Estaremos todos falidos dentro de dez anos? (Introdução)

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Introdução

 

Estaremos arruinados dentro de pouco tempo? Estaremos a levar os nossos filhos à ruína? Poucas vezes tais questões terão sido colocadas de forma tão incisiva. Com efeito, à excepção dos períodos de guerra total, nunca a dívida pública dos países mais poderosos do mundo foi tão elevada como é hoje. E nunca os riscos que ela implica para o nível de vida e os sistemas políticos destes mesmos países foram tão ameaçadores como são hoje. Poderá parecer que estamos perante um assunto árido e técnico, mas na verdade não é assim, porque o que está em causa é o nosso destino.
Nomeadamente em França, se não se põe desde já um travão ao crescimento da dívida pública, o próximo presidente da República ver-se-á obrigado a passar todo o seu mandato a impor uma política de austeridade; e a França e cada um dos franceses passarão a próxima década a sofrer as consequências das loucuras cometidas na década que terminou.

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Os sonhos, a premência, a impaciência e a ambição sempre levaram os homens a recorrer a terceiros para conseguirem os fundos necessários à realização dos seus projectos, à consolidação do seu poder, ao aumento da sua fortuna. Primeiro os sacerdotes, depois os comandantes dos exércitos, depois os príncipes e por fim os empresários reúnem, por via da persuasão, da força, do controlo social ou do mercado, capitais cada vez mais significativos, por meio de técnicas cada vez mais sofisticadas.
Durante muito tempo, o soberano – fosse ele religioso, militar ou político – pediu emprestado a título pessoal, quando não tinha acesso a espólios de guerra e não podia, ou não queria, aumentar os tributos e os impostos. E só reembolsava os seus credores – através de espólios de guerra ou dos impostos – quando precisava de voltar a pedir-lhes dinheiro.
Passou o tempo e o soberano transformou-se numa entidade abstracta, que se considera imortal e que, para além de se servir dos súbditos, começa também a prestar-lhes serviços; o soberano é agora uma colectividade, uma dinastia, um Estado, uma nação, cujo responsável provisório transmite ao seu sucessor as dívidas que contraiu. Deste modo, os sucessivos detentores do poder soberano podem seduzir os mutuantes, porque estes têm uma certa garantia de reembolso a longo prazo, ou mesmo de remuneração eterna de um empréstimo perpétuo; nascem assim os mercados financeiros, onde os financiadores têm a possibilidade de ceder as dívidas para com eles contraídas. Estes mercados começam por financiar a indústria e depois apoderam-se dela, chegando mesmo a assumir o controlo do soberano, quando este se encontra excessivamente endividado; deste modo, o Estado cria mercados que, a intervalos regulares, o encostam à parede.
É esta a história da dívida pública, que é também a história da constituição da função soberana e daquilo que pode pô-la em causa. E é este, ainda hoje, o contexto da dívida pública, que se revelou necessária ao controlo provisório da recente crise financeira, porque todos compreendemos que, se ela continuar a crescer, poderá desencadear uma catástrofe terrível.

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Ainda é possível evitar a ruína dos aforradores, dos assalariados e dos reformados de hoje, bem como a das gerações futuras. Para tal, temos de ter a audácia de repensar o papel do soberano – nomeadamente, o seu papel de segurador –, de redefinir a percentagem da despesa pública na riqueza nacional, de restabelecer o equilíbrio entre as gerações sucessivas, de instituir novas regras de contabilidade e de organizar toda uma nova arquitectura bancária, financeira e política em França, na Europa e à escala mundial.
Para melhor compreendermos estas propostas, convém começarmos por esclarecer o próprio conceito de dívida, estabelecendo a sua origem e a forma como se articula com o conceito de soberano.
A primeira dívida do homem diz respeito à sua vida. Deus – ou outra força qualquer – «empresta-nos» a vida; e nós adoramos e detestamos simultaneamente este criador, quer lhe chamemos Deus, um homem, ou outra causa qualquer (incluindo o acaso), porque Ele nos recorda, pelo próprio facto de existir, os nossos limites, os nossos erros e os nossos deveres para com Ele.
Para alguns, a morte surge então como a única libertação possível, porque aquilo que está em jogo é a própria vida e o sentido da vida. Outros, pelo contrário, consideram que o que têm de fazer é libertar-se do Criador; e é assim que, pelo menos desde Édipo e para não ter que dever nada a ninguém, o homem tenta matar Deus ou o pai e erigir-se em criador de si mesmo, inventando a figura do super-homem garante de si próprio, criador dos seus próprios valores, livre de todas as dívidas.
