Como se escreve um romance policial (1.º capítulo)

Publié par Hugo Neves le

O ROMANCE POLICIAL

 

Há uns anos, Carolyn Wells [1], a americana que publicou dos melhores relatos de assassínios e mistérios que temos hoje à nossa disposição, escrevia a uma revista literária lamentando a fraca qualidade das recensões feitas a este género de livros; mas o abuso ainda não foi corrigido. Dizia esta autora que é evidente que a tarefa de recensear romances policiais é entregue a pessoas que não apreciam romances policiais, e observava – não sem razão, a meu ver – que isto é totalmente absurdo: não se entrega um livro de poesia a uma pessoa que odeia poesia, como também não se entrega um romance normal a um moralista rígido que considera que todos os romances são imorais. Se os policiais têm o direito de ser recenseados, têm o direito de ser recenseados por um género de pessoa que perceba por que razão foram escritos. E a autora prosseguia observando que, devido a esta negligência, a natureza da técnica exigida por estes relatos nunca é adequadamente discutida. Por mim, concordo com a afirmação de que se trata de uma matéria absolutamente digna de discussão. Não há melhor leitura, nem leitura mais séria, no verdadeiro sentido da palavra, que a das poucas passagens que os grandes críticos dedicaram a esta questão literária, como a análise do método que Edgar Allan Poe faz no início da novela sobre o gorila feroz, os estudos de Andrew Lang sobre o problema de Edwin Drood [2], ou as observações de Stevenson sobre o romance policial no final de The Wrecker. Qualquer destas análises, orientada com clareza, mostrará imediatamente que esta forma artística tem regras de arte como qualquer outra; e o facto de ser apreciada por quem não tem competência para criticá­‑la não é uma objecção relevante. De facto, o mesmo se aplica a uma boa canção e a um bom romance sentimental. Por efeito de uma curiosa confusão, vários críticos modernos passaram da afirmação de que uma obra­‑prima pode ser impopular para a afirmação de que, se não for impopular, não pode ser uma obra­‑prima. É como se se dissesse que, dado que um homem inteligente pode ter uma dificuldade na fala, então um homem só pode ser inteligente se gaguejar. Pois a impopularidade é uma espécie de obscuridade, e a obscuridade, tal como a gaguez, é um defeito de expressão. Seja como for, nesta matéria eu estou do lado popular: interesso­‑me por todo o tipo de ficção sensacional, boa, má e assim­‑assim, e estou inteiramente disposto a conversar sobre o assunto com um expoente desta arte bem menos capaz do que a autora de Vicky Van [3]. E se alguém quiser observar que os meus gostos são vulgares, pouco literários e nada artísticos, só posso responder que me sinto muito satisfeito por ser vulgar como Poe, e pouco literário e nada artístico como Andrew Lang.

Ora, é tanto mais curioso que a técnica destas narrativas não seja discutida, quanto se trata precisamente do género de produção em que a técnica é quase tudo. E é tanto mais estranho que estes escritores não tenham uma orientação crítica, quanto se trata de uma das poucas formas de arte em que poderiam, de certa maneira, ser orientados. E é tanto mais estranho que ninguém discuta as regras, quanto é um dos raros casos em que se podem formular regras. O próprio facto de não se tratar de um trabalho de altíssima ordem criativa faz com que seja possível tratá­‑lo como uma questão de construção. Mas, embora haja muita gente disposta a ensinar a imaginação poética, ajudar uma pessoa que constrói enredos numa matéria que é de mera engenhosidade parece ser um empreendimento impossível. Há manuais que ensinam a escrever sonetos, como se os coros de doces aves canoras em ruinas abandonadas, ou o remoinho das folhas de esperanças perdidas, ou o sopro da asa imperecível da morte, fossem coisas que se pudessem ensinar como se ensina um truque de prestidigitação. Temos monografias que ilustram a arte do romance, como se a correnteza de horrores revelados em «A queda da Casa de Usher» ou a ironia solar de «O tesouro dos Franchard» [4] fossem receitas de cozinha. Em contrapartida, no caso do único tipo de história à qual se aplicam, em certo sentido, as inflexíveis regras da lógica, ninguém se dá ao trabalho de as aplicar, ou sequer de perguntar se, neste ou naquele caso, tais regras foram aplicadas. Ninguém escreve aquele folheto que todos os dias espero encontrar nos quiosques: «Como se escreve um policial».

