25 de Abril, Corte e Costura - 1º capítulo

Publié par Rita Martins le

A celebração do 25 de Abril e a Democracia do Futuro

Fundada no século I pelos romanos, a cidade de Augusta decidira celebrar os 40 anos da Revolução como nunca outra fizera. Não seria apenas com a pompa e a cerimónia que a data impunha. Em Augusta exigia­‑se muito mais. A pompa e a cerimónia eram os alicerces a partir dos quais a festa do 25 de Abril seria alçada para outro patamar. Exaltar, sublimar, transcender eram as novas palavras de ordem ligadas às comemorações da revolução. O festejo dos 40 anos do 25 de Abril tornar­‑se­‑ia, pois, um marco histórico quase tão importante como a própria Revolução dos Cravos. O Estado Novo tivera a Exposição do Mundo Colonial; o regime democrático teria a festa dos 40 anos da Revolução (que, pelo seu simbolismo, destronaria a Expo 98) – disso estavam convencidos os dirigentes locais.
Duas ponderosas razões sustentavam o ambicioso projecto. Primeiro, a razão mais nobre: as comemorações do 25 de Abril, ano após ano, estavam a tornar­‑se repetitivas, monótonas e inócuas. Os desfiles pelas avenidas de cravo ao peito com os cidadãos a gritarem «Fascismo nunca mais!», «25 de Abril sempre!», «Juntos venceremos!», assim como os comícios e os concertos de música revolucionária, estavam esgotados e despertavam cada vez menos o entusiasmo da população; com a agravante dos jovens situarem a data algures entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e julgarem que Salazar fora o último rei de Portugal. Segundo, a razão menos nobre: a cidade de Augusta era desconhecida, não tinha belezas naturais ou património relevante, a juventude fugia da terra e andava toda a gente entediada. Combinava­‑se, portanto, uma razão nacional com uma razão local ­– o 25 de Abril também se fizera para desenvolver o interior – e assim se criava um projecto de vital importância para a consolidação da identidade da pátria, o reforço da democracia, o desenvolvimento regional e a alegria do povo.
Por outro lado, também partilhavam a convicção de muitos revolucionários de que, dos três Dês do 25 de Abril ­apenas o segundo D, o da Descolonização, fora totalmente cumprido, enquanto os outros dois Dês, a Democracia e o Desenvolvimento, não tinham sido atingidos. Para uns, mais o primeiro do que o segundo; para outros, mais o segundo do que o primeiro; e para muitos, nem um nem outro. O país permanecia um dos mais atrasados da Europa e quem criticava o poder continuava a sofrer retaliações. Por vezes, dada a impunidade dos poderosos e a promiscuidade entre os negócios e a política, parecia uma república das bananas.
Todavia, como fazer outro 25 de Abril equivaleria a derrubar o regime que trouxera a liberdade e a democracia, um novo 25 de Abril seria totalmente contrário ao espírito do 25 de Abril. Além disso, de nenhuma revolução poderia nascer um sistema social e político perfeito: a Revolução Francesa originara o Terror e Napoleão, a americana conduzira à guerra civil, a russa engendrara Estaline; a portuguesa fora mais pacífica porque somos um povo de brandos costumes e brandos atentados à bomba.
Da revolução nascia uma esperança, um projecto, uma semente cuja futura árvore necessitaria de permanente poda. E as comemorações dos 40 anos do 25 de Abril em Augusta seriam a tesoura que desbastaria alguns dos ramos tortos e dos frutos podres. Só faltava agora definir a estratégia do podador.

