Dez Livros que Estragaram o Mundo (1.º capítulo)

Publié par Hugo Neves le

1. O PRÍNCIPE (1513)



«É pois necessário que um príncipe, se quiser
manter o lugar que ocupa, aprenda a ser capaz
de não ser bom.»

Nicolau Maquiavel (1469­‑1527)

É muito provável que o leitor conheça o termo maquiavélico e esteja familiarizado com as respectivas conotações, todas elas negativas. Com efeito, os dicionários dão como sinónimos de maquiavélico termos como desleal, hipócrita, falso, astuto, intriguista, matreiro, desonesto ou traiçoeiro. Ainda não tinha passado um século da sua morte, já Maquiavel conquistara a duvidosa honra de figurar em Ricardo III, de Shakespeare, sob o epíteto de «Maquiavel, o homicida». Quase quinhentos anos depois de ter escrito O Príncipe, o seu texto mais famoso, o nome de Maquiavel continua a evocar sentimentos de crueldade implacável e brutalidade glacial.

A despeito das recentes tentativas de o retratar como um mestre sincero e inofensivo da prudência na governação, opto aqui pela abordagem clássica que viu em Maquiavel um dos mais radicais mestres do mal que o mundo alguma vez conheceu. O Príncipe é um monumento de conselhos perversos destinados a governantes que abandonaram por completo quaisquer escrúpulos morais e religiosos, tendo portanto a ousadia de considerar que o mal – um mal profundo e obscuro, um mal quase impensável – é, as mais das vezes, mais eficaz do que o bem. E é esta, no fundo, a força venenosa de O Príncipe: o facto de, nesta obra, Maquiavel tornar concebível aquilo que era impensável. Quando se consegue aliciar o espírito para a recepção de ideias perniciosas, não tardam a seguir­‑se­‑lhes obras perniciosas.

Nicolau Maquiavel nasceu em Florença a 3 de Maio de 1469; era filho de Bernardo di Niccolò di Buoninsegna e de Bartolomea de’Nelli, sua mulher. É de justiça referir que Maquiavel nasceu num período conturbado, numa altura em que a Itália, ainda longe de ser uma nação unificada, era um saco de gatos de corrupção, intrigas e conflitos entre as cinco principais regiões que a constituíam: Florença, Veneza, Milão, Nápoles e os Estados Pontifícios.

Maquiavel assistiu às mais terríveis expressões de hipocrisia religiosa, nomeadamente aos jogos políticos de cardeais e de papas que mais não eram do que lobos disfarçados com peles de cordeiro, e conheceu em primeira mão a fria crueldade de reis e príncipes. Esteve preso por suspeita de traição e, para lhe arrancarem uma «confissão» dos crimes que cometera, foi sujeito a uma tortura designada por strappado, em que os pulsos do prisioneiro eram amarrados atrás das costas e presos a uma corda suspensa de uma roldana fixa ao tecto; depois, o prisioneiro era içado até ao tecto, ficando pendurado pelos braços, e largado com violência para o chão, movimento que provocava a deslocação das articulações dos braços. E o processo repetia-se várias vezes.

Maquiavel teve contacto directo com o mal. Mas o mesmo aconteceu a muitos outros, em muitos outros locais e períodos da história; não há nem nunca houve escassez de maldade no mundo, como nunca houve escassez de testemunhos da maldade. A especificidade de Maquiavel consiste em ter olhado o mal de frente e lhe ter sorrido – um sorriso do qual resultou O Príncipe.

O Príncipe é um livro chocante, engenhosamente chocante. O objectivo de Maquiavel era provocar uma revolução na alma dos leitores, e as armas desta revolução eram as palavras. O autor afirma ousadamente aquilo que outros apenas se tinham atrevido a sussurrar, e em seguida sussurra aquilo que outros não se tinham sequer atrevido a conceber.

Comecemos pelo capítulo xviii: deve o príncipe ser íntegro, cumprir as suas promessas, ser honesto, e por aí fora? Bem, reflecte Maquiavel, toda a gente concorda que «é muito louvável um príncipe cumprir as suas promessas e ser honesto».[*] Toda a gente tem bem a dizer de um governante honesto; qualquer pessoa compreende que a honestidade é a melhor política; toda a gente conhece inúmeros exemplos bíblicos de reis honestos que foram abençoados e de reis desonestos que foram amaldiçoados, e a literatura da Antiguidade está pejada de tributos a soberanos virtuosos.

Mas será sensato fazer aquilo que toda a gente louva? Os governantes virtuosos serão todos bem-sucedidos? Mais importante ainda, os governantes bem-sucedidos serão todos virtuosos? Ou não será antes que a virtude de um governante é o sucesso, de tal maneira que tudo aquilo que a ele conduz é – independentemente do que as pessoas dizem – bom por definição?

