Foi Assim (1.º capítulo)

Publié par Alexandra Louro le

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A minha vida política é indissociável da adesão ao Partido Comunista Português. Aderi, fiz-me militante, quando frequentava o 6.º ano, actual 10.º, no Liceu Carolina Michaëlis. Vivia então na cidade do Porto. Não fui recrutada pelo PCP: decidi deliberadamente ir ao seu encontro. Não me foi difícil descobri-lo, nem foi complexo tornar-me militante. Tudo se passou em poucos meses, meses esses que marcaram toda a minha vida.

Entrar para o Partido foi por mim sentido como uma enorme honra, e como a trincheira normal onde teria de estar se queria combater a sério a ditadura e lutar por um Portugal livre e democrático. O Partido (e vou chamar-lhe assim, porque assim chamei sempre enquanto fui militante) era a oposição séria, organizada. Nessa época, o PCP era o Partido, porque não havia mais nenhum em Portugal e o artigo (e a maiúscula) sublinhava o facto. Só muito mais tarde consciencializei o conteúdo real da expressão o Partido, e percebi que não era por acaso que assim se dizia. A expressão, que revelava carinho e proximidade, não resultava do facto de em Portugal não haver mais nenhum partido organizado há muitos anos: tinha antes que ver com o tratamento idêntico dado, em todo o movimento comunista internacional, a cada partido pelos militantes de cada país. Era o resultado e a consequência da concepção marxista-leninista de ditadura do proletariado, provinha do conceito de partido único do proletariado, do partido de vanguarda da classe operária, capaz de levar um povo ao socialismo, primeira etapa do caminho para o comunismo. Só bem mais tarde, com a aprendizagem da ideologia marxista-leninista, constatei que em todos os países comunistas os partidos comunistas eram sempre o Partido.

Fiz-me pois militante do Partido com quinze anos, quando vivia com os meus pais no Porto, na zona do Pinheiro Manso, um simpático bairro de vivendas, entre a Boavista e a Foz do Douro. Era filha única de uma família da média burguesia nortenha e tinha uma grande paixão na vida: o ballet. E uma grande ambição: ser bailarina clássica.

Desde os meus sete anos que fazia ballet. Primeiro, com uma professora francesa (com quem todas as meninas, filhas de boas famílias do Porto, aprendiam os primeiros passos), depois na Academia Parnaso e, mais tarde, quando ele veio para Portugal, dançava na escola de Pirmin Trecu. Não exagero se disser que era a melhor aluna, a primeira bailarina (juntamente com a Adriana e a Xani). Levava o ballet a sério e para mim não era uma actividade lúdica. Ia às minhas aulas e ainda dava lições com o professor a outras classes. Praticava todos os tempos livres que tinha e passava sempre duas ou três horas por dia no estúdio de ballet. Fora das minhas, ajudava Pirmin Trecu nas suas muitas aulas. Foi assim que cheguei a ensinar a actriz Paula Guedes e a primeira bailarina da Companhia Nacional de Bailado, Luísa Taveira, e uma senhora Ribad’Ave, Wilma, no estúdio ou na sua própria casa, actual Casa de Serralves.

Um dia, Margot Fonteyn veio dançar ao Porto e eu fui dar-lhe um ramo de flores. A minha mãe oferecera-me, a meu pedido, um livrinho de autógrafos para guardar a assinatura dela. Era o meu modelo, o meu ídolo. No fim do espectáculo, nos bastidores, já eu guardava com orgulho o tal autógrafo que consegui graças à ajuda de Pirmin Trecu (que a conhecia de Londres e com ela havia dançado). O professor disse-me então que nunca se devia pedir autógrafos aos outros: devíamos, sim, procurar que na vida fôssemos nós a dar os autógrafos. Nunca mais esqueci esse momento, e guardo o livrinho só com esse autógrafo. Já nem o do par de Margot Fonteyn eu recolhi.

Nessa altura tínhamos três fantásticos bailarinos na escola: o Joaquim, que era o melhor e um trabalhador incansável, o Alexandre de Sousa, que veio a seguir Teatro, e o Mário Rui Barbosa, meu amigo de sempre. Pirmin Trecu encenou um lindíssimo bailado, comigo no papel principal a dançar com dois deles, com música de Heitor Villa-Lobos: as Bachianas Brasileiras. A coreografia e o bailado eram muito tristes, como é, aliás, a música. Em palco estávamos vestidos integralmente de preto e eu chorava com o corpo a mágoa do meu amor, pescador levado pelo mar…

Ainda hoje me comovo ao ouvir as Bachianas Brasileiras. Dançámo-las em palco, no Rivoli, dançámo-las na RTP, numa noite que gravei na memória, e sempre que as dançámos tivemos grande sucesso. Queria ser bailarina clássica e trabalhava duramente para isso. Com piano ou sem ele, na barra ou no centro, em pontas ou em meia-ponta, treinava e sofria o mau feitio de Pirmin Trecu, que me exigia sempre mais e mais e me batia na perna com o bastão de professor – o mesmo com que marcava o compasso no chão da sala – quando a coisa não saía como ele queria ou sentia que eu não fazia o esforço necessário à perfeição que desejava. Quando ele achasse, eu faria um exame de admissão no Royal Ballet de Londres. Eram esses os meus planos. Numas férias de Verão, Pirmin Trecu conseguiu que eu viesse para Lisboa estagiar com a Isabel Santa Rosa e o Carlos Trincheiras, primeiro degrau para seguir para Londres. Adorei fazer esse estágio com o «Verde Gaio», tanto mais que os tinha visto muitas vezes actuar – o que não é comparável, no entanto, com a experiência fantástica que foi acompanhar as aulas de uma companhia profissional.

Tudo se inclinava para a resolução do grande dilema na minha vida já pressentido pelos meus pais: ia ser bailarina, como era o meu mais profundo desejo, ou ia para a universidade fazer um curso como todas as minhas amigas? Preparava-me para uma guerra dura, pois imaginava que dificilmente a minha mãe deixaria ir a sua única filha para Londres, sozinha, tornar-se bailarina clássica profissional. Como por vezes se dizia lá em casa, isso não era futuro para ninguém. O ballet era apenas parte da formação que os meus pais me queriam dar.

Nada disto aconteceu assim, a vida é sempre mais curiosa do que imaginamos e o dilema rapidamente mudou: escolher entre o ballet e o comunismo.

Entrei, pois, para o Partido sem grande esforço nem muita procura. Quando quis, encontrei-o da forma que era mais comum entre estudantes: pela via do movimento associativo. Estávamos em 1965.