Emprestar é, pois, correr o risco de atrair a ingratidão daqueles a quem se emprestou. Deus corre o risco de ser amaldiçoado pelos homens. Da mesma forma, quem empresta o nome, o trabalho, o amor ou o dinheiro corre o risco de ser destruído por aqueles que consideram nada dever a ninguém – e ainda menos ter o dever de reembolsar.
Inversamente, pedir emprestado gera uma certa dependência, uma certa perda de autonomia relativamente ao credor, uma redução do campo dos possíveis, um ferimento narcísico pelo qual o devedor toma consciência da sua finitude. Pedir emprestado implica confrontar-se com o princípio da realidade.
Mas contrair uma dívida é também ter a coragem de abraçar o futuro; é manifestar o desejo de ter uma vida arriscada, intensa, escapando à dívida original e mórbida para contrair novas dívidas, por sua vez portadoras de novas aventuras, novos prazeres, novos projectos e esperanças.
De uma maneira mais geral, mutuantes e mutuários receiam depender uns dos outros; e cada um deles tenta libertar-se do outro, antes que o outro se liberte dele. É por este motivo que, em várias tradições, se evita a violência que a acumulação de dívidas pode gerar anulando-as a todas a intervalos regulares, seja por via do perdão divino, de um dilúvio ou de uma moratória (manda a Bíblia que tal se faça de quarenta e nove em quarenta e nove anos).
Pedir emprestado significa, pois, contrair um dever para com o credor: dever é um dever.
E aquele que menos aceita o dever é o príncipe; porque o príncipe, por definição, não deve nada a ninguém. Ao contrário do devedor privado, o soberano não arrisca quase nada quando não cumpre os seus compromissos; com efeito, enquanto um devedor privado que entre em falta pode ser privado de todos os seus bens, um devedor público que entre em falta não pode, de uma maneira geral, ser privado de nenhum dos seus bens fundamentais: nem do território, nem dos activos físicos, nem da liberdade, porque é o soberano.
E é-o ainda mais quando se distancia da própria pessoa do príncipe, e passa a ser um Estado ou um povo. Nesta altura, a única coisa que tem capacidade para o obrigar a honrar os seus compromissos é o medo das represálias; além disso, ao contrário do devedor privado – da família ou da empresa –, o soberano transformado em Estado é praticamente imortal, e tem a possibilidade de aumentar os seus rendimentos quase a seu bel-prazer, em proporções quase totalmente independentes do trabalho por ele produzido. Pode mesmo limitar-se a pagar os juros das dívidas sem nunca chegar a reembolsar o capital.
Por outro lado, a história da dívida pública está intimamente relacionada com a história do Estado. Com efeito, durante muito tempo, a dívida é a dívida pessoal de um príncipe, e extingue-se com ele ou com os seus caprichos. Só muito mais tarde, quando o soberano aceita a ideia de que não é proprietário do Estado, de que depois dele não será o dilúvio, e de que todos os contratos por ele assinados comprometem os seus sucessores – só então a dívida se torna verdadeiramente «pública».
A dívida pública começa por ser uma dívida pessoal dos soberanos. Está indubitavelmente presente em certos impérios, desde a Babilónia ao Egipto e à China, ainda que não nos tenham chegado indícios dela. É referida em textos de cidades gregas do século v a.C., onde serve para financiar uma guerra quando o soberano não tem tempo, ou não dispõe de meios para subir os impostos; nestes casos, pede-se emprestado àqueles a quem não se ousa roubar. Para começar, o poder laico pede emprestado ao poder religioso, que acumula as oferendas dos crentes.
É no século xii e nos mosteiros ingleses que a dívida pública começa verdadeiramente a distinguir-se dos príncipes que a contraem. Afirma-se em seguida nas cidades italianas do século xiii, nas cidades da Flandres no século xiv, no império espanhol no século xv, no reino de França no século xvi, na Holanda no século xvii, em Inglaterra no século xviii, nos Estados Unidos no século xix.
Cada uma destas nações domina sucessivamente as nações suas rivais quando consegue – para além dos impostos cada vez mais pesados que cobra – pedir suficiente dinheiro emprestado, seja aos próprios cidadãos, seja ao estrangeiro, para poder financiar guerras que lhe garantam o domínio sobre mercados externos e sobre algumas infra-estruturas públicas, em especial portos, estradas e correios. Deste modo, o soberano credor do passado transforma-se no soberano devedor do futuro; em geral, começa por emprestar aos soberanos mais poderosos que ele, a seguir substitui-os, e finalmente torna-se ele próprio vítima da mesma deriva.
