Portugal, a Europa e o Atlântico (1.º capítulo)

Posted by Afonso Reis Cabral on

Parte I
A União Europeia e a Civilização Ocidental
 1. 
A Europa no século XX: Um argumento céptico contra as políticas de perfeição*

 

 

 

É para mim uma grande honra e privilégio proferir esta palestra inaugural da Cátedra Parlamento Europeu/ Bronislaw Geremek – Civilização Europeia no Colégio da Europa.

O professor Geremek tem sido para mim uma referência desde os velhos tempos de Solidarnosc na Polónia, no início dos anos 1980. Tive o privilégio de ler o seu Laudatio quando foi a Lisboa receber o título de Doutor Honoris Causa agraciado pela Universidade Católica de Portugal em 2003. Nessa altura teve a amabilidade de me convidar a participar numa conferência sobre “Vozes da Europa”, que promoveu em Varsóvia na Primavera de 2003. Essa foi a minha primeira visita a este belo campus de Natolin do Colégio da Europa, e devo confessar que fiquei desde logo apaixonado.

Fiquei por isso muito satisfeito quando, em Dezembro passado, recebi uma carta do Senhor Reitor Demaret informando­‑me que tinha sido seleccionado para esta Cátedra promovida pelo Parlamento Europeu em honra do Professor Geremek. Gostaria de aproveitar esta oportunidade para agradecer ao Colégio da Europa terem­‑me escolhido, e gostaria de dar a garantia de que assumirei seriamente as minhas novas responsabilidades.

A minha gratidão para com o Colégio da Europa deve ser extensível à Polónia. Mesmo antes de decidir concorrer a esta cátedra, recebi da Polónia um prémio muito comovente e inspirador: a Medalha de Gratidão, concedida pelo “Centro de Solidariedade Europeu”, sediado em Gdansk, a todos os que apoiaram a resistência dos polacos contra o Comunismo no início dos anos 1980.

Na realidade, a minha ligação à Polónia remonta ao início dos anos 1980. Nessa altura aprendi a admirar este grande país europeu que, apesar de tantas adversidades, se tem mantido empenhado nos ideais nobres da civilização europeia, talvez até mais do que muitos países na Europa ocidental. Como afirmou o Professor Geremek: 

“Acredito que na Europa ocidental o sentimento de pertencer à civilização europeia é menos sentido do que nos países da Europa central. Para nós tem sido sempre uma aspiração, ao passo que na Europa ocidental o processo de unificação tem avançado com dificuldade e tem estado associado a disputas sobre questões de política agrícola. Parecia que a Comunidade Europeia nunca iria conseguir resolver a questão da produção e venda de ovos.”[1]

O Professor Norman Davies fez uma observação semelhante quando disse que “para os polacos, o ocidente é um sonho, uma terra que fica para além do arco­‑íris, o paraíso perdido. Os polacos são mais ocidentais nas suas maneiras de ver do que os habitantes da maioria dos países ocidentais”.[2]

No âmago do que poderíamos chamar de temperamento ocidental da Polónia, encontra­‑se certamente a dupla experiência polaca de totalitarismos do século XX – o nazismo alemão e o comunismo soviético. A Polónia foi, na realidade, o primeiro alvo principal dos dois poderes totalitários ignóbeis que arrastaram a Europa para a Segunda Guerra Mundial.

Winston Churchill, teve consciência deste facto e disse­‑o abertamente a Estaline num telegrama de 29 de Abril de 1945:

“Foi por causa da Polónia que a Grã­‑Bretanha declarou guerra à Alemanha em 1939. Vimos no tratamento nazi da Polónia um símbolo da sede vil e cruel de conquista e subjugação por parte de Hitler, e a sua invasão da Polónia foi a faísca que incendiou a mina. (…) Esta chama britânica ainda está acesa em todas as classes e partidos nesta ilha, e nos domínios de governo autónomo, e todos sentem que esta guerra não terá acabado bem a não ser que a Polónia tenha a oportunidade de total soberania, independência, e liberdade, numa base de amizade com a Rússia. Penso que foi isto que acordámos em Ialta.”[3]