Entre nós, estudantes, circulavam livros proibidos que não se vendiam publicamente nas livrarias mas que todos líamos, ou porque os tínhamos em casa, graças aos pais, ou porque os comprávamos por baixo do balcão, numa das múltiplas livrarias que os tinham importado de Paris. Todo o meu grupo era de jovens ávidos de leituras novas. Líamos tudo o que nos passava debaixo dos olhos: romances, ensaios, poesia… Líamos particularmente os franceses e os brasileiros, Sartre, Simone de Beauvoir, Boris Vian, Stefan Zweig, líamos os clássicos russos (estremecíamos com a Guerra e Paz ou sonhávamos ser Anna Karenina) e líamos atentamente Lenine ou Marx. Jorge Amado era um escritor de culto, líamos toda a sua obra, mas destacavam-se particularmente as duas obras proibidas: O Cavaleiro da Esperança, biografia de Luís Carlos Prestes (secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro), e Os Subterrâneos da Liberdade.

Um dia li, com particular interesse, esse livro proibido, que me chegou pelas mãos de um amigo do meu grupo: uma obra ficcionada de Jorge Amado sobre a luta clandestina do Partido Comunista Brasileiro. Fiquei fascinada. Era exactamente aquilo que eu procurava, e não esqueço a descrição da luta clandestina dos comunistas.

Parece-me que fui tão marcada pelo livro Os Subterrâneos da Liberdade que ele se me gravou na memória. Há livros assim. Li-o e percebi que o meu futuro estava ali traçado e que eu queria ser igual à Mariana, a heroína de Jorge Amado. Mariana, menina-mulher que dedicou toda a sua vida ao seu povo, à causa dos trabalhadores e ao seu grande amor, João. Mariana, romântica e apaixonada por um herói, também ele exemplarmente dedicado à luta, corajoso e vítima da polícia política da ditadura brasileira, que o prendeu e torturou brutalmente até à morte. Mariana ficou a seu lado para sempre, companheira militante, modesta, de uma dedicação ilimitada e um exemplo de coragem.

Ainda hoje me parece que sei o livro de cor, provavelmente mais imaginado do que real. Nunca o reli, com medo de me decepcionar e de não corresponder ao que eu vi nele, tanto mais que é unanimemente considerado uma obra menor do escritor.

Para encontrar o Partido, bastava seguir um de dois caminhos óbvios. Ou levar a sério o que se ouvia na família, que nos avisava para não fazermos isto ou aquilo, já de si meio caminho andado para sabermos como trilhar o caminho proibido; ou seguir o que nos «ensinavam» os professores no liceu, quando nos avisavam do cuidado a ter com as actividades subversivas e nos esclareciam que nunca devíamos ir pelos caminhos perigosos dos associativos, que mais não eram do que comunistas disfarçados.

Na minha família tinha sempre, desde que me lembro de mim, ouvido falar do Partido, e no liceu avisavam-nos regularmente do perigo que constituía o movimento associativo, explicando que se tratava da face legal do PCP. Até essa altura, eu conhecia mal o movimento associativo universitário, pois todos os meus amigos eram liceais e, mais ou menos, da minha idade. Feita uma breve investigação, descobri facilmente onde dirigir-me.

Isolei-me então dos meus amigos de sempre, do meu grupo de bairro, e comecei a frequentar a Unicepe (Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto), fiz-me sócia do Cineclube, da Cooperativa Árvore e inscrevi-me até no Clube de Montanhismo, que também tinha fama de recrutar estudantes para os movimentos da oposição. Numa destas instituições com tão má reputação eu havia de encontrar comunistas, e um deles havia de dar por mim. Do Clube de Montanhismo fazia parte da direcção o poeta Egito Gonçalves. Era tal a minha vontade de entrar para o Partido que me lembro de ir ao fim-de-semana fazer rappel para a serra da Boneca, em Valongo, aterrorizada, já que as alturas sempre me puseram maldisposta…

Além de aderir a todas essas organizações, passei também a frequentar os cafés dos associativos e das associativas, cafés de onde éramos afastados a todo o custo por serem tão obviamente perigosos, como o «Piolho», ou o «Orfeu», por exemplo. Na Unicepe encontrava-se todo o tipo de livros proibidos que devorávamos com o maior interesse, coisa que hoje seria impensável para alguém daquela idade. Só mesmo o facto de serem livros proibidos fazia deles objecto de tamanho interesse. Livros de clássicos do marxismo, livros de Lenine, Marx e Engels, romances de autores portugueses proibidos, como por exemplo do Luandino Vieira, ou do Abelaira, ou dos neo-realistas, livros de divulgação tipo marxismo-leninismo para analfabetos como O Processo Histórico (leitura obrigatória), poesia revolucionária de Luís Veiga Leitão, ou de António Gedeão, autores de romances estrangeiros obrigatórios como o já referido Jorge Amado mas também, por exemplo, Roger Martin du Gard, ou Kafka. Vendia-se tudo, lia-se tudo. O Cineclube do Porto passava todos os grandes filmes do cinema francês e italiano em sessões matinais de domingo, onde o Henrique Alves Costa dava sempre uma explicação sobre o filme e o seu realizador. Em seguida, líamos os Cahiers du Cinéma para perceber as coisas melhor e decidir em definitivo se gostávamos ou não.

Pela Cooperativa Árvore passavam todos os artistas plásticos do Porto, na tradição da Escola de Belas-Artes, e conspirava-se contra o regime. Se a vida cultural da cidade era assim, fervilhante de iniciativas e circulação de ideias, imaginava eu e penso que muitos mais, como seria o mundo se não pairasse sobre nós a censura, o medo e o desejo de que estas actividades não ocorressem apenas, ou quase, só nestas ilhas de liberdade e de cultura? Como seria este país se fosse livre e democrático? E como se isto não bastasse, podíamos cruzar-nos nos cinemas ou nas exposições com todas as figuras históricas de oposição ao regime, como foi o caso com Virgínia de Moura, podíamos contactar e falar com os nossos heróis, aqueles ao lado de quem queríamos seguir.

Os meus planos resultaram muito rapidamente e, um ou dois meses depois, o Partido destacou um dos seus membros, Edgar Correia, na altura dirigente associativo da Faculdade de Engenharia do Porto e da direcção da organização dos estudantes do Porto, para me recrutar.

O Edgar e eu víamo-nos quase diariamente em reuniões associativas, mas começámos a ter longas conversas nos cafés universitários, na República 24 de Março (verdadeira sede do movimento associativo do Porto) e, depois, a marcar encontros de rua (bem mais seguros) em locais longe do centro, cuja existência eu ignorava. Uma vez por semana, passeávamos, sentávamo-nos num banco de jardim, dando a esses encontros um ar muito conspirativo e excitante. Falávamos do Partido, das minhas tarefas de comunista, pagava a quota e recebia a imprensa. Tínhamos a atitude, que eu rapidamente aprendi, de separar esses encontros dos que tínhamos todos os dias nas reuniões associativas ou nos cafés. Nos primeiros, os conspirativos, não tratávamos de assuntos correntes do movimento associativo. Uns meses depois eu era militante do PCP e namorava (por pouco tempo) com o Edgar.

