O sobrenatural é natural (1.º capítulo)

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A RESPOSTA DA CRIANÇA

 

            É habitual supor que os elementos mais simples de uma questão são os que primeiro saltam à vista; infelizmente, porém, na busca da verdade, é frequente esta aparecer em último lugar. É pelo menos o que acontece àquela tribo lamentável cujos membros perderam de tal maneira o sentido da verdade, que não fazem outra coisa senão gabar-se de que andam à procura dela. São como aquele cego que apalpava um elefante pensando tratar-se de uma vaca, e para quem a tromba era uma cauda fora de sítio e os dentes eram cornos fora do lugar; assim, através de toda uma sucessão de hipóteses deste género, o nosso cego chegava naturalmente à conclusão de que se encontrava em presença de uma vaca verdadeiramente extraordinária – em vez de chegar à conclusão, bem mais simples, de que aquilo que tinha diante de si não era vaca nenhuma. O mesmo se pode dizer sobre aqueles erros formidáveis que têm o costume de se tornar moda no mundo moderno. Ou talvez seja mais correcto falarmos de um homem que anda à procura de um buraco num casaco, e que finalmente se apercebe de que andava era à procura de um buraco numa rede, que é um objecto que está cheio de buracos, e que só tem buracos. Assim, depois de ter reflectido durante anos sobre um sistema moderno, tentando descobrir em que ponto é que este errou, a pessoa chega finalmente à conclusão de que o referido sistema é, todo ele, um erro do princípio ao fim. Por mim, não olho com nenhum tipo de superioridade para estes diligentes investigadores, pelo simples facto de que eu próprio fui um deles; interessa-me fazer notar que, como referi, a última descoberta era sempre a mais simples, e que só depois de tentar de mil maneiras, e com todo o meu engenho, detectar um sentido numa qualquer filosofia da moda, recebia do alto uma luz que me revelava que a referida filosofia era, muito simplesmente, desprovida de qualquer sentido. Coisa que não é propriamente motivo de orgulho, porque esta ausência de sentido era reconhecível ao primeiro golpe de vista; o máximo que posso dizer a meu favor é que, confrontado com várias engenhocas deste género, as percebia o suficiente para desconfiar delas, muito antes de as conhecer o bastante para repudiá-las. Mas o argumento originário e definitivo permanecia oculto até ao final. A primeira vez que saltava à vista estava já completo e axiomático, e há de facto um quê de picante na ideia de que o segredo último de todas as coisas é axiomático. Um excelente exemplo do que pretendo dizer é o daquilo a que poderíamos chamar a teoria teutónica da Europa, e em especial a teoria teutónica de Inglaterra.

            Do meu ponto de vista actual, resumirei da seguinte maneira os preliminares desta teoria. Os alemães, que têm por temperamento uma tendência para a vaidade, e que se sentiram a determinada altura exaltados pela vitória, meteram na cabeça que pertenciam a uma estirpe de deuses ou de super-homens. Mas depararam com um facto, ou com algo que tem toda a aparência de ser um facto, que fora até então indiscutível para todos, incluindo eles próprios; a saber, que as ciências e as artes criativas, as teorias da guerra e as leis políticas, bem como as formas de cultura e de liberdade, que tudo isto tinha tido origem no sul, nas cidades antigas do Mediterrâneo. Era-lhes impossível – e impossível continua a ser-lhes – gabarem-se de ter produzido alguma coisa importante e concreta: um utensílio engenhoso, uma arma, um instrumento musical, um sistema arquitectónico ou um método escultórico, uma invenção de cálculo, um código, qualquer sistema ou modelo que fosse, que pudessem demonstrar que tinha sido inventado pelos teutónicos e não pelos latinos, que os latinos tivessem derivado dos teutónicos. Ninguém poderia afirmar com seriedade que as estradas romanas fossem estrada saxónicas, ainda que para muitos Walting Street [1] pareça uma expressão o mais saxónica que pode haver. Ninguém se atreveria a dizer que os arcos romanos eram arcos vândalos; embora não seja improvável que algum professor alemão tenha alguma vez querido argumentar que keystone [chave de abóbada] é um belíssimo exemplo de composto teutónico, à semelhança de Handschub [luva] e Fingerhut [dedal] [2]. Ou seja, os alemães contornaram a dificuldade por via de um expediente novo, que é tão fácil de aplicar como difícil de contradizer. Tendo contra si a teologia, a geologia, a cronologia e finalmente a concologia, refugiaram-se na psicologia, que é aquela coisa sobre a qual ninguém sabe coisa nenhuma, e sobre a qual se pode dizer seja o que for; e afirmaram que sim, que talvez os latinos tivessem inventado aquelas coisas todas, mas que só os alemães tinham tido suficiente energia mental e moral para se servir delas. Talvez o homem mediterrânico soubesse construir um instrumento musical, mas esse instrumento teria de ser tocado por um nativo da Floresta Negra. Os latinos tinham provavelmente realizado essa tarefa baixa e servil que consiste em construir uma estrada, mas só a coragem e o amor pela aventura de um conquistador teutónico lhe permitiam usar essa estrada com confiança e abandono. Os romanos, com o seu estilo nervoso e decadente, ergueram o arco de 15 metros; mas só quando um alemão passa por baixo desse arco é que se pode dizer que ele é um arco triunfal. As coisas materiais, às quais o filósofo só tem de prestar uma atenção reduzida, podiam ter nascido em qualquer lado; mas só a Alemanha era capaz de produzir homens. Esta ideia foi expressa em toda uma série de factos e figuras: que os teutónicos tinham, por exemplo, rejuvenescido o Império Romano, que o tinham enriquecido com sangue novo, que lhe tinham insuflado uma vida nova, que tinham trazido o fogo e a força a quem apenas tinha graça, que eram eles os homens competentes – tudo modos variados de afirmar que era impossível definir com exactidão que diabo tinham os alemães efectivamente feito. É bastante entediante repetir todas estas histórias; é porém necessário fazê-lo, para recordar a tese daquela simplificação definitiva, já que os poucos que mantinham um vislumbre de racionalidade, que lhes permitia oporem-se a estas soluções teutónicas, deixavam-se geralmente arrastar pela crítica aos pormenores. Pelo menos foi isso que aconteceu com a teoria teutónica de Inglaterra, que é aquela que uma pessoa insular e ignorante como eu está, naturalmente, em condições de conhecer melhor.

