As Missões Laicas (1913-1926) foram um exemplo paradigmático do diferendo entre Estado e Igreja durante a I República. Nesta obra, Amadeu Gomes de Araújo aprofunda o tema, dando-nos ao mesmo tempo o panorama de uma época conturbada da vida portuguesa.
«O projecto novo e emblemático das missões laicas civilizadoras propunha-se levar aos povos do Ultramar português os grandes valores da solidariedade, da filantropia, do patriotismo e da civilização. Apesar do desfecho que tiveram, devemos reconhecer que constituíram uma experiência séria e inovadora, e é justo recordar a virtude generosa dos que as integraram.»
Mário Soares, in Prefácio
«O trabalho agora apresentado pelo Doutor Amadeu Gomes de Araújo, longamente acalentado pelo seu estudo e pela sua reflexão, conta-nos os méritos e os atropelos epocais de uma factura que se tornará evidente mas que, na época, foi mais um acontecimento entre as ambiguidades e as limitações de uma laicização institucional que, querendo trazer para o plano civil algo que lhe pertencia, tinha estado e ainda estava associado ao domínio da moralização religiosa, isto é, “portugalizar as populações locais”, verificou ser uma tarefa difícil desligada do concurso do catolicismo.»
Professor António Matos Ferreira,
in Introdução
INTRODUÇÃO
Buda não tem idade, tem a idade de todos os mundos. Os crentes aproximam‑se com a piedade que podem e sabem. Buda a todos escuta e olha, mas o que é que acontece interiormente a cada um que se aproxima e reza, e pede? A história missionária é indiscutivelmente a da
expansão do religioso, mas esta ao longo dos séculos foi alterando substancialmente a relação entre povos, linguagens e mundividências. Pode construir‑se imagéticas, com maior ou menor intensidade, da «Cidade do Santo Nome de Deus» onde persiste a fachada da Igreja jesuíta de S. Paulo, pode‑se atribuir um desígnio à «Roma do Oriente» sustentado pelo apostolado xavieriano, mas essa memória, que constrói a realidade, é sucessivamente recoberta por outras carregadas de vivências de homens e mulheres, de novos laços e vínculos, de felicidades e ressentimentos, de comércios e de guerras, de ansiedades e de esperanças.
A elaboração historiográfica transporta sempre subtilezas meritórias de uma consideração atenta. A história dos diversos continentes, a par das deslocações mais ou menos massivas de populações, são também cristalizações de território e de gentes que assumem uma identificação e uma legitimidade próprias. A expansão do Ocidente interveio, alterou e criou novas fronteiras de coexistência, de domínio e da formulação de novas geografias humanas e políticas. A realidade contemporânea é, em muitos aspetos, devedora deste processo, no qual as correntes cristãs encontraram o tempo de Confúcio, de Tao, de Buda e de muitos outros dizeres que alimentaram a própria depuração e as limitações de Jesus, como o Salvador. Uma longa história de encontros e de desencontros: povoada pela vida de muitos, mais jovens ou mais idosos, que inscreveram numa «história escondida» o mistério de uma aventura humana na qual se cruzam lutas, concorrências, rivalidades ao mesmo tempo que compaixão, doação e crenças profundas.
O Colégio Real de Cernache do Bonjardim pretendeu dar resposta à necessidade de formar missionários seculares nacionais capacitados para desenvolver uma ação diferenciada que, à época, era fornecida particularmente por Congregações religiosas. As vicissitudes da sua existência prendem‑se com a complexidade do poder político e eclesiástico
dos séculos XVIII ao XX. A relação entre exercício de soberania e configuração religiosa foi um desiderato que manifestou os limites de tais intentos. Realidade que se tornou mais clara e gritante com as decisões internacionais, particularmente a partir da Conferência de Berlim (1884‑1885), quando a liberdade de culto passou, entre outros aspetos, a tornar os espaços coloniais abertos a múltiplas influências e concorrências, com destaque para os novos espaços imperiais em África. Apesar da congénita sobreposição, e até identificação, entre missão religiosa e missão civilizadora, paulatinamente tornaram‑se de forma operativa duas instâncias onde a concorrência das várias correntes cristãs se disputaram e se digladiaram proficuamente no seio da afirmação e constituição dos impérios das potências europeias. Este confronto decorre em particular do entendimento sobre o que se entende por esfera do religioso, certamente compreendido como integrando o civilizacional, nem tão pouco assume na prática os mesmos contornos no que implicava o desempenho da soberania colonial
Contudo, é exatamente em face desta problemática que se torna cautelar atender à ambiguidade do estudo e ao julgamento historiográfico destas duas dimensões: o religioso e o civilizacional, onde ambas se autojustificavam mas também se faziam concorrência sobre os limites de legitimidade de atuação, não só entre potências mas, no caso específico do catolicismo, entre os interesses e as autoridades eclesiásticas.