Foi por conseguinte a Polónia que chamou a atenção de Winston Churchill para a ameaça de uma Cortina de Ferro que estava a cair sobre a Europa. Foi a Polónia que esteve na origem do famoso discurso de Churchill em Fulton, Missouri, em Março de 1946, que foi transmitido nos Estados Unidos e se tornou conhecido como o “discurso da Cortina de Ferro”, porventura o ponto de partida formal da Guerra Fria:

“De Stettin no Báltico a Trieste no Adriático, uma cortina de ferro caiu em todo o Continente. Por trás dessa linha ficam todas as capitais dos antigos estados da Europa central e oriental. Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia, todas estas cidades famosas e toda a população à sua volta se encontram sob aquilo a que tenho de chamar de esfera soviética, e todas estão de alguma forma sujeitas não só à influência soviética mas também, em muitos casos, a uma enorme e crescente medida de controlo por parte de Moscovo.”[4]

Tendo sido o primeiro alvo da invasão e ocupação nazi e comunista em 1939, a Polónia acabou por ficar completamente refém da ocupação soviética no final da guerra. Por outras palavras, a Polónia sofreu directamente a grande tragédia da Segunda Guerra Mundial e das brutais consequências de ideias totalitárias que se tornaram muito populares entre alguns intelectuais da Europa ocidental durante as décadas de 1920 e 1930.

Não seria possível determinar aqui as origens do crescimento das ideias nazis e comunistas na Europa nos anos entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais. Mas devemos pelo menos relembrar os efeitos destrutivos da Primeira Guerra Mundial nas referências políticas e morais europeias. Como expôs o grande historiador germano­‑americano Fritz Stern, grande amigo do Professor Geremek, 

“Ela (a Primeira Guerra Mundial) foi um cismo, nas palavras de Elie Halevy, um cismo que destruiu a velha Europa histórica. Agora, ainda mais claramente que antes, podemos ver a guerra como prelúdio à era totalitária. Esta primeira guerra total deixou um legado de violência autorizada; inflamou o nacionalismo (e criou repulsa no seu interior e no do seu gémeo aparente, o militarismo); estabeleceu um socialismo de estado baseado na guerra; e exacerbou quase todos os conflitos pré­‑existentes na Europa. Foi extraordinário esperar que daquela guerra emergisse um mundo novo, um mundo seguro para a democracia. Na realidade a guerra criou as condições para o bolchevismo e o fascismo e preparou o cenário para o confronto mundial histórico entre os Estados Unidos e a Rússia bolchevista.”[5]

Os efeitos da Primeira Guerra Mundial foram ainda mais agravados pela grande depressão dos anos 1930. Como observou Timothy Snyder,

“Em 1933, os governos soviético e nazi partilhavam a aparência de uma capacidade para fazer face ao colapso económico mundial. Ambos irradiavam dinamismo numa época em que a democracia liberal parecia não ser capaz de tirar as pessoas da pobreza (…) A Grande Depressão parecia desacreditar a reacção política ao final da Primeira Guerra Mundial: mercados livres, parlamentos, estados­‑nação”[6]

Por outras palavras, a destruição produzida pela Primeira Guerra Mundial e o desespero que mais tarde foi criado pela Grande Depressão pareciam sustentar os principais argumentos contra a democracia liberal e a economia de mercado. Estes argumentos tinham sido manifestamente apresentados por autores e propagandistas oriundos tanto da esquerda radical como da direita radical. Tanto a esquerda radical como a direita radical tinham abertamente denunciado a alegada debilidade do capitalismo burguês e da democracia parlamentar burguesa. Ambos apelaram para a necessidade de uma vontade única e forte que pudesse substituir a alegada debilidade da política parlamentar e a alegada cegueira das economias de mercado.  

Como disse Timothy Snyder,

“De Lenin, os bolchevistas tinham herdado o princípio de ‘centralismo democrático’, uma tradução da historiosofia marxista em realidade burocrática. Os trabalhadores representavam o fluxo directo da história; o partido comunista disciplinado representava os trabalhadores; o comité central representava o partido; o politburo, um pequeno grupo de homens, representava o comité central. A sociedade estava subordinada ao estado, que era controlado pelo partido, que na realidade era dirigido por um pequeno grupo de pessoas. As disputas entre membros deste pequeno grupo eram consideradas como sendo uma representação não da política mas sim da história, e os seus resultados eram vistos como veredictos.”[7] 