            Em Inglaterra, a teoria teutónica foi apoiada por certos argumentos a que podemos chamar dominantes, um dos quais dizia respeito, por exemplo, ao próprio nome do país, «Inglaterra». De facto, supôs-se que este nome teria origem numa tribo de anglos provenientes da boca do Elba; hipótese que, bem vistas as coisas, não tem muito mais significado que a hipótese de que a Escócia foi buscar o seu nome a uma tribo de escoceses provenientes da Irlanda. A experiência de chamar irlandês a um escocês raramente corre bem; e é exactamente o mesmo género de desilusão que espera o etnólogo que explique a um bretão que ele é britânico. Mas o próprio facto de eu ter recorrido a estes exemplos grotescos é uma ilustração daquilo que pretendo dizer; a saber, que o verbalismo dos teutónicos tentou os adversários a contrapor-lhe um verbalismo em tudo semelhante ao primeiro. Envolveram-se em controvérsias à volta de elementos da teoria alemã; e procuraram descobrir os buracos existentes na referida teoria, sem perceberem que ela era uma verdadeira rede. E foi assim que, nas suas ponderadas réplicas ao germanismo, os paladinos da tradição de Roma se tornaram quase alemães. Por mim, não estudei o suficiente para poder considerar-me um estudioso, e ainda menos alemão; mas lembro-me muito bem de também eu andar à procura de palavras vagas para construir um argumento. E note-se que não digo que estes debates em torno das questões da língua não tivessem valor; por vezes, tinham até muito valor, principalmente quando não eram eruditos. Com efeito, é um erro bárbaro supor que a tradição latina foi exclusivamente erudita; pelo contrário, foi também, no sentido mais amplo, uma tradição popular.

