Cortar a Direito (1.º capítulo)

Publié par Hugo Neves le

CAPÍTULO UM

A ÚLTIMA FRONTEIRA


«Não acredito que Deus nos tenha posto na terra para sermos medíocres.»
Lou Holtz


Feira anual do Estado do Alasca, Agosto de 2008. Com a massa cinzenta das Talkeetna Mountains em fundo e o primeiro nevão prestes a abater-se sobre Pioneer Peak, chegaram-me ao nariz os odores outonais da América das pequenas cidades, combinados com salpicos da Última Fronteira. Algodão doce e cachorros quentes compridos. Tacos de halabote, chouriços de rena. O trinado de um banjo no Blue Bonnet Stage, barbas de baleia entalhadas, cestos entrançados pelos esquimós e vegetais gigantes, criados sob o sol da meia-noite.
Com Trig nos braços, o meu filho de quatro meses, ziguezagueei penosamente de banca em banca entre o caudal humano, desde as esculturas em madeira arribada à costa à criação de abelhas ao vinho caseiro de frutos silvestres. As nossas filhas adolescentes, Bristol e Willow seguiam à nossa frente com um grupo de amigas, a rir e a martelar com os polegares as teclas dos telemóveis. Piper, de sete anos, a minha companheira inseparável desde que nasceu, caminhava a meu lado, a comer pedacinhos de algodão doce, a recompensa por acompanhar pacientemente o meu percurso constantemente interrompido através da multidão. Não se incomodava com as interrupções bruscas para uma fotografia a sorrir nem com as afáveis trocas de palavras com os meus eleitores, que eram parte integrante do meu cargo de governadora do estado. De cinco em cinco segundos estendia a mão livre para corresponder ao cumprimento de alguém.
— Hei, Sarah! Nunca deixa de vir à feira!
— Oh, que delícia, este é o mais pequenino? Deixe que lhe dê um beijinho…
— O preço da electricidade está muito alto, governadora. Quando é que começam a fazer mais perfuração?
Lá em cima, no céu alaranjado, uma rajada de ar frio anunciava a chegada próxima do Inverno. Como se dançássemos a conga, a família deslocava-se sinuosamente entre as tendas dos comerciantes e dos expositores, das costeletas de porco ao milho frito, dos vegetais gigantes aos concursos de gado. Uma banda local subiu ao palco, e o som estridente da música mesclou-se ao zumbido constante dos geradores e à gritaria das crianças nos carrosséis. Mais à frente, do lado direito, um cartaz na banca do Alaska Right to Life (RTL), despertou-me a atenção. Uma bebé de rosto incrivelmente doce e envolta em fraldas cor-de-rosa, com falsas asas de anjo presas aos ombros rechonchudos.
— És tu, meu amor — segredei ao ouvido de Piper, como faço todos os anos desde que ela posou para a fotografia. Piper meteu na boca mais um pedaço de algodão doce e olhou sem interesse: Sempre o mesmo cartaz da campanha pró-vida. Ho-hum.
Pensei que continuava a ser uma bela foto, como sempre acontecia quando topava com ela nas festas de angariação de fundos. Fazia-me ter presente que a vida é uma coisa preciosa.
E a minha impaciência com a vida política.
Enquanto defensora intransigente do direito à vida de todas as crianças, a minha militância levou os fundadores do RTL a adoptar Piper como figura de cartaz, mas os meus contactos políticos não tinham sido suficientes para que a máquina partidária do GOP0 [1] autorizasse a organização a apoiar-me nas campanhas eleitorais.
No interior da banca, uma graciosa voluntária interceptou o meu olhar, de modo que me cheguei ao balcão, distribuí apertos de mão e agradeci às senhoras que têm de aturar as graçolas dos que protestam contra a exposição. Com a sua dedicação e sinceridade, essas senhoras são um exemplo da diferença que existe entre os princípios e a política. Ao assinar o livro dos visitantes voltei a ver a fotografia de Piper sobre o balcão e senti-me irritada com a minha própria irritação Ainda não tinha aprendido a aceitar o facto de que as máquinas políticas distorcem o serviço público — e que muitas vezes o que fazem é desprovido de sentido.