A partir do final do século xix, na Europa, o soberano passa a ser o povo; nesta altura, todos os cidadãos se tornam responsáveis pela dívida soberana. O Estado deixa então de pedir emprestado apenas com o objectivo de partir para a guerra, passando a fazê-lo também para cumprir a sua missão fundamental: garantir a protecção dos cidadãos contra a violência. Esta missão consiste essencialmente na produção de serviços, de transportes, de comunicações, de polícia, de saúde, de educação e no pagamento das reformas. Deste modo, os gastos dos poderes públicos aumentam mais depressa do que as receitas, e, para conseguir financiá-los, o Estado tem de aumentar a pressão fiscal; ou então, nos casos em que o soberano decide não sobrecarregar os contribuintes, tem de pedir emprestado, na expectativa de que o crescimento da economia, e portanto o crescimento das contribuições, lhe permita reembolsar os credores.
E é sempre o mesmo círculo vicioso que se cria: as necessidades públicas constrangem o soberano a criar instrumentos financeiros que depois permitam ao sector privado endividar-se ainda mais por sua conta. Forma-se então uma bolha (por via do aumento do valor dos activos imobiliários, financeiros e outros), cuja explosão obriga o soberano a endividar-se ainda mais, e em seguida a libertar-se dos credores, quer através da criação de novos impostos, quer através do atraso no reembolso das quantias em dívida, quer ainda pela suspensão dos pagamentos. A não ser que sejam os credores a libertar-se dele, expulsando-o da História…
A partir de 1980, os salários estagnam, e as necessidades públicas aumentam, levando todos os Estados a aumentar enormemente a percentagem das receitas e das despesas públicas no rendimento nacional e a contrair empréstimos junto dos aforradores de todo o mundo. Da moratória à inflação, do plano de austeridade à revolução, os soberanos mais pobres sufocam sob a pressão dos credores. Por seu turno, os mais ricos criam novos instrumentos financeiros, desregulam os mercados e atraem todos os mutuantes.
A seguir, as coisas invertem-se: em 2007, descobre-se que a parte do mundo que era considerada rica está em dívida com a outra parte do mundo, a que era considerada pobre. Tal como já tinha acontecido por diversas vezes, uma nova explosão de uma nova bolha de activos desencadeia uma crise bancária e uma depressão, que são rapidamente transferidas para os contribuintes. A dívida soberana dos países ocidentais aumenta então para níveis inauditos em períodos de paz: em 2010, excluindo o Zimbabué, a maior dívida pública líquida é a do Japão, que ascende a 204% do PIB; a dívida pública dos Estados Unidos ascende a 11 biliões de dólares, ou seja, 54% do PIB e 674% dos rendimentos fiscais americanos, com os empréstimos anuais a representarem 248% dos rendimentos fiscais. Em 2010, o Tesouro americano tem de refinanciar mais de metade da sua dívida, operação a que procede por via de capitais provenientes do estrangeiro, metade dos quais com origem Japão e na China. Por sua vez, a dívida pública europeia representa 80% do PIB da União; a da Grã-Bretanha está perto dos 100% do PIB; a da Grécia atinge 135% do PIB, dois terços dos quais são dívidas ao estrangeiro. Em França, a dívida pública representa 77% do PIB e 535% dos rendimentos fiscais; e os empréstimos públicos anuais representam 137% dos rendimentos fiscais. São vários os países, quer da Europa, quer de outros continentes, que, atacados pelos mercados, se preparam em segredo, e apesar das mais recentes decisões de apoio, para declarar falência, ou pelo menos para reescalonar a dívida.
Em suma, os bancos ocidentais deixaram de estar em condições de emprestar dinheiro, porque também eles procuram intensamente reduzir as próprias dívidas; e os soberanos deixaram de estar em condições de agir, porque não podem aumentar as suas dívidas. O Ocidente transformou‑se no fantasma de si próprio.
Estranha situação esta, em que os ricos vivem à custa dos pobres, em que os chineses, que ganham menos de 1000 euros por mês, empenham metade dos seus rendimentos a financiar os salários dos funcionários, dos militares e dos investigadores americanos, que auferem mais do décuplo dos seus rendimentos; em que o sistema bancário mundial financia o consumo dos países do Norte com as poupanças dos países do Sul, retirando de passagem comissões bastante confortáveis; em que os velhos vivem do trabalho dos jovens; em que os soberanos dos países pobres não querem que as suas populações enriqueçam depressa; em que ninguém está realmente interessado em conhecer a dimensão das dívidas dos soberanos; em que a teoria fracassou por completo, não conseguindo sequer definir conceitos, e ainda menos avaliar uma tradução contabilística dos mesmos; e em que todos remetem a factura final para um número interminável de bodes expiatórios.