Uma vez recrutada, passei a ser controlada directamente pelo Albano Nunes (funcionário clandestino do Partido), que tinha para mim o pseudónimo de Duarte (o mesmo que o pseudónimo oficial de Cunhal). Foi com o Albano Nunes que aprendi tudo o que era preciso sobre o PCP antes de passar à clandestinidade. Antigo estudante e dirigente associativo do Instituto Superior Técnico, o Albano passou à clandestinidade e a controleiro do sector estudantil do Porto e de Coimbra, depois da prisão de um funcionário que falou na cadeia e entregou grande parte do sector estudantil de Lisboa. Tinha um encontro por mês com ele e contava os dias e as horas que faltavam para ouvir de viva voz a história do Partido, informações sobre as lutas dos trabalhadores, as dificuldades do regime e a certeza da vitória do socialismo e do comunismo.

Nesses encontros, ele explicava-me o essencial do que era ser comunista e dava-me sempre o Avante!, e regularmente também O Militante e outros jornais clandestinos e material de propaganda do Partido. Uma das primeiras explicações que me deu foi precisamente como devia guardar os materiais em casa sem correr o risco de pais, empregadas ou mesmo a PIDE – numa busca sem aviso, como eram sempre – os encontrarem. Segui o conselho e fiz uma espécie de prateleira suspensa por baixo e por detrás da estante do meu quarto. Rente ao chão, mas colado ao fundo da estante, tal era o meu local secreto para a preciosa imprensa que recebia e guardava, enquanto não a passava cautelosamente a outros estudantes. Também me ensinou que devia pagar uma quota mensal, pois o Partido, dizia, vivia da receita dos seus militantes e simpatizantes. Aprendi ainda que o material do Partido não se destruía, mas antes «se passava», depois de lido, a outros militantes – e, se não fosse possível fazê-lo, nalguma emergência conspirativa, deixava-se então em locais «onde algum trabalhador o pudesse apanhar e ler». No próprio Avante!, uma pequena notícia destacada dizia sempre: «O Avante! não se destrói. Com o teu esforço, com o teu espírito de iniciativa, leva o Avante! a pessoas que estão privadas da sua leitura. Deixa-o num lugar onde possa ser encontrado por trabalhadores, envia-o pelo correio a um democrata ou a um amigo.»

A comoção de receber o Avante! era sempre um momento marcante. Segurar na mão um pequeno jornal subversivo, impresso em papel-bíblia, sem erros nem gralhas, era um momento de respeito. E tê-lo todos os meses sem atrasos era uma espécie de milagre e de demonstração de força. Não havia Salazar nem PIDE que fosse capaz de o impedir, há anos e anos. O Avante!, que, como me explicaram, era impresso em tipografias clandestinas existentes no interior (interior quer dizer, em linguagem da época, no país e não em França ou na URSS, isto é, não vinha do estrangeiro), trazia notícias recentes e, no que dizia respeito aos estudantes que eu conhecia, verdadeiras. Cabia dobrado em qualquer pequeno espaço e era de muito fácil leitura, bem paginado e organizado, com secções regulares de apresentação gráfica primorosa e, sobretudo, com uma regularidade espantosa, que nos dava simultaneamente confiança e a sensação de força do Partido. O Avante! era com toda a certeza o elo de ligação fulcral entre os militantes comunistas legais e ilegais. Com 1$00 pagava-se o jornal e a restante imprensa que recebíamos, sempre com os respectivos preços bem impressos. O Avante! era o Órgão Central do Partido Comunista Português, de periodicidade mensal. Durante um período chegou a ser quinzenal, o que foi depois reconhecido como um exagero facilitista (durante o chamado «desvio de direita») e que levou à «queda» de várias tipografias clandestinas e à prisão de diversos casais de militantes tipógrafos. Era também numerado. Tinha sempre o Ano (leio, por exemplo, num exemplar que tenho em casa: «Ano 37, série vi, n.º 392, Junho de 1968»). O ano indicava o início da sua publicação; a série revelava a sequência, pois, se o jornal fosse interrompido por acção da polícia política, da repressão ou por sobressaltos da vida do Partido, dava-se então início a outra série, constituindo informações preciosas aos militantes para perceberem a força do seu partido.

O cabeçalho, com a foice e o martelo (símbolo da unidade dos operários e dos camponeses), muito popular, trazia impresso o lema «Proletários de todos os países, uni-vos!». Este lema, parafraseado de Marx, era uma das frases-guia dos comunistas em todo o mundo, mostrando que, antes de serem nacionalistas ou patriotas, os comunistas eram internacionalistas. No jogo do gato-e-rato com a censura e com o humor que as coisas por vezes tinham, nunca mais esqueci um anúncio feito nesta altura para a RTP pelo poeta Ary dos Santos, que, passando as malhas da censura, dizia diariamente num anúncio de pescada congelada para secreto prazer de todos nós: «Pescadinhas de todos os mares, uni-vos!»

O Avante! tinha sempre notícias das prisões dos militantes comunistas e dos presos mais importantes. Era sempre pela secção de notícias da repressão, das prisões e dos presos que eu começava a lê-lo. Era o que mais me comovia, dando-me a sensação da injustiça criminosa de um regime capaz de prender, torturar e deixar adoecer as pessoas durante anos nas masmorras de prisões tão desumanas e brutais como a de Peniche, por exemplo. Lia sempre primeiro as notícias do estado de saúde de presos, de dirigentes do Partido ou intelectuais conhecidos, a cumprir penas de prisão em Peniche ou em Caxias, bem como as acções corajosas que algumas pessoas faziam em defesa dos presos. A Comissão de Socorro aos Presos Políticos e às suas famílias foi das maiores e mais bonitas trincheiras de resistência e de solidariedade que conheci em toda a minha vida política, até hoje. Nele se juntavam vontades de muita gente que ajudava na subsistência de famílias cujo pai estava preso e condenado a anos de cadeia. Era uma rede importante em todo o país, e muita gente havia – desde Amália Rodrigues, através do seu cabeleireiro, a muitos padres, como um famoso, o padre Tomás Carvalhão, que conheci em Alhandra – que nada mais fazia, mas que dava fundos e recolhia apoio para os presos políticos e suas famílias.

O Avante! trazia também notícias internacionais do movimento comunista, muitas informações sobre a União Soviética e outros países socialistas e sobre partidos comunistas irmãos, dando notícias de numerosas lutas de sectores operários nacionais e estudantis. Era muito importante para um jovem militante, como era o meu caso, ler no Avante! uma notícia que sabíamos real e passada connosco e que a imprensa nacional tinha censurado. Por exemplo, ler sobre uma greve académica que tinha acontecido um mês antes. Era importante saber que nalguma casa do país, numa qualquer aldeia, um casal de tipógrafos imprimia com letras de chumbo, compostas uma a uma, todos os meses, aquelas notícias que eram do nosso conhecimento pessoal e que chegavam a nós e a todo o lado inevitavelmente.

