (N.T.).

[2] Real Força Aérea (N. T.).

[3] Dialecto da região de Staffordshire, no centro de Inglaterra (N.T.).

[4] Black Country – distrito siderúrgico de Staffordshire, no centro de Inglaterra, onde se fala um dialecto (N.T.).

[5] Conhecido hino com letra de um famoso poema de William Blake e música de Charles Hubert Parry (N.T.).


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