Pois bem, prossegue Maquiavel, vamos ver o que se passa no mundo real. «A experiência dos nossos tempos mostra que os príncipes que fizeram grandes coisas foram aqueles que não se preocuparam muito com a questão da confiança.» Cumprir o que se prometeu é um disparate, que prejudica quem fez a referida promessa. Ora bem, «se todos os homens fossem virtuosos, esta não seria uma boa proposta; mas, como os homens são perversos e infiéis para connosco, nós não somos obrigados a ser virtuosos e fiéis para com eles».

Mas não é só do cumprimento das promessas feitas que estamos dispensados se tal nos convier; com efeito, Maquiavel sustenta que a ideia do cultivo da virtude é uma prova de enorme ingenuidade. Para ser bem-sucedido, um príncipe não deve querer ser virtuoso, mas querer dar a aparência da virtude. Como sabemos, as aparências iludem e um príncipe tem de ser um mestre na arte de iludir; um príncipe tem de ser «um grande impostor e embusteiro».

Nesse caso, pode­mos perguntar, deve um governante ser misericordioso, fiel, compassivo, honesto e religioso? Nem pensar nisso! «Um príncipe não tem de ter as referidas qualidades; mas é absolutamente necessário que dê a aparência de as ter. Atrevo­‑me mesmo a dizer que, se as tiver e as observar com constância, lhe serão prejudiciais; mas, se der a aparência de as ter, lhe serão úteis.» É, pois, preferível e muito mais sensato «parecer misericordioso, fiel, compassivo, honesto e religioso»; mas, se o governante vir necessidade de ser implacável, infiel, desumano, desonesto e sacrílego, pois bem, tal necessidade há­‑de levá­‑lo a inventar formas ínvias de praticar todos os males necessários, continuando no entanto a parecer virtuoso.

Permita­‑me o leitor dar dois exemplos de aplicação dos conselhos de Maquiavel, o primeiro retirado de O Príncipe, o segundo da actualidade. É difícil imaginar pessoa mais perversa do que César Bórgia, que Maquiavel conhecia pessoalmente; Bórgia fora nomeado cardeal da Igreja Católica, mas abandonou esse cargo a fim de se dedicar à glória política, que perseguiu e alcançou de forma implacável. César Bórgia era um homem desprovido de consciência moral, a quem não incomodava minimamente o facto de praticar actos de enorme crueldade com a finalidade de alcançar e manter o poder; tinha por isso, e como seria de esperar, má fama entre os súbditos, nos quais criava aquele tipo de amargura que não tarda a suscitar rebeliões. No capítulo vii da obra, Maquiavel presenteia o leitor com uma importante lição prática sobre os métodos a que César Bórgia recorria para resolver os seus problemas.

Umas das zonas de que este político se apoderou foi a Romagna, «uma província pejada de roubos, conflitos e outro tipo de insolências», observa Maquiavel. Bórgia queria, evidentemente, «reduzi­‑la à paz e à obediência», porque os súbditos desordeiros são mais difíceis de governar do que aqueles que cumprem a lei; se, porém, fosse ele próprio a impor a ordem na província, o povo ficaria a odiá­‑lo, e o ódio gera rebeliões.

O que foi então que Bórgia fez? Contratou um homem, Remirro de Orco, «homem cruel e expedito, a quem concedeu plenos poderes». Remirro fez o trabalho sujo de que César Bórgia o encarregara, mas, como seria de esperar, ficou com as mãos sujas; ou seja, o povo odiava­‑o pelo facto de ter esmagado todas as rebeliões, de ter contrariado o espírito dos revoltosos e de os ter transformado em súbditos obedientes. Ora, como Remirro de Orco era representante de César Bórgia, o ódio ao primeiro reflectir­‑se­‑ia automaticamente no segundo.

Acontece que Bórgia era um homem criativo; e sabia que tinha de enganar o povo, convencendo­‑o de que, «se tinha havido actos cruéis naquele processo, o responsável pelos mesmos não era ele, mas o seu ministro, que era um homem duro». De maneira que «mandou­‑o colocar certa manhã na praça de Cesena, cortado em dois, deixando­‑lhe ao pé um cepo e uma faca manchada de sangue.

A ferocidade do espectáculo deixou o povo, a um tempo, satisfeito e estupefacto».