Para celebrar como nunca havia sido antes celebrado o 25 de Abril, o presidente da câmara de Augusta, Jaime Fagundes, criou uma Comissão de Honra das Comemorações dos 40 Anos do 25 de Abril. Composta por ele e pelos quatro vereadores da oposição, a comissão tinha a tarefa de programar a jamais vista comemoração do 25 de Abril. Entretanto, com o objectivo de ser publicado um livro que enaltecesse as celebrações em Augusta, Fagundes havia convidado a socióloga Albertina Dias, cujo currículo garantia a qualidade da obra.
O presidente Jaime Fagundes criara a Comissão de Honra porque a tal era obrigado, regra democrática que se via forçado a respeitar. Na verdade, Fagundes entendia que sozinho decidiria muito melhor do que acompanhado por aquela «cambada de energúmenos da oposição» cujo único objectivo era denegrir e sabotar o seu esforço em prol da comunidade. Se nunca haviam concordado consigo, verberando grandes ideias e excelentes medidas com os impropérios de «despesistas», «irrealizáveis», «absurdas», e rematando por fim a protérvia com a inevitável conclusão de Fagundes «não viver na realidade» e «ser um autarca nocivo ao interesse de Augusta», também não iria ser agora que o compreenderiam. Estes tipos estavam na política por não saberem fazer mais nada na vida. Só se distinguiam pelo espírito de contradição, mesquinhez e vistas curtas. Negociar com o FMI, a Troika e a dona Merkel, seria decerto muito mais fácil.
Eis a única certeza que havia quanto ao projecto.
Fagundes congeminava uma festa do 25 de Abril moderna, expurgada de anacronismos e romarias folclóricas. Quanto a isso estavam todos de acordo. O problema surgiria quando apresentasse as suas ideias, devido ao espírito de contradição da pandilha opositora. A primeira reunião da Comissão de Honra era dali a dois dias e já se antevia o resultado: disparates, discussão, gritaria e, no fim, nada. Depois viriam as segunda, terceira e quarta reuniões e tudo continuaria no mesmo impasse.
A democracia tinha este inconveniente: a mania de consultar e pedir a opinião, princípio aceitável na teoria mas que na prática impedia os governantes de fazer avançar o mundo. A Democracia do Futuro – sonhava Fagundes – acabaria por resolver este problema, libertar­‑se deste empecilho que, bem vistas as coisas, era até antidemocrático pois obstruía o progresso e a felicidade das massas. Na Democracia do Futuro, sobretudo no Poder Local, a tomada de decisões seria da competência exclusiva de um só homem. Este poderia de vez em quando escutar a voz dos vereadores para enfim lhes dar que fazer, mas decidiria sozinho, sem dar cavaco a ninguém. O povo elegera­‑o para isso mesmo. Quantos debates inúteis não seriam evitados? Quanto dinheiro não seria poupado? E quantas ideias brilhantes não escapariam ao torpedear da oposição?
Além de mais eficaz, a Democracia do Futuro seria igualmente mais personalizada, pois voltaria a confiar no indivíduo ao invés de diluir as responsabilidades pelo grupo. Assim, cada cidadão que escolhesse a carreira política saberia, ao contrário do que actualmente sucede, que dele se exigiriam elevadas competências e nos seus ombros se colocariam pesados encargos. E uma vez que teria de arcar com tudo isso sozinho, como um Cristo que rumasse ao Calvário desamparado de Simão de Sirene, apenas os homens genuinamente dedicados à causa pública se lançariam nesta via­‑sacra. Os demais – os oportunistas, os interesseiros, os corruptos e a restante gente vil – largariam a fugir da política como o diabo da cruz. Como tal, estando na Democracia do Futuro o poder entregue aos melhores, o espaço entre as eleições seria cada vez maior. E, em certos casos de excelência governativa, deixariam até de ser necessárias. Afinal, não havia cada vez mais abstenção? Mais um problema que a Democracia do Futuro resolveria.
Mas a Democracia do Futuro não ficaria apenas pela selecção dos melhores e pelo reforço dos seus poderes. Alguém tinha uma vez falado em forças de bloqueio; ora aí está a identificação exacta do maior problema da actual democracia. Suprimiam­‑se pois essas forças de bloqueio, como quem ceifa uma erva daninha ou remove uma maçã podre, e o funcionamento democrático seria perfeito. Ao contrário da actual democracia que estava totalmente desprotegida e à mercê dos seus inimigos, qual dama rodeada de dragões sem nenhum cavaleiro protector, a Democracia do Futuro trataria de se defender. Com unhas e dentes. Não haviam já sido derrubadas tantas democracias? E foram­‑no porque os golpistas se aproveitaram da sua fraqueza, porque se permitiu que as víboras medrassem no seu seio, porque o conceito de liberdade nunca foi verdadeiramente compreendido. Mas com a Democracia do Futuro terminariam esses tempos de vulnerabilidade e frouxidão. O seu punho forte esmagaria as víboras à nascença e nunca mais haveriam golpes de estado.
Criava­‑se uma Alta Autoridade de Vigilância Democrática que ficaria de olho nos jornais, livros, programas de televisão, filmes, teatro, obras de arte e restante produção cultural. Qualquer crítica aos governantes ou intuito de destabilizar a ordem e confundir os cidadãos, seria censurado e o seu autor repreendido. Esta Alta Autoridade deveria prestar especial atenção às notícias dos telejornais, pois é ali que o espírito antidemocrático mais facilmente se incuba e alastra. Porque o povo adora televisão e, pela sua natural ingenuidade, é presa fácil do engodo. Aliás, já alguns governos – do seu partido e do PSD – haviam ensaiado esta profilaxia democrática com razoável sucesso. Mesmo com as leis actuais, havia muitas maneiras legais de calar vozes incómodas.
E como nas universidades e entre os sindicatos também por vezes campeia o ódio à vontade da maioria, também lá seriam infiltrados agentes da Alta Autoridade para detectar eventuais conspirações estudantis ou proletárias.
Assim, sendo muito mais ágil, eficaz e potente, a Democracia do Futuro traria estabilidade e devolveria a confiança aos cidadãos. Em suma, tudo o que o povo exigia de um governo. Não andavam os intelectuais a alertar que a democracia estava em perigo, ameaçada por forças tenebrosas? Não passavam o tempo a denunciar falhas e a apontar defeitos ao sistema democrático? Não protestavam os próprios capitães de Abril que «não tinham feito o 25 de Abril para isto»? Eis a prova de que algo estava mal, ou melhor, péssimo. Como tal, o que se exigia agora era uma evolução da frágil democracia do presente para a robusta Democracia do Futuro. Uma democracia entrada nos eixos, adulta, perene, que por fim justificaria o elogio: o melhor de todos os sistemas. O melhor de todos os sistemas, por estar devidamente protegido. Não faltariam velhos do Restelo a arengar e a fazer comparações demagógicas, mas sempre tal sucedia quando havia avanços democráticos. Fosse o fim da escravatura ou o sufrágio universal, todos os progressos da humanidade foram precedidos de resistência tenaz.
As comemorações dos 40 anos do 25 de Abril levaram assim Jaime Fagundes a dar­‑se conta de que o assunto que mais o fascinava, quase obscurecendo essa mesma celebração, era a Democracia do Futuro. Os altos desígnios de uma utopia que poucos se atreviam a sonhar. Porque o 25 de Abril só estaria cumprido quando lá se chegasse. Embalado pelo devaneio, imaginava um porvir edénico para os governantes democráticos cujo único modelo aproximado apenas descortinava nalguns países africanos, na Rússia e, volta e meia, na ilha da Madeira.

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