            Pode-se dizer que um inglês moderno nunca é tão absolutamente latino, como quando tem a certeza de que é apenas anglo-saxão. Por exemplo, parecer-lhe-á uma atitude gloriosamente insular, ou talvez gloriosamente insolente, elogiar o rosbife, colocando-o acima de qualquer prato da comida francesa – quando a verdade é que o rosbife é francês até na expressão. Ou então dirá de si próprio, com genuíno sentimento saxão, que é um John Bull [3], quando a verdade é que estas duas palavrinhas – uma certamente, e provavelmente as duas – são latinas. Poder-se-ia escrever um artigo curioso sobre a sincera latinidade popular de Inglaterra e das províncias nórdicas do império, e sobre o facto de as lendas, os cantos e os provérbios terem todos gravitado, por assim dizer, para sul. Assim, por exemplo, todas as nossas canções populares tinham por base aquela que tem como refrão: «Ai se eu fosse rei de França ou, melhor ainda, papa em Roma!» Lamento ter de o dizer, mas foi em vão que procurei uma velha canção inglesa que dissesse: «Ai se eu fosse rei da Saxónia ou, melhor ainda, professor de teologia em Weimar!» Mas ainda que, nestas escaramuças verbais, os defensores da romanidade da Britânia tivessem quase sempre razão, pouco ganharam e, em certo sentido, até o que ganharam perderam. Porque os teutónicos tinham em reserva a grande tese romântica da energia: o argumento do espírito com que todas as coisas eram feitas. Bem podiam os pobres estudantes de Oxford discutir em latim: era óbvio que, para poderem discutir em latim durante tanto tempo, tinham de ser alemães. Bem podiam os grandes reis que habitavam Windsor e Westminster falar em francês: era claro que, para poderem falar um francês tão competente e espirituoso, tinham de ser alemães. «Parlamento» podia ser uma palavra francesa, tal como «burguesia» era uma palavra alemã; na prática, porém, só havia deputados e burgueses alemães. «Cavalaria» podia ser uma palavra francesa, e talvez fossem os latinos a emprestar os cavalos; mas só a Alemanha podia superar os cavaleiros. «Catedral» podia ser uma palavra latina; mas a arquitectura gótica é da autoria dos godos, que tinham erigido as igrejas com o mesmo fervor com que souberam incendiá-las. Quem se atrever a afirmar que determinada província da Europa meridional conheceu um renascimento, ver-se-á obrigado a concluir que, numa altura ou noutra, as tribos teutónicas por lá passaram. Da mesma maneira que se um homem de peso tivesse conseguido, pelo facto de ocupar um lugar de peso, combinar fosse o que fosse, esse peso e essa grandeza eram alemães, ainda que o referido homem tivesse toda a aparência de italiano. Em suma, toda a civilização ficara a dever-se às energias do norte, que operavam no sul; a grande sorte dos latinos fora terem um pouco de sangue teutónico a correr-lhes nas veias. Ao ouvir estes argumentos, não pela primeira vez – lamento dizê-lo –, mas talvez pela centésima, ocorreu-me, com enorme clareza e simplicidade, a resposta. E a resposta é, em si mesma, uma pergunta; uma pergunta daquelas às quais se segue um silêncio completo, e que podia muito bem ser feita por uma criança.

            Uma pergunta que é quase excessivamente elementar: se o espírito do norte fez tantos milagres no sul, porque não os fez no norte? Se o sangue teutónico operou com tanto vigor quando estava misturado com o sangue decadente dos celtas e dos latinos, porque conseguiu tão pouco quando era virgem, quando era sangue teutónico puro? Se os alemães, por onde quer que passaram, erigiram catedrais e erigiram parlamentos, porque foi que não ficaram a fazer catedrais e parlamentos na Alemanha? E porque não fizeram, na Floresta Negra e na planície báltica, alguma coisa que atestasse esses supremos dotes criativos e culturais, alguma coisa que pudesse ver-se ao longe? Esta é a simplicíssima pergunta que reduz a pó a máquina das pretensões alemãs. E pode-se dizer, em especial, que a reduz – na frase romana – a pó e sombra. Porque aquilo que verdadeiramente permanece da cultura germânica, e que encontra na própria esfera o seu justo valor, é algo que se assemelha muito a uma sombra, e que tem a beleza, o mistério, a fragilidade e a mutabilidade das sombras. No seu aspecto mais positivo, a Alemanha é uma espécie de país de contos de fadas: as suas populações criaram toda a uma floresta de lendas e tradições, com graça semelhante à das brincadeiras das crianças. Mas aquilo que souberam principalmente encontrar foi a pura voz do sentimento e das emoções: a música. Não só não criaram no domínio prático, como nem sequer se pode dizer que tenham copiado bem ou aplicado bem. Em geral, copiaram tarde de mais e enganaram-se; como quando copiaram a monarquia militarista francesa na iminência da revolução francesa; ou como agora, que estão a copiar o parlamentarismo inglês na iminência sabe Deus de quê. E se teutónicos e latinos retomassem juntos o caminho, o alemão compreenderia que a sua participação neste jogo foi invertida. Porque o latino estava destinado a ser o cavaleiro e o alemão estava destinado a ser o criado. E foi um momento infelicíssimo, aquele em que o criado adormeceu e sonhou que era o senhor.

 

[1] Referência a uma antiga estrada romana, localizada por baixo da actual Edgware Road, em Londres.

As notas a este texto são da tradutora, e visam esclarecer, entre as muitas referências que Chesterton vai fazendo, aquelas que serão menos familiares ao leitor.

[2] Chesterton alude à natureza composta (e complexa) dos substantivos alemães. Assim, Handschub (luva) pode traduzir-se à letra por «sapato da mão», enquanto Fingerhut (dedal) é o «chapéu do dedo».

[3] John Bull, criação literária de John Arbuthnot (1667-1735), viria a tornar-se a personificação do inglês médio.


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