Muitos dirigentes da actualidade planeiam resolver mais esta situação por meio de expedientes de diversa ordem, convictos de que um qualquer factor imprevisto fará desaparecer a montanha das dívidas; ou seja, recusam-se uma vez mais a ouvir aqueles que afirmam que tudo isto vai acabar mal, esquecendo que, quando é mal gerida, a dívida leva à ruína, tanto dos credores como dos seus devedores. Esquecem que, em muitos casos, os devedores que suspenderam os pagamentos o fizeram na iminência de uma guerra; fecham os olhos ao facto de que o mercado, que faz a corte ao Estado quando as coisas estão a correr bem, não hesita em o atacar quando correm mal.
E a verdade é que as coisas estão a correr mal: ao ritmo actual, a dívida soberana dos principais países ocidentais em breve ultrapassará a riqueza que eles produzem anualmente, numa altura em que estes países não se encontram em situação de crescimento acentuado nem de inflação, contrariamente ao que aconteceu das outras vezes em que a dívida explodiu. Mesmo que as taxas não subam, os juros pagos pelos países ricos sobre as respectivas dívidas públicas mais do que duplicarão entre 2007 e 2014. Cada um dos cidadãos destes países será obrigado a financiar, para além dos seus próprios empréstimos, uma parte da dívida pública igual a um ano de rendimento pessoal, ou seja, três anos de rendimento por activo.
E a Grécia, a Espanha e o Japão não são os únicos países que se encontram nesta situação. Como reagiria, por exemplo, um investidor privado que tivesse de investir numa empresa cuja dívida representasse cinco anos do seu volume de negócios, cujas perdas anuais fossem um quinto do seu volume de negócios, e cujas necessidades anuais de empréstimo ultrapassassem o seu volume de negócios? Ora, esta é a realidade da França dos nossos dias. Se a tendência actual não for rapidamente invertida, o Estado francês poderá – à semelhança de muitos outros – ver-se um dia, e mais cedo do que se julga, incapaz de manter o funcionamento normal dos serviços públicos mais básicos: escolas, hospitais, exército, polícia e pagamento das reformas. E o mesmo se aplica a muitas instituições sociais e colectividades locais.
O pior não é, contudo, uma ideia nova neste domínio: a suspensão dos pagamentos é, desde há muito, a solução mais frequente para os casos de sobreendividamento. Entre 1800 e 2009, verificaram-se 250 suspensões de pagamento sobre a dívida externa e 68 sobre a dívida pública. Os únicos países que, até ao momento, conseguiram evitar a suspensão dos pagamentos foram o Canadá, a Dinamarca, a Finlândia, a Noruega, a Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura, Taiwan, a Austrália e a Nova Zelândia; e alguns deles estiveram muito perto de o fazer.
A ruína de todo o Ocidente é, pois, um cenário credível, tão pouco esperado pelos contemporâneos como o foram, no seu tempo, a ruína de Veneza, de Génova e de Madrid. Tal como aconteceu no passado, poderá ser a desmesura da dívida soberana a desencadear esta ruína, mas também poderá ser ela a obrigar-nos a tomar consciência da sua iminência, constituindo um princípio de realidade pelos constrangimentos que impõe.
Ninguém sabe quando vão os mercados tocar a campainha do final do recreio, impondo o aumento das taxas de juro; nem se as opiniões públicas exigirão que os governos declarem uma moratória sobre as respectivas dívidas soberanas, a fim de poderem continuar a financiar os serviços públicos. Não há rácio que permita distinguir uma boa de uma má dívida, nem estabelecer o nível ideal da boa dívida, nem arbitrar o duelo de morte que os Estados travam com os mercados. Ninguém pode afirmar que há um nível ideal de défices e de dívidas. A História apenas mostra que os mercados não têm dificuldade em financiar níveis de dívidas muito mais elevados do que os previstos por todas as doutrinas; e que há países que funcionam relativamente bem com dívidas iguais a 250% do respectivo PIB, enquanto outros suspendem os pagamentos quando têm uma dívida soberana igual a 20% do PIB. Não há rácio que permita prever com pertinência o desencadear de uma crise, a não ser talvez a percentagem que os pagamentos da dívida alcançam no orçamento: quando eles atingem 50% das receitas fiscais, o desastre é inevitável. De uma maneira geral, a este nível de endividamento público, os governos são obrigados a intervir, reduzindo firmemente as despesas, ou então os mercados reclamam o que lhes pertence.