Alguns anos antes tinha visto o nosso estado acelerar em direcção ao descalabro económico. Desde 1975, data do início da construção do Trans-Alaska Pipeline, que viria a ser a nossa corda de salvação, que se tornava cada vez mais evidente para os cidadãos do Alasca que muitos responsáveis públicos não estavam efectivamente ao serviço do público, mas sim mancomunados com o Big Oil, a indústria do petróleo. E isto ao mesmo tempo que, num estado recente onde as pessoas ainda se encontram imbuídas do espírito pioneiro e independente dos primórdios da América, a máquina governamental crescia tão depressa como um fogo em ervas secas em meados de Julho.
Não fazia sentido.
O verdadeiro serviço público, a implementação de políticas que realmente trouxessem benefícios ao povo, alinhava cada vez mais pelas conveniências dos políticos e das suas máquinas infernais. Desde criança que nutria grande interesse pelas questões da governação e pelos acontecimentos do quotidiano, uma enorme vontade de colaborar, e foi durante a presidência de Ronald Reagan que me apercebi do impacte do senso comum aplicado à política. Na faculdade senti curiosidade pelas ciências políticas, e estudei jornalismo por ter a paixão do poder da palavra. Para além de ter sido criada na ideia de que na América qualquer pessoa pode fazer a diferença.
Foi essa a razão que me levou a envolver na política. Comecei por integrar o Conselho Municipal de Wasilla, onde mais tarde servi dois mandatos como presidente e ajudei a transformar a nossa pequena vila pachorrenta na comunidade em mais rápido crescimento de todo o estado. Depois disso assumi o cargo de entidade reguladora para o gás e o petróleo, onde supervisionei a indústria energética e estimulei a exploração responsável dos recursos, a maior riqueza económica do Alasca. Em 2002, quando se aproximava o fim do meu segundo mandato como presidente do município de Wasilla, comecei a ponderar com Todd, o meu marido, qual seria o meu próximo passo. Com quatro miúdos irrequietos, o que não faltava era trabalho para me ocupar, mesmo que resolvesse abandonar o serviço público. E foi o que fiz por algum tempo. Mas continuava a sentir uma inquietação, um apelo insistente no meu coração, que me dizia haver outras áreas em que poderia dar o meu contributo.
Pelo que me era dado ver da minha posição no centro do estado, Juneau, a capital parecia-me abarrotar de «rapaziada» que almoçava com os executivos da indústria petrolífera e fazia negociatas chorudas à porta fechada. À semelhança da maioria dos cidadãos do Alasca, percebi que os votos de muitos membros do corpo legislativo iam ao encontro dos interesses do Big Oil, muitas vezes em prejuízo dos seus próprios eleitores.
Em 1977, quando o petróleo começou a jorrar de Prudhoe Bay, os cofres do estado encheram-se com biliões de dólares. Os ganhos do estado foram maiores do que alguém poderia ter imaginado — biliões de dólares de um dia para o outro! E os políticos começaram a gastá-los. O governo «engordou» a olhos vistos. Um quarto da força de trabalho era paga pelo estado e pelos governos locais, e o número era ainda maior quando se consideravam os que dependiam do orçamento através de contratos e subsídios. Toda a gente sabia que não faltavam conluios. Só que a catástrofe económica de 1980 pôs termo à prosperidade desenfreada da indústria petrolífera. Muitas empresas tiveram de fechar e o desemprego cresceu em flecha.
Durante o período áureo do petróleo, quem quer que levantasse dúvidas sobre a transferência de poder do governo para as grandes empresas petrolíferas era imediatamente condenado. O que é que estás a fazer, a matar a galinha dos ovos de ouro? Mas quando se deu o colapso a galinha dos ovos de ouro continuou a mandar na capoeira. Por essa altura, o governo do estado já tinha desistido de actuar na defesa dos interesses da população. Foi por isso que me candidatei a governadora.