Enquanto estive na clandestinidade nunca cheguei a conhecer nenhuma tipografia clandestina (cada um no seu sector), mas elas eram o coração do Partido Comunista, o seu mais bem guardado segredo. A PIDE não conseguiu encontrar nenhuma durante o meu tempo de funcionária. Eu própria só depois do 25 de Abril cheguei a conhecer pessoalmente casais de funcionários tipógrafos que imprimiram o Avante! e O Militante durante anos a fio. A imprensa escrita era muito mais importante do que as rádios clandestinas, que todos sabíamos localizadas no estrangeiro. O símbolo da resistência, o maior elo de ligação entre os militantes legais ou clandestinos, era sem dúvida o Avante!.

Todos os números tinham ainda uma outra secção que era muito importante para os militantes e que se chamava «Quantias recebidas dos Amigos do Partido». Era uma experiência gratificante, a mostrar como o Partido funcionava, enviar um contributo extra com uma das senhas, género «Estrela da Manhã – 25$00», e no mês seguinte encontrar a nossa contribuição impressa e discriminada no Avante!. Esta secção tinha vários objectivos, o mais evidente dos quais era tornar claro que o Partido Comunista tinha contas transparentes e que não recebia dinheiro de Moscovo, como diziam os salazaristas e a PIDE, nem tão-pouco de outros partidos comunistas – que vivia apenas do contributo dos seus militantes e simpatizantes.

O jornal O Militante era um pouco diferente, mais revista que jornal. Era o órgão teórico, de artigos formativos dos militantes. Embora muitos dos artigos fossem traduzidos de outros jornais comunistas, eu achava muito importante lê-lo, até porque a sua circulação era limitada.

O PCP tinha ainda um grande número de outros jornais especializados, sem a mesma periodicidade, que saíam com regularidade, como O Têxtil, O Camponês, ou O Ferroviário, e que o funcionário me dava de vez em quando para meu conhecimento.

Um dia, trouxe-me um livro acabado de sair, escrito por Álvaro Cunhal, o Rumo à Vitória!. Se receber O Militante já era para mim uma honra, um privilégio (O Militante era, como o nome indica, para os membros do Partido, enquanto o Avante! era para toda a gente), receber um livro escrito por Cunhal foi um momento inesquecível. Tinha acesso a um livro no qual o camarada explicava toda a táctica e estratégia que levaria Portugal à revolução socialista e ao comunismo.

Depois de ter sido recrutada pelo Edgar Correia, que ficou meu responsável (controleiro) muito pouco tempo, passei a ser directamente controlada pelo funcionário do sector estudantil do Porto, o Albano Nunes. Ao longo do mês contava os dias que faltavam para me encontrar com ele e ouvir mais histórias heróicas do Partido e aprender, aprender sempre. Rapidamente aprendi a não fazer perguntas e a deixar o funcionário falar e ouvir. Se ele não dizia mais, seria porque razões conspirativas o impediam, seria porque eu ainda não estava preparada para ouvir o resto – um dia ele falaria mais. A paciência era uma qualidade que se treinava, fundamental, e era uma das regras conspirativas mais importantes a pôr em prática: querer saber apenas o necessário para as funções que se exerciam e para as tarefas a cumprir, nem mais, nem menos. Se o controleiro nos desse uma tarefa e não pudesse explicar o porquê daquela instrução, tínhamos de o fazer na mesma, pois o Partido e o controleiro mereciam toda a nossa confiança. Quanto mais informação se tivesse, maior seria o perigo de denunciar na cadeia, maior o risco para os outros camaradas: conhecendo mais pessoas, mais ficavam em risco se fôssemos presos; quanto mais conhecêssemos da vida e métodos do Partido, mais se poderia denunciar na cadeia. O controleiro era quem nos trazia as informações do Partido e era hierarquicamente responsável por nós. Tínhamos de ter uma confiança cega no controleiro.

Outra forma importante de criarmos um espírito de corpo era a audição das rádios clandestinas. Não se sabia onde estavam, sabia-se que ficavam em países amigos socialistas. A Rádio Portugal Livre transmitia diariamente para Portugal três sessões de trinta minutos em ondas curtas. Além desta, havia ainda a Rádio Moscovo em português («Rádio Moscovo fala verdade», era o lema) e a Rádio Praga, igualmente com um programa de trinta minutos. Na RPL, as locuções de Luísa Bastos (que cantou o Avante, Camarada, na sua famosa versão) e de Aurélio Santos ficaram famosas. Depois do 25 de Abril, era um delírio sempre que apresentavam um qualquer comício: todos os militantes dos tempos da clandestinidade conheciam a voz deles, bem como a de Veríssima Rodrigues (futura funcionária da sede do PCP), e todos se comoviam quando eles falavam nos palcos do PCP legal.

A RPL era muito ouvida para se ficar a par das lutas no interior do país e a Rádio Moscovo para ouvir notícias das conquistas da URSS e dos restantes países socialistas. Eu ouvia-a em casa com os meus pais, mas também em casa dos amigos. Em conjunto, ouviam-se e comentavam-se as notícias. As que se referiam às lutas do sector estudantil do Porto, que eu tão bem conhecia, eram suficientes para provar que eu podia acreditar em tudo o que ouvia. Num tempo em que não havia telemóveis, nem internet, nem televisão por cabo, com a ajuda evidente de outros partidos comunistas, o PCP servia-se das tecnologias da época para fazer circular as notícias.

A minha missão, nesses primeiros anos, era criar uma célula estudantil do Partido nos liceus e escolas técnicas do Porto e criar uma associação de estudantes liceais. Para isso, o Edgar e o Albano deram-me todas as pistas e contactos existentes, e em pouco tempo as duas tarefas estavam em execução.

Sabia muito pouco da ideologia que ia abraçar por muitos anos: queria apenas juntar-me a todos aqueles que corajosa e radicalmente combatiam o regime de Salazar. A única excepção, a minha única leitura prévia foi ainda na fase de recrutamento, quando o Edgar me deu uma edição brasileira de O Estado e a Revolução de Lenine, que li com imenso sacrifício e sem perceber coisíssima nenhuma.

Aderi ao PCP, como penso que aderiu a imensa maioria dos estudantes, por tradição familiar, por revolta contra as injustiças sociais gritantes que marcavam a sociedade portuguesa, por anseio de uma sociedade livre das pressões e repressões do regime de ditadura, por desejar lutar por ideais tão importantes para um jovem como a liberdade, a justiça social, a democracia e a paz. E também para ser uma adolescente diferente.

Muito dificilmente se passava pelo sistema escolar ficando indiferente ao ambiente, ao meio, a uma sociedade dividida entre os do «contra» e os do regime. O clima que se vivia nesses anos 60 em Portugal empurrava-nos para a óbvia e evidente rejeição do salazarismo e de um país ignorante, pobre e à margem do mundo, onde desgraçadamente crescíamos. A adesão dos estudantes ao PC não se fazia com considerações teóricas e adesões racionais a uma determinada ideologia. A ideologia e o conhecimento dos teóricos faziam-se a posteriori, já na luta e em cursos rápidos e intensivos.