Satisfeito e estupefacto. O povo da Romagna, irado com a crueldade do representante de Bórgia, exultou ao vê­‑lo aparecer certa manhã na praça da cidade cortado ao meio. Tinha sido o próprio César Bórgia a satisfazer­‑lhes o desejo de vingança! Ao mesmo tempo, contudo, entorpecidos por aquele espectáculo de engenhosa crueldade, o povo submeteu­‑se a uma obediência cega.

A imaginação do leitor de Maquiavel debate­‑se com esta imagem de horror: um homem cortado ao meio. Mas cortado ao comprimento ou à largura? E uma faca manchada de sangue. Mas a faca estava caída ao lado do corpo, sem mais? Fora espetada no cepo? Seria possível cortar um homem em dois com uma simples faca?

E porquê um cepo? Era o cepo do carniceiro?

Uma coisa é certa: longe de criticar César Bórgia por tão engenhosa crueldade, Maquiavel canta­‑lhe loas, porque este príncipe teve a esperteza de parecer compassivo ocultando a sua crueldade, de ser misericordioso ocultando a sua implacabilidade. «Não posso censurá­‑lo por coisa alguma», declara Maquiavel acerca da longa carreira de César Bórgia, uma carreira repleta de infâmias deste género. «Pelo contrário, parece­‑me que deve ser apresentado como um exemplo, como o foi por mim, a fim de ser imitado por todos quantos desejam ascender no poderio através da fortuna.»

Mas também não é preciso ser tão manhosamente pitoresco como Bórgia para seguir os conselhos de Maquiavel. Qualquer pessoa que observe a cena política contemporânea sabe que é frequente assistirmos ao espectáculo – menos sangrento, é certo, mas não menos calculado – da imolação pública de um subalterno de um detentor de um cargo político, para este se salvar da ira do povo. Por detrás das aparências elaboradamente encenadas, o subalterno – à semelhança do pobre Remirro, que se limitou a cumprir as ordens do seu chefe – é sacrificado para satisfação do eleitorado, que se sente assim satisfeito e estupefacto.

O que nos conduz ao segundo exemplo de maquiavelismo em acção. «Um príncipe tem portanto de evitar a todo o custo», prossegue Maquiavel retomando a lista das virtudes, «que lhe saia da boca qualquer observação que não seja inteiramente conforme com as cinco qualidades atrás mencionadas», de tal maneira que pareça «totalmente misericordioso, totalmente fiel, totalmente compassivo, totalmente honesto e totalmente religioso. E a mais necessária de todas as qualidades que ele tem de dar a aparência de possuir é esta última.» É muito importante que os governantes – e, mais ainda, os candidatos a governantes – dêem a aparência de ser pessoas de fé. «As pessoas vêem aquilo que o governante aparenta», mas «poucos são os que chegam a ver o que ele é», e dar a aparência de ser um homem de fé descansa os que o vêem, porque, dando a impressão de que acredita em Deus, será de esperar que tenha todas as outras virtudes. Na política, há coisas que nunca mudam.

Mas esta hipocrisia não é o único legado de

O Príncipe de Maquiavel; com efeito, os danos causados por esta obra são muito mais profundos.

O tipo de conselhos que Maquiavel dá em O Príncipe só podem ser dados (e recebidos) por uma pessoa que não tenha medo do Inferno, que considere que a ideia da sobrevivência da alma depois da morte é um disparate ficcional, que esteja convencida de que Deus não existe, pelo que os homens podem dar rédea solta às suas perversões se isso lhes permitir alcançarem os seus propósitos. Não quero com isto dizer que Maquiavel advogue a prática do mal por si próprio; não, Maquiavel advoga outra coisa muito mais destrutiva: o mal é apresentado sob pretexto de ser benéfico, e esse pretexto serve de desculpa para a sua prática. Maquiavel convence o leitor de que as maiores perversões, os crimes mais inconcebíveis, as acções mais depravadas são, não apenas desculpáveis, mas dignas de louvor quando são feitas com vista a alcançar algum bem. E, tendo em consideração que este conselho ocorre no contexto do ateísmo, percebe­‑se que não há limites para o tipo de mal que a pessoa está autorizada a fazer, desde que lhe pareça que com isso produz algum benefício para a humanidade. Não é, pois, de surpreender que O Príncipe fosse uma das obras favoritas de

V. I. Lenine, para quem o glorioso propósito da instauração do comunismo justificava toda e qualquer brutalidade no uso dos meios.

