Dante – A Divina Comédia e a Fé (1.º capítulo)

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Capítulo I


 

O presente livro resultou de um dos encontros no Átrio dos Gentios da Igreja de S. Nicolau, sob iniciativa do respectivo Prior, Padre Mário Rui Pedras. Nesses encontros são debatidos determinados temas em diálogo entre um crente e um não crente. A ideia do referido encontro ter como objecto a Divina Comédia partiu de Zita Seabra que lembrou como intervenientes Vasco Graça Moura e eu próprio. Confesso que me seduziu ter como parceiro de mesa o Vasco – sem dúvida hoje um dos maiores conhecedores de Dante em Portugal e um Amigo querido de quase cinco décadas. Ligam-nos também profundos laços intelectuais e culturais.
A partir das notas iniciais, o assunto prendeu-me imparavelmente. Como crente, o aspecto da Divina Comédia que ressaltei foi, obviamente, o da Fé. É certo – observou T.S.Eliot ­–, que podemos fazer uma distinção entre o que Dante «crê como poeta e aquilo que cria como homem». Porquanto «é dificilmente verosímil que um poeta tão grande como Dante possa ter composto a Commedia simplesmente por motivos intelectuais sem fé», a despeito até de que «a fé em si mesma se transforme eventualmente em algo diverso ao tornar-se poesia». Nunca, porém, de tal modo que o sentido essencial e mais profundo desapareça, pois isso equivaleria à desumanização da obra, que se transformaria, então, em mero artifício literário, sem autêntica vivência. A conjugação de muitos pontos da presente análise da Divina Comédia com passagens de outras obras de Dante de que nos socorremos ao longo do texto evidencia a existência de um nó de indissolúvel concordância entre a fé de Dante qua tali e da Comédia enquanto poesia.
O objecto de que então tratei e que fui aprofundando é — friso bem — a Crença tal como ressalta na Divina Comédia. O que, como é natural, não obsta (antes pelo contrário) que haja recorrido às outras obras de Dante, ou a ele atribuídas, sempre que os respectivos textos assumiam valor integrativo, explicativo ou complementar relativamente ao escopo desta digressão.
Porque da Fé na Divina Comédia me ocupo, não intento, por consequência, como é natural, debater especificamente a questão, tão controvertida, de saber se estamos perante uma verdadeira obra de poesia, nem se o texto, sob a forma poética, se reduz a mero conteúdo filosófico e teológico. Tão pouco importa agora ex professo a separabilidade entre um e outro aspecto, e, menos ainda, repensar a fundo os problemas de estrutura literária da obra. Mas nada disso se ignorou.
Dá-se como pressuposto, como ponto de partida, que a Teologia e a Filosofia podem revestir forma poética, sendo a Poesia, como é, um dos modos supremos de objectivação e concretização do pensamento e qualquer daquelas realidades passível de expressão a esse nível — a primeira reportando-se à ciência de Deus ou das coisas divinas, ao acúmen, e a segunda ao amor da Sabedoria, própria apenas dos seres humanos, únicos que possuem noção da ignorância e podem desejar superá-la. Dante, o Poeta, foi reconhecido e celebrado também como Teólogo e Filósofo. Já os primeiros comentadores o sublinharam. Com orgulho, o próprio filho, Pietro Alighieri, o rotula «gloriosus theologus, philosophus et poeta». E Boccaccio declara, na biografia do Poeta, que as três vertentes lhe haviam sido reconhecidas simultânea e alternativamente em vida, pois alguns chamaram-lhe sempre Poeta, alguns Filósofo e muitos Teólogo: «alcuni lo chiamarono sempre Poeta, alcuni Filosofo, e molti Teologo mentre che visse».
As três dimensões co-existem na Divina Comédia. Boccaccio foi, talvez, o primeiro a observar este ponto e a abordar, em relação a Dante, a questão da conjugação de planos, com ênfase especial no da Poesia com a Teologia. «Teologia, e Poesia convengono», assim se sintetisa na Tábua alfabética de assuntos que figura na edição de Florença de 1576 da sua vida do Poeta a divagação que sobre elas aí exarou. Que termina este ponto com as seguintes eloquentes palavras: «E certo se le mie parole meritano poca fede in si gran cosa, io non me turberò, ma credasi ad Aristotele dignissimo testimonio ad ogni gran cosa, il quale afferma se haver trovati i Poeti essere stati il primi Teologanti, e questo basti quanto à questa parte».
Força é reconhecer na Divina Comédia as intersecções e correlatividades entre os diversos planos, que não podem ser descartadas e se encontram presentes. Porque estamos perante uma obra que o autor concebeu e quiz como poética pela inspiração e pela forma e na qual existem conteúdos filosóficos e teológicos, que lhe são essenciais. Que não podem, consequentemente, ser ignorados ou escamoteados, sobretudo quando o que interessa, aqui e agora, é a problemática da crença de Dante, mais precisamente da crença na Divina Comédia, que o próprio autor considerou e insistiu em chamar «poema sacro», («sacrato poema», Par., XXIII, 62; «poema sacro», Par., XXV, 1). A essa problemática se voltará de forma recorrente. Mas desde já se ressalva que, obviamente, é lícito a qualquer estudioso de Dante ou da Divina Comédia escolher uma perspectiva de enfoque, desde que se não apaguem de modo irremediavel as outras. A concatenação especial jamais pode atirar para o esquecimento que existe uma globalidade, uma concatenação geral; que a obra literária é um todo, resultante das suas múltiplas faces, ângulos, incidências. Postergar como inexistente qualquer delas é correr o sério risco de empobrecer o homem e a obra que produziu. Tal aconteceu, por exemplo, com um dos primeiros comentadores de Dante e da sua obra-prima. Pietro Alighieri, o próprio filho do Poeta, que no seu Commentarium, aliás notável a outros títulos, esbateu, reduziu mesmo, a dimensão plurifacetada da obra e do talento deste, preocupado, como anotou Gigliola Messori, em «demonstrar que não só Dante permaneceu sempre na ortodoxia, mas que era um teólogo notável».


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