Quanto aos nazis, Timothy Snyder acrescenta que, “tal como os bolcheviques, os nazis rejeitaram a democracia, mas em nome de um Líder que melhor pudesse expressar a vontade da raça, não em nome de um Partido que entendesse os ditames da história.”[8]

Pode agora parecer implausível que tais ideias tão ignóbeis tenham angariado um apoio tão grande durante os anos de 1920 e 1930. Mas o facto é que o conseguiram. E temos de nos lembrar das vozes intelectuais corajosas que alertaram contra o feitiço do totalitarismo. Entre eles, parece apropriado lembrar dois exilados austríacos que também conheceram de perto o nazismo e o comunismo e que não hesitaram em denunciar a sua crueldade comum. Eles eram Karl Popper e Friedrich A. Hayek.[9]

Ambos denunciaram no nazismo e no comunismo o mito da certeza e a presunção fatal inerente à crença no conhecimento abrangente de apenas uma mente ou de um único centro de comando. Ambos argumentaram que o conhecimento é provisório, progride através da tentativa e erro, necessita de interacção descentralizada entre indivíduos e instituições. Na realidade, a nossa civilização baseia­‑se neste tipo de conhecimento interpessoal, frequentemente tácito, que nenhuma mente isolada ou centro de controlo único podem sequer processar, muito menos projectar. Por isso, tanto Popper como Hayek, – e aqui poderíamos acrescentar outro exilado austríaco, Joseph Schumpeter,[10] – deram ênfase à interacção descentralizada, a que frequentemente se denomina de concorrência, e à “destruição criadora” como os principais motores do crescimento económico, da liberdade política e, a um nível ainda mais fundamental, do crescimento do nosso conhecimento.

O nazismo e o comunismo eram basicamente duas expressões de uma negação comum da nossa condição humana de falibilidade e imperfeição, que Popper e Hayek tão bem capturaram. A sua tentativa comum de criar um poder político sem limites e sem restrições levaram os nazis e os comunistas à ideia louca de um estado total. Ambos ansiavam por um controlo político total sobre as vidas das pessoas comuns, e por isso odiavam todas as instituições espontâneas e descentralizadas que pudessem representar “mecanismos de equilíbrio” (checks and balances) sobre o seu poder ilimitado.

Odiavam as famílias, as associações civis, as instituições autónomas, a propriedade burguesa e a respeitabilidade burguesa, a livre iniciativa. Odiavam a religião, especialmente a tradição judaico­‑cristã que faz parte das raízes comuns da civilização ocidental e europeia e tem funcionado como um dos constrangimentos fundamentais contra o poder político absoluto.

Ao removerem quaisquer restrições sobre os seus desejos fanáticos, o nazismo e o comunismo produziram um tremendo legado de destruição e de massacres organizados. Timothy Snyder deu­‑nos recentemente um relato actualizado deste legado trágico:

“No geral, os nazis, com muita ajuda local, deliberadamente assassinaram cerca de 5,4 milhões de judeus, uns 2,6 milhões por fuzilamento e 2,8 milhões por gaseamento. […] No total, os nazis mataram deliberadamente acerca de 11 milhões não combatentes, um número que aumenta para mais de 12 milhões se forem incluídas as mortes previsíveis causadas por deportação, fome, e sentenças em campos de concentração. Para os soviéticos durante o período de Estaline, os valores análogos são de aproximadamente seis milhões e nove milhões.”[11]

 Este legado trágico, produzido pelo nazismo e pelo comunismo na Europa do século XX, é uma chamada de atenção dramática para a perspicácia e presciência de Lord Macaulay, o historiador britânico do século XIX que, antecipadamente, imaginou o que poderia acontecer à civilização europeia se, um dia, a tradição judaico­‑cristã fosse retirada do seu horizonte. Nessa altura falou, horrorizado, sobre “a atrocidade da civilização técnica destituída de misericórdia.”