Não era preciso estar no governo para empreender uma cruzada pelos valores éticos, mas deparei-me a todos os níveis da governação com uma paralisia decorrente das politiquices do costume. Não estava programada para entrar nesse jogo. E como combati a corrupção dos políticos, independentemente do partido a que pertenciam, os dirigentes do GOP afastaram-se deliberadamente de mim e da minha administração, o que nada me incomodou. Embora filiada no partido republicano nunca tive um nicho político, e mesmo como governadora nunca fiz parte dos círculos favoritos do GOP. Para mim, era o tipo de relacionamento que favorecia ambas as partes: não estava politicamente enfeudada, e ninguém me devia nada. O que me dava liberdade e margem de manobra para escolher as pessoas mais indicadas para servir os interesses da população do Alasca sem considerações de índole partidária e para me sentir responsável apenas para com aqueles que me tinham elegido — os cidadãos do Alasca.
Ainda na banca da RTL, Piper insistiu que se queria ir embora. Estava ansiosa por assistir ao concurso de hula hoop, de modo que distribuí apressadamente mais uns quantos apertos de mão e voltei a pegar em Trig, que entretanto ficara ao cuidado de uma senhora simpática que me tinha pedido para pegar nele.
Entrei com o pé esquerdo no meu relacionamento como o GOP ao afrontar Randy Ruedrich, o presidente local, e o então governador Frank Murkowski. Os líderes do partido nunca me iriam deixar esquecer que tinha violado o seu Décimo Primeiro Mandamento — «Nunca se deve dizer mal de outro republicano» — mesmo quando as sondagens atribuíam 19 por cento de votos a Murkowski, o seu chefe de gabinete se declarou culpado de um crime grave e os sinais de corrupção aumentavam a olhos vistos.
Não tinha tempo a perder para jogos de sedução com a situação vigente, para além de nunca tencionar fazer o jogo do partido. O que significava que tinha de trabalhar mais, de fazer o estado progredir à margem das trocas de favores e com base em ideias que demonstrassem ser vantajosas para a população. Foi a única maneira que encontrei de transformar uma burocracia relutante numa equipa capaz de introduzir reformas no governo e reduzir a sua ingerência na nossa vida quotidiana.
Depois da minha eleição para governadora, em 2006, alcancei uma taxa de aprovação de 88 por cento, e embora não tenha grande confiança nas sondagens era evidente que a minha administração estava a fazer coisas bem-feitas. Na minha perspectiva, o que aconteceu foi que os habitantes do Alasca, imbuídos de um espírito independente, queriam políticas assentes em princípios sólidos, e não o «deixa-andar» do costume. Sentia-me satisfeita. Tudo quanto pedia era liberdade para trabalhar com afinco, para servir honradamente o povo — e percebi que entre mudar os métodos de governação e mudar fraldas sujas estava a ajudar à mudança do nosso cantinho do mundo.
Deixei alguns dólares como donativo na banca do RTL, sorri e não me preocupei com quem estaria a ver, provavelmente alguns jornalistas. Os cidadãos do Alasca conhecem as minhas ideias sobre o direito à vida — não são novidade para ninguém. Nesse momento, um dos meus BlackBerries vibrou para me chamar ao trabalho. Agradeci mentalmente a desculpa que me dava para sair. Piper agarrou-se ao meu braço com os dedos peganhentos, e segredou-me ao ouvido para me lembrar da promessa que lhe tinha feito, que se ela se portasse bem a levava também à montanha-russa.
— É só mais esta chamada, querida.
Agachei-me atrás do balcão, na esperança de que fosse o meu filho Track a telefonar-me do quartel, em Fort Wainwright. Estava prestes a embarcar para o Iraque e eu aguardava com ansiedade os seus telefonemas esporádicos.
Mas não era Track, e dei por mim a erguer aos céus uma prece silenciosa: «Meu Deus, faz com que não seja outra vez política, concede-me pelo menos uma hora.»
Premi a tecla verde e disse, esperançada:
— Fala a Sarah.
Era o Senador John Mcain, a perguntar se o queria ajudar a alterar o curso da história.

 

 

[1] Grand Old Party — O Partido Republicano. (N.T.)


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