Só conheci um caso de alguém que entrou na vida política dessa altura depois de ter optado por ler os clássicos e considerar que estava teoricamente preparado para o fazer: foi o José Pacheco Pereira. O meu liceu era o Carolina Michaëlis e todo o movimento associativo existente nos liceus se encontrava lá e no D. Manuel II, pois não tínhamos, para nosso desespero, contactos com os liceus do outro lado da cidade, o Rainha Santa Isabel e o Alexandre Herculano. O José Pacheco Pereira queria entrar para o movimento associativo e ser comunista e procurou-me com esse objectivo. Para poder entrar tinha feito uma enorme preparação teórica e já tinha lido uma série de obras dos clássicos do marxismo-leninismo. Primeiro, encontrámo-nos no café de São Lázaro e tivemos posteriormente vários outros encontros. Achei aquilo muito estranho e disse-o ao controleiro (nessa altura já era o Albano Nunes), que concordou comigo: ou ele era um génio para ler tanto e preparar-se daquela forma, ou era suspeito. O José Pacheco Pereira, já com uma enorme capacidade de leitura e preocupação intelectual, falava com à vontade do Capital de Marx, ou do Materialismo e Empiriocriticismo de Lenine. Nós achámos melhor pô-lo de quarentena, para termos a certeza de que tão estranho comportamento não seria o de um provocador. Nunca chegou a entrar para o PCP: eu deixei de acompanhar o caso, passei nessa altura à clandestinidade e ele não gostou do tempo de espera. Impaciente, criou o seu próprio partido marxista-leninista. Foi caso único.

Outros factores empurravam-me para esse sonho de ser comunista. Um deles era a mitificação dos heróis da resistência ao regime. Álvaro Cunhal encabeçava a lista e constituía o símbolo dessa resistência. Eram os nossos heróis, os camaradas capazes de dar a vida pelos ideais da liberdade, do socialismo e do comunismo, camaradas que não olhavam a sacrifícios pessoais para defender os trabalhadores e uma sociedade sem exploração do homem pelo homem. E eu aderi ao partido «abandonando os interesses da minha classe de origem», juntando-me àqueles que só tinham a perder as «grilhetas». Saber que existiam países como a URSS, onde isso já acontecia, apenas reforçava a minha vontade de me juntar a esse grande exército mundial de proletários.

Uma pessoa não se envolvia no movimento estudantil, nem seguia para o recrutamento pelo PCP, por ser marxista, estalinista, leninista, ou comunista. Chegava lá natural e inevitavelmente, porque as crises académicas marcavam de forma determinante as sucessivas gerações de estudantes. A famosa crise de Coimbra dirigida por Salgado Zenha, a crise de Lisboa de 1962, ou o luto académico que envolveu a própria equipa da Académica, marcaram gerações de estudantes. Estas crises, que atingiram as três academias e se transformaram em vagas anuais até à queda da ditadura, assumiram progressivamente características políticas que em muito ultrapassaram a mera reivindicação académica. Este facto era sabido pelos militantes políticos, pelo PC, mas também por todo e qualquer estudante.

O início da guerra colonial em 1961, corporizado no célebre discurso «para Angola rapidamente e em força» de Salazar, foi um factor de agudização de todas as contradições do regime. Salazar, que tinha atravessado o período da Segunda Guerra Mundial, e sobretudo o pós-guerra, aguentando-se no poder e mantendo uma ditadura completamente obsoleta para a Europa, condenava o país a um beco sem saída numa guerra estúpida e suicida para ele próprio.

Para os estudantes dessa altura, a perspectiva de futuro passou a ser, na melhor das hipóteses, embarcar, logo a seguir ao fim do curso, para uma das colónias durante pelo menos dois anos como oficial miliciano, arriscando a vida por uma causa considerada perdida a priori (nunca nenhum país, nem sequer uma grande potência, ganhou uma guerra colonial). A alternativa era fugir da guerra, partir para um exílio, sabia-se lá por quanto tempo, calcorreando o mesmo caminho que os emigrantes que partiam em busca de uma vida melhor. Essa perspectiva atirou para a luta estadantil uma geração inteira de jovens estudantes que não queriam ter como futuro embarcar para Angola, Moçambique ou Guiné. Cada dia de guerra nas colónias, cada imagem de navio no Cais de Alcântara, embarcando soldados e oficiais para a guerra, cada morto em combate, mais fazia engrossar a luta estudantil contra o regime ditatorial.

Se partir para a guerra ou para o exílio era a perspectiva dos rapazes, as que se abriam às raparigas não eram muito melhores. Elas tinham pela frente um futuro cheio de incertezas, dramático mesmo, pois, recém-casadas ou por casar, viam o casamento adiado pela partida dos oficiais milicianos, seus maridos ou namorados.

Nesta época, o PCP centrou muita da sua luta no combate às guerras coloniais, organizou deserções colectivas do exército colonial, e milhares de estudantes seguiram o doloroso caminho do exílio para França, Bélgica, Suíça, Argélia, entre outros países.

Nas academias, a luta radicalizou-se dia após dia. Do futuro da guerra dependia a sobrevivência do regime salazarista, mas também o futuro de cada estudante que estava a terminar o liceu ou a universidade. Dois a quatro anos de tropa e guerra significavam um insuportável adiamento da vida profissional e familiar. Portugal tinha chegado a uma situação sem qualquer saída, a um daqueles becos da história que parecem abrir caminho às revoluções. Salazar não podia deixar de fazer a guerra, e a guerra não tinha saída possível. Mas, evidentemente, sem o fim da guerra não haveria democracia. O próprio regime não tinha meios nem formas de sair dela, como se viu com Marcelo Caetano, pois o presidente do Conselho não podia «negociar» a retirada e a derrota do exército português. Pesava nalgumas memórias a ideia de que as forças armadas portuguesas já tinham regressado derrotadas e humilhadas de Goa.

Hoje, olhando para trás, sinto que valeu a pena, porque teria um enorme desgosto, sim, desgosto, se tudo tivesse passado por mim sem que eu desse por nada. Como era possível alguns viverem em Portugal, aceitarem calados e quietos a ditadura de Salazar, neste país mesquinho em que se cortava o beijo do filme Casablanca, se liam os jornais para «ler» o que lá não estava e, numa espécie de desporto nacional, se tentava enganar o lápis azul da censura? Ou se proibiam os Beatles e as mulheres casadas precisavam de autorização do marido para ir ao estrangeiro…

Mas também, qual é o jovem que não lia o livro vendido à revelia, que não ia ver o Couraçado Potemkine em sessões nocturnas, ou não fazia circular o Avante!, sabendo que assim subvertia um regime que o mais que tinha para lhe oferecer era a participação numa guerra colonial, aí por uns bravos anos? Com todos os erros, desvarios, perigos, hoje, olhando para trás, tenho pena dos que só entenderam os benefícios da democracia depois de a viverem, só perceberam a liberdade depois do 25 de Abril, e interrogo-me como era possível passar por toda uma geração sem a viver, nem a ver. Portugal dividia-se em dois: os opositores do regime e a propaganda do regime em torno da segurança do futuro, simbolizada no ouro existente no Banco de Portugal e na estabilidade política de uma ditadura de partido único.