Sessenta e seis anos após o final da Segunda Guerra Mundial e vinte e dois anos após a queda do Muro de Berlim, a Europa assistiu aos efeitos extraordinários de um Governo limitado e representativo num Estado de Direito, e também de uma economia de mercado que se transformou num mercado único no seio de uma Europa reunificada. A Europa tomou consciência dos perigos do poder ilimitado e das modas relativistas. Como relembrou Isaiah Berlin no seu famoso “Dois Conceitos de Liberdade”,

“Se desejo preservar a minha liberdade […] tenho de instituir uma sociedade em que haja necessariamente algumas fronteiras de liberdade que ninguém tenha autorização de ultrapassar. Podemos dar nomes ou naturezas diferentes às regras que determinam estas fronteiras: podemos chamar­‑lhes direitos naturais, ou a palavra de Deus, ou Lei natural, ou as exigências da utilidade ou os ‘interesses permanentes do homem’; posso acreditar que sejam válidos àpriori, ou afirmar que são os meus objectivos últimos, ou os objectivos da minha sociedade ou cultura. […]  A crença genuína na inviolabilidade de uma certa quantidade mínima de liberdade individual implica tal posição absoluta.”[12]

Bronislaw Geremek reforçou esta ideia de “posição absoluta” à qual chamou de “a ideia da dignidade da pessoa humana”. Permitam­‑me que relembre uma das muitas passagens que dedicou a esta ideia:

“É em torno da ideia de dignidade da pessoa humana que se formam as diferentes formas do humanismo europeu, desde os tempos do cristianismo medieval até à época moderna. O apego e a promoção da liberdade e dos direitos do homem, da democracia, do Estado de Direito, do direito das minorias, da solidariedade, são a consequência desta escolha fundamental. As listas dos valores europeus podem ser feitas de formas diferentes. (…) mas o que me parece unir todas estas listas é o lugar central que ocupa a referência à pessoa humana.”[13]

Geremek argumentou que foi esta ideia europeia de dignidade da pessoa humana que não só fez a distinção entre a Europa livre e a Europa ocupada durante a Guerra Fria, como estava também no cerne do sucesso da Europa livre.

“Na Europa dividida entre Este e Oeste, na época da Guerra Fria, ‘o observador atento’ de Varsóvia, de Budapeste ou de Praga não duvidava que a reedificação do Ocidente e a sua organização em Comunidade fossem êxitos extraordinários. O Leste continuava submetido a um regime imperial imposto, incapaz mesmo de criar estruturas de cooperação eficazes, ultrapassadas pela evolução do Ocidente. Esta imagem alimentou do lado oriental um sonho europeu do qual fazia parte a esperança de que viria o dia em que os países submetidos ao poder soviético poderiam juntar­‑se à Europa da liberdade.”[14]

Este sonho eventualmente tornou­‑se realidade, após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Mas antes disso, como relembra o Professor Geremek, “As sociedades da Europa Central pagaram o preço da sua luta pela liberdade nas ruas de Budapeste em 1956, na Checoslováquia em 1968, e na Polónia em 1956, 1968, 1970 e em 1981.”[15]

Agora, vinte e dois anos após a queda do Muro de Berlim, a Europa está de novo unida e a linguagem da liberdade, o Estado de Direito e os direitos humanos foram largamente aceites. Por isso, olhamos retrospectivamente com espanto e incredulidade para o incrível poder atractivo das ideias nazis e comunistas do início do século XX. 

Talvez, devêssemos analisar melhor o ambiente cultural e intelectual mais alargado em que foram semeadas e eventualmente prosperaram as sementes do totalitarismo.

Existe actualmente um leque impressionante de estudos académicos sobre esta estranha constelação de ideias, ou cultura política, que se encontrava na origem do chamado paradoxo alemão: como é que uma das sociedades europeias culturalmente mais ricas pôde permitir o triunfo do nazismo. O Professor Richard Evans produziu sem dúvida um dos mais impressionantes resumos históricos sobre como o Nacional­‑Socialismo acabou por triunfar na Alemanha.[16] Mas algumas das contribuições mais seminais nesta área foram produzidas nos anos 1960 por dois académicos alemães que hoje caíram praticamente no esquecimento. Já referi o Professor Fritz Stern, mas ainda não mencionei o meu generoso orientador em Oxford, o falecido Lord Dahrendorf que, em 1965, publicou o seu importante livro Society and Democracy in Germany

Tanto Stern como Dahrendorf chamaram a nossa atenção para certas ideias com as quais certos homens decentes brincaram, homens que nunca teriam aceitado o nazismo ou o comunismo – e na realidade a maioria não aceitou, quando tiveram de passar por essa experiência. Stern e Dahrendorf referiram­‑se a uma constelação de ideias complexa e assaz vaga que deram relevo à alegada decadência da cultura europeia sob a alegada ameaça do utilitarismo burguês e do capitalismo burguês. Algumas pessoas chamam a isto a oposição entre sociedade e comunidade. Outros disseram que era uma oposição entre o dinheiro e a nobreza, ou entre a civilização materialista e a cultura espiritual. Outros ainda viram um conflito entre o capitalismo anglo­‑americano e a cultura europeia.