Convém determo­‑nos na profunda conexão que existe entre o ateísmo e o género de conselhos implacáveis que Maquiavel dá ao príncipe, porque esta importante ligação está presente na maior parte dos livros que aqui analisaremos. De acordo com um dos princípios fundamentais do cristianismo – a religião definitória da cultura onde Maquiavel nasceu, e a religião que o nosso autor depois rejeitou –, nunca se pode fazer o mal para dele se retirar um bem. Uma pessoa não pode mentir sobre o seu currículo para conseguir ser eleita para determinado cargo; não pode matar uma criança inocente para progredir na carreira. Um governante não pode dar início a uma guerra para relançar a economia ou subir nas sondagens de opinião. Não se pode recorrer ao canibalismo para resolver o problema da fome; não se pode cometer adultério para obter uma promoção.

A fonte desta proibição reside, obviamente, na circunstância de haver acções que são intrinsecamente más; de haver actos que estão absolutamente proibidos, independentemente das circunstâncias e dos alegados – ou reais – benefícios que deles advenham. Infelizmente, hoje em dia, a maioria das pessoas não adere a este ponto de vista. Quando alguém declara que há acções que são intrinsecamente más – que são de tal maneira sórdidas, de tal maneira ímpias, que a simples ideia de as cometer deixa uma marca negativa na alma –, a reacção mais habitual é um sorrisinho cínico; a este sorriso segue­‑se a enunciação de um exemplo rebuscadíssimo, que tem como objectivo forçar o interlocutor a admitir que é preferível optar por um acto horrivelmente repugnante a aceitar as consequências, ainda mais horríveis, que resultariam da recusa do mesmo acto: «E se um terrorista te disser que, ou matas e esfolas a tua avó, ou ele faz explodir a cidade de Nova Iorque?» O pressuposto de quem propõe esta alternativa é, evidentemente, o de que a opção moralmente correcta será a pessoa matar e esfolar a avó, para salvar a cidade de Nova Iorque; e esta conclusão permite demonstrar, sem apelo nem agravo, que no domínio moral não há absolutos.

Como seria de esperar, as pessoas que propõem este género de alternativas raramente se deixam reger pela lógica; com efeito, se não há actos intrinsecamente perversos, que mal tem permitirmos que Nova Iorque seja destruída por uma explosão para salvarmos a nossa avó? Mas o que agora mais nos interessa é que este tipo de raciocínio é precisamente aquele a que Maquiavel recorre em O Príncipe: Maquiavel foi o filósofo que deu origem à tese de que os fins justificam os meios, de que não há acto algum que seja tão perverso, que a sua perversidade não possa ser mitigada por algum tipo de necessidade ou de benefício.

Mas qual é a relação que tudo isto tem com o ateísmo? Para responder a esta pergunta, temos de regressar, uma vez mais, à religião que define historicamente as convicções que Maquiavel rejeitou. Para o cristão, não há neste mundo necessidade ou benefício que possam ser comparados com a vida eterna. Cometer um acto intrinsecamente perverso separa­‑nos imediatamente do bem eterno que é o céu, e isto independentemente dos benefícios que dele possam resultar no presente. Nenhum dos bens que podemos experienciar neste mundo pode, em circunstância alguma, compensar o facto de passarmos a eternidade a sofrer no inferno. Por outro lado, e como Deus é omnipotente, a necessidade aparente ou o benefício que possam resultar de uma acção perversa cometida neste mundo não serão efectivamente, do ponto de vista da eternidade, nem necessidade nem benefício seja para quem for. Pensar o contrário é uma simples tentação; na verdade, é a tentação.

Como veremos nos capítulos seguintes, a cedência à tentação de fazer o mal para alcançar o bem foi, no século xx, uma fonte de carnificinas sem precedentes, de morticínios de tal maneira horríveis que os que por eles passaram tiveram a sensação de que o inferno se tinha instalado neste mundo (embora se tratasse de crimes cometidos, em grande medida, por pessoas que tinham rejeitado a ideia do inferno). A lição que aprendemos – ou que devíamos ter aprendido – com tão épica destruição é a seguinte: quando começamos por permitir que se façam males para deles se retirar o que nos parece ser um bem, passamos em seguida a permitir que se façam males maiores com vista à obtenção de bens cada vez mais questionáveis, até chegarmos ao ponto de consentir que se perpetrem os mais terríveis males a fim de se alcançarem simples trivialidades.

Quando se retira Deus do quadro, deixa de haver limites para o mal, e não há bem que seja suficientemente trivial como desculpa para o mal. Considere­‑se uma reportagem publicada há uns anos no jornal britânico The Observer. Na Ucrânia, país que tanto sofreu sob o peso do ateísmo soviético, as mulheres grávidas estavam a vender os fetos a uma clínica de abortos a 180 dólares cada um, fetos esses que a clínica depois vendia por cerca de 9000 dólares cada à indústria da cosmética. Ou seja, as ucranianas grávidas eram – e provavelmente continuam a ser – pagas para matar os filhos, a fim de que as russas pudessem rejuvenescer a pele com cosméticos produzidos com tecido fetal.