Desde muito cedo, e particularmente na juventude, não podia imaginar outra coisa para mim que não fosse vir a ser militante comunista. Ser comunista significava o que de mais nobre um ser humano podia abraçar: defender os mais pobres, os explorados, o respeito pela cultura e pela arte, a arte ao serviço do povo e não de privilegiados; defender a liberdade, o pão, a paz e o socialismo; a igualdade dos homens e das mulheres, a igualdade dos homens independentemente da cor da pele, uma profunda solidariedade pelos negros de África e pelos negros vítimas do racismo na América (uma campanha mundial pela libertação da negra Angela Davis acontecia nesse momento). Como podia um jovem não abraçar esse ideal que tinha um nome, socialismo, e uma pátria, a URSS?

Aderi ao Partido Comunista num gesto inevitável, no seguimento das injustiças sociais que toda a vida ouvira os meus pais denunciar e para fazer cair um regime medíocre, obsoleto, repressivo e asfixiante, para além de anacrónico, numa Europa de democracias consolidadas. Fiz-me comunista convicta de que ia encontrar camaradas, homens e mulheres, já configurando o «homem novo», esse que nascia do comunismo. Um homem amigo, solidário, trabalhador, incapaz de ver o próximo sofrer ou ser explorado, sem privilégios de espécie alguma. Entrei, acreditando que era isso que se passava no PCP e na URSS e nos restantes países comunistas, e também nos movimentos de libertação em África, como a Frelimo, o MPLA e o PAIGC. Perante o horror de uma guerra injusta, imaginava e acreditava que os dirigentes dos movimentos de libertação eram revolucionários que acabariam com a exploração dos negros de África e construiriam sociedades livres, democráticas e de cidadãos iguais em direitos, com idêntica consideração pelo trabalho intelectual e manual. Acreditei que a guerra colonial acabava e que a paz poderia finalmente chegar ao cenário das guerras, voltando os nossos militares com os nossos exilados. Lembro-me dos dias em que o Albano Nunes me falava destas coisas que eu conhecia de casa, dos livros e das rádios clandestinas, e me contava que um mineiro na URSS e nos outros países socialistas era mais bem remunerado do que um professor, pois tinha um trabalho muito mais duro, violento e perigoso. Era assim o homem novo anunciado pelo comunismo: abnegado no trabalho, desinteressado de bens materiais, humano e bom. Tudo isto era suficiente para me indicar o caminho a seguir.

Estava-me na pele. A minha mãe e o meu pai educaram-me num profundo respeito pelos injustiçados e num grande amor à mesma liberdade que encontrávamos sempre no estrangeiro, atravessando a Espanha franquista e respirando livremente a partir dos Pirenéus. Fazer-me comunista era o caminho natural de quem via em Álvaro Cunhal o mito lendário do herói sem mácula, uma figura venerada por toda a oposição e odiada pelo regime. Cunhal personificava o ideal revolucionário e figurava numa galeria ímpar de heróis do mundo a caminho do socialismo e do comunismo. Mas, além de Cunhal, no movimento comunista internacional não faltavam heróis para nos encher o imaginário: Fidel Castro e Che Guevara, Mao Tse Tung que tinha feito a Longa Marcha da China, Ho Chi Min, Amílcar Cabral e muitos outros. Eram eles que enchiam os posters que colávamos nos quartos e nas paredes das associações de estudantes.

Na URSS o socialismo existia já, de forma real, irradiando a luz do farol dos proletários do mundo. Era para mim a prova – longínqua, mas que outros conheciam de testemunho directo – da justeza do nosso ideal. No Leste, o socialismo era uma realidade, e não uma simples utopia. O PCP editava regularmente depoimentos de gente que visitava a URSS. Convidava intelectuais (fê-lo, em muitos casos, mesmo antes do 25 de Abril) para verem com os seus próprios olhos e escreverem sobre a visita que os camaradas, através das associações de escritores soviéticas, organizavam. Circulavam entre nós vários desses testemunhos, transmitindo relatos apaixonados daquilo que tinham visto na Pátria do Socialismo.

As ditaduras mais variadas aliciaram muitos intelectuais europeus com ofertas de viagens e benesses, num lobby tão poderoso que perdurou para além da queda do muro e da implosão do comunismo. Pela Europa fora, e não só em Portugal, abundavam panegíricos anacrónicos descrevendo essas viagens, mas muito poucos denunciaram o que viram: André Gide é um caso famoso, uma conhecida excepção.

Em 1972 (plena época de Marcelo Caetano), um grupo de intelectuais foi convidado oficialmente pelo PCUS a ir à URSS. A PIDE recusou a saída de Alberto Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues e Fernando Namora, mas autorizou a ida de Óscar Lopes, Alexandre Babo (que depois do 25 de Abril foi durante anos presidente da Associação de Amizade Portugal-URSS) e Augusto Abelaira. Todos eles eram escritores de referência para nós, e o livro que escreveram circulou por muitas mãos. A eles juntou-se depois Mário Soares (segundo ele, desejoso de ver a URSS com os próprios olhos). Vieram todos fascinados, conforme testemunha o livro que escreveram, excepto Mário Soares, que não gostou do que viu e que o deixou bem claro publicamente. O professor Óscar Lopes escreveu um livro fascinado com o que testemunhou, intitulado Setembro na URSS, que todos lemos nessa altura e que foi reeditado após o 25 de Abril. Óscar Lopes era uma referência intelectual na oposição, no Porto, que todos respeitávamos muito. Este fascínio intelectual pelo comunismo e, em particular, pela URSS nos intelectuais comunistas da Europa Continental (lembro o célebre retrato que Picasso fez de Estaline) foi um traço marcante da história europeia. O que acontecia era que nesta altura, pela Europa, já pouco sobrava desse fascínio – quase que só restava Sartre e Simone de Beauvoir, que, nunca tendo sido comunistas pró-soviéticos, nos anos 60, na mais dura e criminosa fase da revolução cultural chinesa (mais de oito milhões de vítimas assassinadas e dez milhões de mortos à fome), ainda se fascinavam com Mao Tse Tung.