A corrente laicizadora, marca de dirigentes políticos, e no caso português de forma notória, confrontou‑se com a insuficiência de meios e de recursos para a ação de consolidação territorial. As missões católicas são encaradas como necessárias, mas surge a partir do Estado a tentativa de dar corpo a um outro tipo de «missão civilizadora» direcionada
aos espaços coloniais. Porém, no que respeita o caso português, o modelo civilizador pressupunha a deslocação de agregados familiares para a realização dessa ação de definição de soberania, centrada no ensino, na assistência e no incremento da agricultura, assemelhando‑se de certo
modo à missionação protestante. Tinha a vários títulos os seus limites, nomeadamente retraía o dispêndio numa atividade atribuída e reivindicada tradicionalmente pelo regime do Padroado português. E os diversos governos republicanos efetivamente nunca pretenderam dar outro espaço às missões evangélicas mesmo aquele que a lei internacional exigia.
Neste contexto, quando a ação laicizadora da Primeira República pretendeu transformar o Colégio de Cernache numa instituição de formação de agentes colonizadores veio provocar uma destrinça entre o contributo do religioso institucional (católico) e aquele do Estado que pretendiam exercer um poder sobre as populações num período e num contexto de grande incerteza desse acatamento por parte das mesmas.
Pode‑se considerar ter‑se tratado de um processo de grande ambiguidade, já que na aparência quando tudo voltou progressivamente a ser «como antes», no respeitante ao Colégio de Cernache na formação de clero secular para as colónias, e até mais consolidada com a constituição canonicamente ereta da Sociedade Missionária Portuguesa, ganhando novo fôlego no contexto do Acordo Missionário de 1940, a missionação como evangelização começava a ter outras exigências que era, sobre todas, o da constituição paulatina de comunidades cristãs distintas daquelas associadas às lógicas dos poderes soberanos coloniais.
O trabalho agora apresentado pelo Doutor Amadeu Gomes de Araújo,
longamente acalentado pelo seu estudo e pela sua reflexão, conta‑nos os méritos e os atropelos epocais de um fratura que se tornará evidente mas que, na época, foi mais um acontecimento entre as ambiguidades e as limitações de uma laicização institucional que querendo trazer para o plano civil algo que lhe pertencia tinha estado e ainda estava associado ao domínio da moralização religiosa, isto é, «portugalizar as populações locais», verificou ser uma tarefa difícil desligada do concurso do catolicismo.
A história dos espaços coloniais e das missões demonstra que este processo desencadeou outras virtualidades, tendo contribuído para a evolução das conceções de missiologia, nomeadamente expressas pelo pensamento pontifício coevo, e para a compreensão entre os Estados e as Igrejas no período pós‑colonial.
O problema das «missões laicas» não foi um simples mimetismo do que também ocorrera em França e sem sucesso idêntico, também não foi só a vontade de apropriação de uma instituição eclesiástica por parte de um poder anticlerical, este processo apresentado neste trabalho transportava através do conflito e de compromissos, questões de destrinça entre evangelização e poder político, cuja pertinência se tornará evidente nas décadas seguintes com destaque para o pós Segunda Guerra
Mundial e dos vários processos de descolonização, particularmente onde o catolicismo teve um determinado protagonismo.
António Matos Ferreira (CEHR ‑ UCP)
Lisboa – Porto, 17 de Junho de 2014