Algumas pessoas, possivelmente quase todas, eram homens decentes. Lamentavam o que entendiam ser um declínio na cultura, na moral e nos costumes, um declínio num sentido de dever partilhado entre os seus concidadãos. E atribuíram esta alegada decadência moral e cultural às forças do capitalismo, ao desejo de lucro, à obsessão com a tecnologia e com o cálculo utilitário. Não existe nada necessariamente ameaçador neste género de pessimismo cultural, e a expressão livre deste tipo de pontos de vista faz certamente parte de uma esfera pública dinâmica e livre.

O problema começa quando este pessimismo se torna refém do que Dahrendorf descreveu como “aquelas lamentáveis dicotomias, de que o pensamento alemão é tão rico, onde o contraste entre uma ‘cultura’ literária mais elevada e uma ‘civilização’ técnica mais baixa é apenas um exemplo”.[17] Dahrendorf encontrou uma das principais origens destas ‘lamentáveis dicotomias’ num distinto sociólogo alemão que, em 1887, publicara um livro influente sobre “Comunidade e Sociedade”. Na altura Dahrendorf referiu­‑se à “dicotomia intraduzível de Gemeinschaft e Gesellschaft, que foi inventada por um homem que também gostava de confrontar o bem e o mal na forma de cultura e civilização e foi um dos pessimistas culturais mais eficazes da sociologia alemã, Ferdinand Tonnies.”

A descrição de Dahrendorf da dicotomia de Tonnies foi bastante dura. Dahrendorf afirmou que esta era “historicamente enganadora, sociologicamente mal informada e politicamente iliberal.”

Em primeiro lugar, esta dicotomia ideológica ignora o que Adam Smith tão bem observou na sua tão ignorada, pelo menos na Alemanha antes da guerra, Theory of Moral Sentiments: que quase todas as nossas regras de comportamento civilizado emergiram da interacção descentralizada e não de ordens centralmente elaboradas. Por outras palavras, aquilo a que chamamos de capitalismo e livre troca num Estado de Direito têm na realidade tendência a promover virtudes como a poupança, o trabalho árduo e o cumprimento de promessas entre pessoas pacíficas que aspiram a melhorar a sua condição. Em segundo lugar, a dicotomia de Tonnie abre caminho a uma visão da sociedade como uma unidade uniforme, em vez de uma mistura variada e pluralista de vários modos de vida que interagem uns com os outros e aprendem uns com os outros de forma descentralizada. Em terceiro lugar, uma vez que as sociedades não são e talvez nunca tenham sido unidades uniformes, essa visão conduz inevitavelmente a um apelo ao poder estatal para que introduza a ordem e a uniformidade onde apenas se consegue ver a variedade como sinónimo de desordem.

Dahrendorf chamou a isto “o mito do estado”. Anula completamente o papel e alcance adequados do estado numa sociedade livre. Em vez de ser visto como garante da liberdade e do direito ao respeito pelos diferentes modos de vida, o estado é chamado a ser um organizador, o organizador, dos modos de vida das pessoas. A sociedade deixa de ser uma ordem evolutiva, como lhe chamou Friederich Hayek, e transforma­‑se numa organização ou numa ordem fabricada[18]  Por outras palavras, a sociedade deixa de ser o que Michael Oakeshott chama de associação civil ou nomocracia e transforma­‑se numa associação empresarial ou teocracia[19] confundindo assim a principal distinção entre o estado e a sociedade civil. Como sublinhou Bronislaw Geremek, “a distinção entre estado e sociedade, ausente dos modelos orientais de evolução histórica, tem um papel importante na evolução do Ocidente desde a Idade Média.” [20]

Por último mas decerto não menos importante, esta visão da sociedade como uma unidade uniforme e do estado como o organizador da sociedade leva e tem levado a um profundo mal­‑entendido sobre a civilização europeia. Em vez de ser entendida como uma conversação a ser continuada, a civilização europeia é descrita como um modelo a ser alcançado. Um modelo, no entanto, dificilmente pode ser reconciliado com o usufruto pacífico de diferentes modos de vida a que pessoas diferentes estão ligadas. Um modelo exige um confronto de visões do mundo, e não um compromisso pacífico e uma concorrência pacífica entre elas num Estado de Direito. Um modelo carece do que Fritz Stern chama de “uma cultura de equilíbrio”.