No que me diz respeito, apenas consegui descobrir como não se escreve um policial. Mas até dos meus fracassos consegui retirar algumas luzes sobre o que poderia ser o conteúdo do referido folheto. Há um princípio preliminar do qual estou mais do que certo: o ponto essencial de um romance policial é que o segredo deve ser simples. A narrativa orienta­‑se toda para o momento da surpresa – e este deve ser um momento; não deve ser algo que leva vinte minutos a explicar e vinte e quatro horas a guardar na memória com receio de o esquecer. A melhor maneira de testar este elemento
é conceber um quadro imaginário de momentos dramáticos semelhantes. Imaginar um jardim carregado de sombras do crepúsculo, e uma voz terrível que grita com força ao longe mas que se vai aproximando mais e mais pelos caminhos tortuosos do dito jardim, até que as suas palavras se tornam horrivelmente distintas; um brado lançado por uma qualquer personagem da história, uma personagem sinistra mas conhecida – um estrangeiro ou um criado – da qual se espera inconscientemente tal revelação lancinante. Ora, é claro que o brado que irrompe de tal pessoa tem de ser, em si mesmo, breve e simples, do tipo «O mordomo é o pai!», ou: «O cónego é o assassino!», ou: «O imperador cortou o pescoço!», ou qualquer coisa do género. Muitos narradores, porém, sendo excessivos, e mais ainda engenhosos, parecem considerar que é seu dever identificar a mais complicada e improvável série de acontecimentos para a produção de determinado efeito; efeito esse que poderá ser lógico, mas que não é sensacional. O criado não pode quebrar o silêncio do jardim ao crepúsculo para proclamar em alta voz: «O pescoço do imperador foi cortado nas seguintes circunstâncias: sua majestade imperial estava a fazer a barba e adormeceu a meio da operação, fatigado com os problemas de Estado; inicialmente, o cónego tinha intenção de completar a tarefa do monarca adormecido, mas ao recordar
a Lei da Destituição foi subitamente acometido pela tentação de praticar um gesto homicida, de que se arrependeu após ter feito um pequeno corte, atirando a lâmina para o chão; o fiel mordomo, ouvindo o alarido, irrompeu pelo quarto adentro e apanhou a arma do chão, mas na confusão do momento cortou o pescoço ao imperador e ao cónego; o que significa que o caso está arrumado e que os dois jovens apaixonados deixaram de suspeitar um do outro, e já podem casar­‑se.» Tal explicação, se bem que razoável e completa, não é de molde a poder proferir­‑se como exclamação ou a poder ressoar subitamente num jardim ao crepúsculo, qual trombeta do Juízo Final. Qualquer pessoa que queira fazer a experiência de berrar a expressão entre aspas no próprio jardim ao crepúsculo compreenderá a dificuldade a que me refiro. E esta é precisamente uma daquelas experiências técnicas, ilustradas com desenhos, que poderiam constar do nosso pequeno manual.

Outra verdade para a qual deverá inclinar­‑se, pelo menos como orientação, o nosso pequeno manual,
é de que o romance policial não deve ter como modelo o romance, mas a novela. Há excepções esplêndidas: Pedra da lua, de Wilkie Collins e um par de romances de Gaboriau são esplêndidas obras neste estilo; tal como o são, no nosso tempo, Trent’s Last Case, de Bentley, e The Red House Mystery, de Milne [5]. Mas parece­‑me que as dificuldades de um romance policial longo são dificuldades reais, embora possam ser superadas por homens muito inteligentes por meio de vários expedientes. A principal dificuldade é que o policial não é, em última análise, um drama de rostos, mas de máscaras; depende mais da personalidade aparente do que da personalidade real das personagens. O que significa que o autor não pode revelar as coisas mais interessantes acerca das personagens mais interessantes antes de chegar ao último capítulo. O policial é um baile de máscaras, em que toda a gente aparece disfarçada de outra pessoa e só adquire verdadeiro interesse pessoal quando soa a meia­‑noite; ou seja, e como já disse, só conseguimos compreender verdadeiramente o alcance psicológico e filosófico, moral e religioso do livro quando lemos o último capítulo. Deste modo, e do meu ponto de vista, o ideal é que o primeiro capítulo seja também o último; e a dimensão da novela é mais ou menos a dimensão adequada para este drama específico de mero desentendimento. Feitas bem as contas, os policiais melhores de sempre são os da velha série de Sherlock Holmes; e, embora o nome deste magnífico mago esteja difundido em todo o mundo e seja talvez a única grande lenda popular criada pelo mundo moderno, parece­‑me que nunca se agradeceu suficientemente a Sir Arthur Conan Doyle o tê­‑lo criado. Pois também eu, um entre tantos milhões, lhe presto aqui a minha pequena homenagem pessoal.

 

 

 

[1] 

Carolyn Wells (1862­‑1942), poetisa e escritora norte­‑americana que dedicou a maior parte da sua obra ao romance policial.

As notas a este texto são da tradutora, e visam esclarecer, entre as muitas referências que Chesterton vai fazendo, aquelas que serão menos familiares ao leitor contemporâneo.

Os artigos incluídos nesta colectânea foram publicados em periódicos italianos a partir de 1900, e há vários que apenas existem na sua versão italiana.

[2]

Referência a Os crimes da Rua Morgue, de Poe, e à análise de The Mystery of Edwin Drood, último (e inacabado) romance de Charles Dickens, pelo crítico Andrew Lang (1844­‑1912).

[3]

A referida Carolyn Wells.

[4]

Contos de Edgar Allan Poe (1809­‑1849) e de Robert Louis Stevenson (1850­‑1894), respectivamente.

[5]

Émile Gaboriau (1832­‑1873), jornalista e romancista francês, pioneiro do moderno romance policial; E. C. Bentley (1875­‑1956), humorista e romancista inglês; A. A. Milne (1882­‑1956), criador da personagem infantil Winnie­‑the­‑Pooh, dramaturgo e romancista.


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