Na realidade, o desencadeamento de uma crise da dívida soberana depende de um grande número de parâmetros: da confiança dos financiadores, da coordenação dos seus ataques, da capacidade política do país, da evolução da taxa de crescimento, da taxa de poupança, da capacidade que as receitas fiscais têm de pagar as prestações da dívida, do excedente primário do país (ou seja, do saldo orçamental antes do pagamento das prestações da dívida), do estado dos activos, da capacidade que o país tem de pedir dinheiro na própria moeda, da capacidade que o governo tem de aumentar os impostos e de fazer economias. Neste domínio, mais do que em qualquer outro, a economia não passa de uma ciência política; e é mais política do que ciência…
Não convém, pois, dramatizar a partir de rácios simplistas, nem convém descansar porque há países que estão pior. A única coisa certa é que todos os países do Ocidente se encontram em zona perigosa, a zona em que o soberano e o mercado se observam mutuamente, a ver qual dos dois atira primeiro.
Há uma estratégia possível para evitar este desfecho; é uma estratégia muito ambiciosa, quase impossível de aplicar, difícil até de colocar na ordem do dia dos principais soberanos.
Para começar, é necessário compreender e fazer compreender a todos que o pior é possível; que o nosso mundo se encontra à beira do precipício; que a dívida pública resulta da dificuldade de fazer aumentar as receitas ao mesmo ritmo a que aumentam as despesas. A dívida é, mais precisamente, a medida das reticências dos povos em admitirem a inelutável socialização dos serviços de segurança e de cuidados; é o sinal da fraqueza dos Estados e da ausência de consenso social. Em seguida, convém avaliar com lucidez as responsabilidades de uns e outros no endividamento, nomeadamente as responsabilidades do sistema financeiro: seria um escândalo ter de reduzir os programas sociais para financiar as imprudências dos banqueiros. Convém igualmente não ceder à ilusão da inversão do crescimento, que agravaria o peso relativo da dívida e reduziria o poder de compra das gerações futuras. E também é necessário conhecer os comportamentos, as estratégias e as preocupações dos credores; este último ponto é essencial, dado que o soberano só conseguirá sobreviver através da empatia dos mercados. Finalmente, é preciso compreender que a solução não consiste em encontrar novas fontes de empréstimos.
Temos de nos preparar – em especial a França – para proceder a economias consideráveis, para um significativo aumento dos impostos e das quotizações sociais e mesmo para uma certa inflação.
Por muito penosas que sejam, estas medidas são inevitáveis, a não ser que voltemos a ter um crescimento forte, situação pouco verosímil a curto prazo; ou uma organização completamente diferente da administração pública, situação que é ainda menos provável.
Com efeito, para se constituírem margens de manobra efectivas, será necessário montar de tal maneira os orçamentos públicos, que deles resulte um excedente suficiente para colocar a dívida num nível tolerável, mantendo a liquidez e a solvência do soberano, e permitindo financiar as promessas feitas às gerações actuais em termos de pagamento das reformas e dos prejuízos causados ao ambiente. Por outro lado, convirá que a dívida soberana apenas financie as despesas futuras, ou seja, investimentos em infra-estruturas, materiais ou imateriais, capazes de gerar mais crescimento.
Com efeito, a verdadeira solução para a crise da dívida é o crescimento, que pressupõe investimentos concorrenciais, os quais exigem infra-estruturas públicas. O desaparecimento da má dívida pressupõe, pois, o crescimento da boa dívida.
Se não se avançar seriamente nesta direcção, a dívida pública continuará a crescer, e será preciso criar uma «Caixa Nacional de Amortizações» que desdobre o peso da mesma num período mais longo, por exemplo de cinquenta anos. Tal solução, que se assemelha a uma moratória, tem consequências muito negativas, e terá de ser sempre uma solução extrema.
Nessa altura, as reformas atrás sugeridas terão de ser introduzidas na mesma, e sê-lo-ão na sequência de uma crise muito maior, que a sua introdução atempada teria permitido evitar – tal como aconteceu em 1944, quando se acabou por proceder às reformas e por criar as instituições financeiras internacionais com que alguns tinham sonhado em 1920.
O futuro depende da direcção que o debate público assumir. Este debate devia permitir colocar a questão da dívida pública no primeiro lugar das preocupações dos cidadãos, situando-a no seu contexto real: o do lugar do colectivo em sociedades extremamente apegadas à liberdade individual. Competirá então principalmente aos eleitores não permitirem que o poder soberano caia nas mãos daqueles que pensam e agem como se não tivessem de prestar contas dos seus actos às gerações futuras.


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