Esta cultura de equilíbrio, de moderação e de transigência, de “vive e deixa viver”, é um elemento crucial da nossa civilização. Encontra­‑se na raiz do que fez a Europa diferente e invejável aos olhos de tantos povos fora da Europa que têm sido vítimas infelizes da tirania e do despotismo.

Já há 2500 anos, desde os nossos antepassados em Atenas, que demos um nome a esta raiz da civilização ocidental e europeia.

Esse nome é Liberdade.

Não nos devemos esquecer que no cerne da liberdade se encontra uma cultura de equilíbrio e conversação. Nas  palavras de Michael Oakeshott,

“Devemos considerar uma sociedade completamente governada pelo seu passado, ou pelo seu presente, ou pelo seu futuro para sentirmos o sofrimento de um despotismo de superstição que proíbe a liberdade. A política da nossa sociedade é uma conversação em que o passado, o presente e o futuro têm, cada um, uma voz; e embora algum deles pode ocasionalmente prevalecer, nenhum domina permanentemente, e é por isso que somos livres.” [21]

Foi esta ideia de Europa enquanto conversação contínua e livre entre vozes diferentes e tradições diferentes que foi realçada pelo Professor Geremek nos seus trabalhos académicos sobre a Europa Medieval. No seu livro sobre The Common Roots of Europe, Geremek escreveu:

“A comunidade europeia civil e socio­‑política formou­‑se em volta de várias tradições culturais, entre mudanças na dinâmica evolucionária e em processos de natureza descontínua. A herança cultural do velho mundo, que funcionou como força criativa para a união europeia, em constante renovação, estava ligada à região do Mediterrâneo, enquanto as estruturas e centros continentais tiveram um papel fundamental no desenvolvimento da Europa Medieval.” [22] 

Foi esta ideia de Europa enquanto conversação contínua e livre entre diferentes vozes e diferentes tradições que inspirou todos os grandes defensores do ideal europeu no século XX. Para mencionar apenas alguns, podemos dizer que de Coudenhove­‑Kalergi, a Ortega y Gasset, Thomas Mann, Denis de Rougemont ou Raymond Aron, Jan Patocka ou Milan Kundera, para não mencionar, é claro, Bronislaw Geremek, para todos eles, o projecto europeu e o ideal europeu têm sido sempre entendidos como um projecto contra o poder totalitarista e as visões totalitaristas.

Para estes homens corajosos, o projecto europeu esteve sempre associado à democracia liberal e ao Estado de Direito. Foi Raymond Aron quem famosamente observou que “a democracia é a obra comum de partidos rivais”. E não há dúvida de que a União Europeia tem sido o trabalho comum de partidos rivais. No cerne do projecto europeu na segunda metade do século XX tem havido uma espécie de entendimento centrista entre liberais, conservadores, democratas­‑cristãos e sociais­‑democratas. Este entendimento não apaga, e não tem apagado, as diferenças entre esses partidos e famílias políticas. Como afirmou Raymond Aron, este entendimento comum sobre o projecto europeu tem sem dúvida sido a obra comum de partidos rivais. Seria difícil encontrar uma expressão melhor para a ideia de conversação e de cultura de equilíbrio do que este entendimento comum do ideal europeu entre pontos de vista rivais.