Para nós, portugueses, as coisas, já se sabe, chegam geralmente com anos de atraso: quando na Europa já cresciam as denúncias do que se passava nos países do Leste, já tinha havido a Hungria e a Checoslováquia, os intelectuais portugueses ainda se maravilhavam com o que lhes mostravam, quando eram recebidos como grandes senhores iluminados e privilegiados, detentores da razão e com uma oportunidade única de poderem ver e transmitir ao povo o que se fazia no berço do socialismo real. Eu, pessoalmente, não tinha a mínima dúvida de que a URSS era o modelo, a prova real da sociedade socialista que desejava para Portugal.

Fazendo-me comunista juntava-me a essa vanguarda iluminada de operários e à nata dos intelectuais portugueses. Quis entrar para o PCP para me fazer comunista, e nunca pretendi aderir a nenhum dos grupos e partidos que apareceram nesta fase da vida nacional, sobretudo no movimento estudantil. Surgiram então os mais diversos e variados grupos, partidos e movimentos que contestavam pela esquerda o PC: maoístas, trotskistas, marxistas-leninistas, «radicais pequeno-burgueses de fachada socialista» (nas palavras de Cunhal), esquerdistas ou verbalistas, como lhes chamávamos, os quais tinham por modelo a China de Mao (no seguimento do conflito sino-soviético) e a Albânia de Enver Hoxha, e que pugnavam por uma maior radicalização das formas de luta, para vencer o regime ditatorial português. Para mim era claro que ser comunista era militar no PCP, porque era esse o verdadeiro partido dos trabalhadores e, embora até à passagem para a clandestinidade não tivesse conhecido de perto nenhum operário ou camponês comunista, imaginava que o Partido tivesse uma enorme influência operária, camponesa e nos restantes trabalhadores. Nunca tive dúvidas dessa opção, e os radicalismos dos outros não me tentavam. Estava no lugar desejado e certo para servir a classe operária e ser adoptada por ela como sua filha, tal como aconteceu com Álvaro Cunhal.

Tinha igualmente clara a linha política fundamental do Partido para derrubar a ditadura fascista (como se lhe chamava) e garantir a instalação de um regime fundado no socialismo real, científico, a caminho do comunismo. O Rumo à Vitória punha as coisas de uma forma inequívoca, servindo de orientação política e ideológica aos comunistas antes e depois do 25 de Abril: Cunhal definia o regime fascista como uma ditadura dos monopólios associada ao imperialismo, que apenas seria derrubada por uma via armada, por uma revolução e nunca por uma transição pacífica de abertura democrática do regime, sublinhando que, pela sua própria essência, este nunca se poderia autodemocratizar.

Cunhal defendeu esta tese e esta linha política para o PCP desde que saiu da cadeia, na célebre fuga de Peniche. Essa tese veio assim «corrigir» os «desvios de direita no PCP». A direcção que se encontrava à frente do PCP, enquanto Cunhal estava preso, defendia a possibilidade de o regime se democratizar, citando o exemplo de outras ditaduras no pós-guerra. Em consequência, Cunhal afastou o principal teórico e dirigente do Partido, Júlio Fogaça, que foi entretanto preso pela PIDE e expulso do PCP, acusado de ser homossexual (dizia-se que tinha sido encontrado com marinheiros num prostíbulo). Seguindo o exemplo de todos os partidos comunistas, Fogaça não foi expulso por ter divergências políticas com Cunhal, nem por ser o «pai» do desvio de direita ou pelo menos por ter sido hesitante e pouco firme na sua correcção – mas acusado (neste caso) de ser homossexual.

Cunhal defendia a via armada para o derrube do fascismo português, num claro assumir da pureza do leninismo, promovendo o regresso do movimento comunista internacional às teses genuínas e científicas dos seus fundadores. Cunhal demarcava-se assim de outras tendências, enfrentando um longo debate e um longo confronto com os partidos comunistas, particularmente os eurocomunistas, que defendiam a tese da transição pacífica para o socialismo: Berlinguer tentava entrar na área do poder em Itália, com o «Compromisso Histórico», um compromisso entre a democracia-cristã e os comunistas italianos; e o Partido Comunista Francês assinava em 27 de Junho de 1972, após vários anos de negociações, um Programa Comum de Governo com o Partido Socialista Francês (assinado por George Marchais e por François Mitterrand, e ainda por Robert Fabre dos Radicais de Esquerda). A tese da revolução armada em Portugal era um confronto directo com todos eles, mas particularmente com o Partido Comunista Espanhol e o seu secretário-geral, Santiago Carrillo, que defendia uma transição pacífica do regime franquista para a democracia.

Para grande irritação de Cunhal, Carrillo dizia e escrevia que Franco cairia pacificamente, com o regime a abrir-se progressivamente a uma democracia. Defendia mesmo a tese, e fê-lo em fóruns do movimento comunista internacional, de que a queda de Franco em Espanha arrastaria consigo a queda de Salazar em Portugal.

Cunhal detestava Santiago Carrillo, considerando-o um líder menor, como pude verificar após o 25 de Abril. Logo a seguir à revolução, o líder do PCE veio clandestinamente a Portugal, e eu tive uma reunião com Cunhal para preparar o seu alojamento em minha casa: ele divertiu-se imenso a explicar que tudo tinha falhado na tese do dirigente comunista espanhol.

Na URSS, o PCUS, e particularmente Suslov, o ideólogo do regime, apoiou sempre Cunhal neste confronto com Carrillo e com os restantes partidos comunistas europeus, todos eles «eurocomunistas». É nesse confronto que Álvaro Cunhal começa a ser o mais importante interlocutor da URSS na Europa Ocidental e a ser recebido com honras de chefe de Estado, ombreando com Fidel Castro ou Erich Honecker da RDA.

Álvaro Cunhal, no Rumo à Vitória, defendia o esquema da Revolução de Fevereiro seguida pela Revolução de Outubro, exactamente o preconizado por Lenine para a revolução russa, que, estava demonstrado, por isso mesmo tinha saído vitoriosa.

Tudo isto era do meu conhecimento logo que me filiei no PCP, e devo dizer que essa linha política revolucionária – derrubar o fascismo pelas armas – nos enchia de orgulho, pelo facto de militarmos no PCP e não num PC qualquer do tipo italiano de Enrico Berlinguer, espanhol de Santiago Carrillo, ou francês do tipo Marchais (ele de quem se dizia sempre que tinha sido recrutado para trabalhar na Alemanha e não como resistente ao fascismo), os quais perdiam o carácter revolucionário e se transformavam em partidos democrato-burgueses, esquecendo os ensinamentos e o exemplo de Lenine. O PCP definia-se a si mesmo como vanguarda revolucionária da classe operária. Era a essa vanguarda que eu queria pertencer, à verdadeira, à única e autêntica para mim.

Estava disponível para a «insurreição popular armada», a única para derrubar o regime fascista de Salazar e instalar a «ditadura do proletariado». Iria contribuir para o nosso Outubro, na nossa revolução socialista – na perspectiva do Portugal comunista.