Voltando a Maquiavel, o ponto essencial é o seguinte: para se aceitar a tese de que é não apenas permissível mas louvável fazer o mal para dele retirar um bem, a pessoa tem de rejeitar as noções de Deus, da alma e da sobrevivência depois da morte. Foi precisamente o que Maquiavel fez, e é esse, em última análise, o efeito dos conselhos que dá.

Neste ponto, pode­‑se objectar que Maquiavel parece ser um homem de fé, pois introduz comentários pios ao longo de toda a sua obra, referindo­‑se com um certo respeito (embora constrangido e peculiar) às questões do domínio religioso. Assim, pois, se ele dá a impressão de ser um homem de fé, temos de lhe conceder o benefício da dúvida.

Tenho alguma dificuldade em responder a esta objecção, aliás bastante corrente, porque ela resulta de uma assustadora incapacidade de detectar aquilo que é óbvio (quanto mais aquilo que é subtil) em Maquiavel. Como referi atrás, o nosso autor declarava que era importante dar a impressão de que se é um homem de fé; informava­‑nos de que, se quisesse ser um príncipe de relevo, um homem tinha de ser um mestre na arte da impostura e do embuste. E quem será maior príncipe: o governante temporal de um pedaço de terra, ou o filósofo que pretende formar todos os príncipes do futuro, que pretende fundar uma filosofia inteiramente nova?

Repitamos pois: Maquiavel não podia aconselhar os príncipes a terem atitudes que pressupõem o abandono de toda e qualquer noção de Deus, da imortalidade da alma e da sobrevivência depois da morte, se ele próprio as não tivesse abandonado. E é por isso que pode chamar bem ao mal e mal ao bem.

Este aspecto torna­‑se claramente perceptível no capítulo xv de O Príncipe, onde Maquiavel informa o leitor, com toda a naturalidade, de que rejeita a forma como todos os outros falaram acerca do bem e do mal; por ele, tratará do mundo real, da forma como as pessoas se comportam nas repúblicas e nos principados reais. Se «muitos imaginam repúblicas e principados que nunca ninguém viu nem conheceu como verdadeiros», nós, os realistas, devemos desviar os olhos da pura fantasia. Não podemos conduzir a nossa vida por aquilo que é bom (ou por aquilo a que pelo menos se chama bom), adverte­‑nos Maquiavel; temos de a conduzir por aquilo que é eficaz. «Porque um homem que deseja professar o bem em todos os aspectos acaba por chegar à ruína no meio de tantos que não são bons. É pois necessário que um príncipe, se quiser manter o lugar que ocupa, aprenda a ser capaz de não ser bom, e que se sirva ou deixe de se servir dessa aprendizagem conforme tenha precisão.»

No confronto da realidade com a imaginação, Maquiavel opta pela realpolitik. Mas que repúblicas imaginárias são estas, que ele tão vigorosamente rejeita? Uma delas é a que é descrita na República de Platão, onde Sócrates defende que os seres humanos têm de se esforçar, antes de mais, por ser virtuosos. Outra será a que consta de Sobre a República, de Cícero, onde o orador e filósofo argumenta no mesmo sentido. Mas a mais significativa rejeição de Maquiavel é a da noção cristã do céu, rejeição que o nosso autor apresenta com grande clareza nos Discursos sobre Tito Lívio, onde alega que a perspectiva do céu destrói qualquer tentativa de melhorar esta vida, que é a única que temos.

O cristianismo, sustenta Maquiavel, centra as nossas energias num reino imaginário do céu, desviando­‑nos do objectivo de fazer do mundo real um domínio pacífico, confortável e mesmo agradável. Por outro lado, o cristianismo ata­‑nos as mãos por meio de uma série de normas morais – apoiadas no pau que é o inferno e na cenoura que é o céu – que nos impedem de levar a cabo as tarefas sujas que são necessárias à construção desse mundo. Maquiavel dá início assim ao magno conflito moderno entre o cristianismo e o secularismo, que em grande medida caracteriza os quinhentos anos seguintes da história do Ocidente; neste sentido, a marca de O Príncipe será visível em todos os livros que vamos analisar de seguida.






[*] Dado que nem todas as obras referidas no livro estão traduzidas em português, optou­‑se por traduzir as citações directamente a partir do texto inglês. (N.T.)


Partager ce message



← Message plus ancien Message plus récent →


Laisser un commentaire

Veuillez noter que les commentaires doivent être approuvés avant leur publication.