A importância crucial de uma cultura de diálogo e equilíbrio foi posta em evidência por Ralf Dahrendorf mesmo no final do seu pequeno grande livro sobre a revolução europeia de 1989, ou “refolução”, o famoso nome que lhe foi dado por Timothy Garton Ash.[23] Mesmo no final do seu livro, Dahrendorf cita Edmund Burke numa passagem que faz ressonância entre aqueles que prezam a liberdade e a moderação. Burke afirmou e Dahrendorf citou:

“As minhas opiniões baseiam­‑se apenas na longa observação e muita imparcialidade, nada mais…São as opiniões de uma pessoa cuja maior parte da sua vida pública foi dedicada à luta pela liberdade dos outros…Alguém que, quando o equilíbrio da embarcação em que navega se encontra em perigo por uma sobrecarga de um dos lados, deseja levar o pequeno peso das suas causas para onde possa preservar o seu equilíbrio.” [24]

O livro de Dahrendorf foi publicado em 1990, intitula­‑se Reflections on the Revolution in Europe, e foi em grande parte escrito “como uma carta a um senhor em Varsóvia”. Que este senhor pudesse muito bem ter sido Bronislaw Geremek, que era amigo íntimo de Dahrendorf, é uma nota feliz para a conclusão desta palestra como tributo ao Professor Bronislaw Geremek e ao seu empenho pela civilização europeia.

 

[1] Bronislaw Geremek, “Un confine aperto”, Ulisse 2000, 81, Dez. 1990, pp. 124­5, citado por Francesco M. Cataluccio, “In Search of Lost Europe”, Introdução a Bronislaw Geremek, The Common Roots of Europe, Londres, Polity Press, 1996, p. 14.

[2] Norman Davies, Heart of Europe: The Past in Poland’s Present, Oxford, Oxford University Press, 2001 (1884), p. 303.

[3] Winston S. Churchill, The Second World War, vol. 6, Triumph and Tragedy, Londres, edição Folio Society, 2008 (1959), p. 388.

[4] Winston S. Churchill, “The Sinews of Peace” (1946), citado por Martin Gilbert, Churchill: A Life, Londres, Heinemann, 1991, p. 866.

[5] Fritz Stern, The Failure of Illiberalism: Essays on the Political Culture of Modern Germany, Nova Iorque, Columbia University Press, 1992 (1955), p. xiii.

[6] Timothy Snyder, Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin, Londres, The Bodley Head, 2010, p. 17.

[7] Timothy Snyder, op. cit., p. 13.

[8] Timothy Snyder, op. cit., p. 15.

[9] F. A. Hayek, The Road to Serfdom, Londres & Nova Iorque, Routledge & Kegan, Paul, 1944; K. R. Popper, The Open Society and Its Enemies, Londres & Nova Iorque, Routledge & Kegan, Paul, 1945

[10] Joseph Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, Nova Iorque, Harper & Row, 1942.

[11] Timothy Snyder, Hitler vs. Stalin: Who Killed More?”, in The New York Review of Books, Vol. LVIII, Número 4, Março 10­23, 2011, p. 36.

[12] Isaiah Berlin, “Two Concepts of Liberty”, in Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press, 1969, pp. 164­5.

[13] Bronislaw Geremek, “L’Europe en crise?”, in B. Geremek and Robert Picht (eds), Visions d’Europe, Paris. Odile Jacob, 2007, p. 20.

[14] B. Geremek, op. cit., p. 11.

[15] B. Geremek, “The Transformation of Central Europe”, in Marc F. Plattner e Joao C. Espada (Eds), The Democratic Invention, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 2000, p. 70.

[16] Richard J. Evans, The Coming of the Third Reich, Londres, Allen Lane, 2003.

[17] Ralf Dahrendorf, Society and Democracy in Germany, Nova Iorque & Londres, Norton, 1967 (1965), p. 120.

[18] F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1982.

[19] M. J. Oakeshott,  On Human Conduct, Oxford, Clarendon Press, 1975, e Lectures in the History of Political Thought, editado por Terry Nardin and Luke O’Sullivan, Londres, Imprint Academic, 2006. Para uma visão social­‑democrática do Estado de Direito, ver Raymond Plant, The Neo­Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2010.

[20] B. Geremek, The Common Roots of Europe, Londres, Polity Press, 1996, p. 165.

[21] M. J. Oakeshott, “The Political Economy of Freedom”, in Rationalism in Politics and Other Essays, Com uma Introdução de Timothy Fuller, Indianapolis, Liberty Press, 1991, p. 388.

[22] B. Geremek, op. cit., p. 73.

[23] Timothy Garton Ash, We the People: The Revolution of ’89 Witnessed in Warsaw, Budapest, Berlin & Prague, Cambridge, Granta Books, 1990.

[24] Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, Londres, 1790, citado por Ralf Dahrendorf, Reflections on the Revolution in Europe, Londres, Random House, 1990, p. 164

 


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