Sabia que Karl Marx e Engels tinham descoberto o socialismo científico, o determinismo histórico, há um século. «Marx elaborou, conjuntamente com Frederico Engels, a teoria do socialismo científico (…). Fundamentando-se na realidade social da sua época, substituiu as panaceias do socialismo utópico e de colaboração de classes de outras correntes socialistas, por uma teoria científica da luta de classes, em que o proletariado se impunha, como tarefa histórica inevitável, a destruição do poder da burguesia e a construção do socialismo e do comunismo» (Avante!, Maio de 1968). E o «científico» estava por todo o lado: «produção cientifica agrícola ou industrial», análise científica da correlação de forças mundial, «planificação científica da economia socialista», ideologia ou teoria científica para explicar o mundo e, sobretudo, para o transformar, tão científica como o teorema de Pitágoras ou como essa descoberta que fez andar o mundo, a descoberta por Galileu de que a Terra é afinal redonda, tendo sido por isso perseguido pelas forças obscurantistas. Marx e Engels descobriram as leis científicas da história, mostraram como a revolta dos proletários ia liquidar o próprio capitalismo que precisava cada vez mais de maior número de proletários, proletários esses que o liquidariam, como antes tinham feito os escravos ou os burgueses.

A luta de classes, verdadeiro motor da sociedade e da história, estava presente em todos os sectores da vida nacional: patrões e operários, latifundiários e assalariados rurais, e até no Clero, onde existia o Alto Clero, por definição reaccionário, e o Pequeno Clero, muito do qual nosso potencial aliado. Por exemplo, noticiando a vinda de Sua Santidade o Papa Paulo VI a Portugal, o Avante! descrevia que a receber o Papa estava «o governo fascista, o alto clero reaccionário e em especial o cardeal Cerejeira…»

A partir do momento em que entrei no PCP, abriram-se as portas de um mundo, de um pequeno país comunista que existia no Portugal fascista e que me envolvia numa forma diferente de estar no mundo e de ver o mundo, em todos os aspectos da minha vida. Um mundo comunista que (percebi mais tarde) só tinha paralelo em países comunistas, e que nos fazia ver o mundo assim: na escola tínhamos as associações de estudantes; na literatura líamos os escritores comunistas ou neo-realistas; nas livrarias encontrávamos os livros dos nossos autores (por cima ou por baixo do balcão); nas exposições que frequentávamos tínhamos os artistas plásticos onde víamos uma determinada mensagem política, como as mulheres do povo de Cipriano Dourado ou o trolha de Pomar, e as paredes dos nossos quartos eram decoradas com Guernicas ou com fuzilamentos pintados por Goya. Nós, os estudantes dos finais dos anos 60, inícios dos anos 70, vivíamos em permanente revolução: a prepará-la, a fazê-la e a vivê-la. Não estávamos unidos no modelo, mas no resto a vivência era idêntica. Para uns, o modelo era a Revolução de Outubro, para outros a Longa Marcha Chinesa de Mao Tse Tung, e para outros ainda a descida da Sierra Maestra na Cuba de Fidel.

Foi assim que aprendi não só a linha política e ideológica do PCP, como também a essência da revolução comunista e dos seus teóricos. Compreendi que se tratava da mais pura ciência e introverti a mais perigosa das concepções políticas totalitárias, aquela que está na génese de todos os totalitarismos comunistas ou fascistas: ou seja, que pelo Partido, pela nossa causa, pelos nossos ideais, não se olha a meios, olha-se, sim, aos fins a atingir. Relativismo completo e brutal.

As vítimas do comunismo não pesaram na consciência de quem se filiou nos partidos comunistas? Muitos militantes alegaram que não sabiam, que não tinham conhecimento. É evidente que nenhum estudante ou intelectual que militava nas fileiras do PCP, nos setenta anos da sua existência, podia invocar que não sabia de nada, que desconhecia os fundamentos da ideologia e dos regimes comunistas. Podia invocar, quando muito, a sua cegueira devido à crença no comunismo, à sua crença militante.

Nem ninguém argumentava que ignorava o terror que Lenine ou Estaline provocaram na Rússia, ou o que Mao Tse Tung estava a fazer com a sua «Revolução Cultural». Não nos incomodávamos com esses «pormenores».

Vivíamos anos cheios de histórias de coragem e de tragédia, de vítimas e de heróis, mas histórias em que se chama as coisas pelos seus nomes. Em nome do comunismo concebeu-se uma prática hegemónica ideológica que se aprendia desde a primeira militância e não era sujeita a equívocos ou confusões. Era assim que o sector estudantil parecia uma corrida de equipas para ter a medalha do mais revolucionário, do grupo mais radical, mais «marxista-leninista» (uns acrescentavam Mao e Estaline aos fundadores das suas ideias, nós tínhamos só os outros três). Considerávamos o imperialismo um tigre de papel e todos defendíamos a via armada para derrubar a ditadura. A minha geração não suportava mais o regime de Salazar: a guerra colonial, a pobreza, o isolamento, um país mesquinho, cinzento, atrasado, ignorante e inculto. O grito às armas era o mais ouvido e lido em tudo o que era papéis. Gastávamos quase mais tempo a comprovar o nosso revolucionarismo face aos outros grupos do que a combater o regime.

Na mesma época – e poder-se-iam citar centenas de papéis dos grupos revolucionários existentes no sector estudantil, cá no interior, ou em Paris (os que estavam no exílio), ou em Argel («os golpistas de Argel», como lhes chamava Cunhal) –, Piteira Santos e Manuel Alegre escreviam na Voz da Liberdade: «A nossa luta antifascista terá de ser violenta. À violência reaccionária há que opor a violência revolucionária. (…) Queremos passar das palavras aos actos…»

A principal acusação, aquilo que tínhamos de demonstrar diariamente nas universidades e nos liceus, era que não éramos revisionistas, que não nos tínhamos deixado vencer pela acomodação burguesa. Nas associações de estudantes e nos cafés de Paris, ou de Argel. O MRPP chamava nesta época ao PCP «agência sucursal do social-imperialismo e do revisionismo», apelava ao «fogo sobre o revisionismo» e pretendia instalar a «ditadura democrática popular». Os maoístas que se reclamavam do Comité Marxista-Leninista Português (CMLP) publicavam jornais como O Comunista, A Vanguarda, O Bolchevista. Todos eles filhos do ideal comunista, todos, como eu, filhos-família, a falar em nome de um proletariado que não conheciam e nunca tinham visto na maioria dos casos, e todos a gritar pela revolução armada.

E nós? Precisamente no Avante! de Novembro de 1967, assinalando os cinquenta anos da Revolução de Outubro, na Rússia, escrevia-se na Resolução do Comité Central do PCP: «A melhor comemoração da grande Revolução Socialista de Outubro, triunfante graças à combatividade e ao heroísmo do proletariado russo, tendo à sua frente o Partido de Lenine, é lutar ainda com mais dedicação, mais ardor, mais confiança, certos de que o nosso Outubro chegará também.»

 


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