Introdução

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A 15 de Agosto de 1975 o Diário de Notícias avisava os seus leitores de que tinha tomado conhecimento de um documento elaborado por um grupo de trinta jornalistas, no qual era questionada a orientação do jornal. Iniciava-se um duro conflito, que rapidamente ultrapassa as portas do velho diário da Avenida da Liberdade, coincidindo com um dos momentos mais “quentes” do período revolucionário português, caracterizado por profundas lutas entre defensores de diferentes projectos políticos para o futuro do país, mas também por diversas tentativas de controlo político-ideológico dos meios de comunicação social.

Passados quarenta anos sobre o golpe militar de 25 de Abril de 1974, subsistem inúmeras dúvidas sobre alguns dos acontecimentos a que este deu origem. Apesar da enorme complexidade que reveste muitos dos temas relacionados com o processo de transição para a democracia em Portugal, a investigação mais recente apresenta a vantagem de possuir um distanciamento temporal maior em relação aos factos e ser, por isso, tendencialmente mais isenta. Acresce-se o facto de muitas das questões que dividiram a população portuguesa entre 1974 e 1975 permanecerem actuais e, por isso, continuarem a despertar interesse tanto na comunidade científica como na sociedade em geral.

Confrontada com a abolição da censura prévia e o novo momento político, a comunicação social, tal como outros sectores da sociedade portuguesa, sofreu múltiplas e profundas transformações a partir de Abril de 1974. Questões como a liberdade de imprensa e o controlo dos média, sendo variáveis basilares na definição de regimes políticos, estiveram desde o início presentes nos confrontos travados entre as diversas correntes que emergiram na sociedade portuguesa. Sofrendo pressões e influências por parte das forças em presença, a comunicação social afigura-se, em nosso entender, como uma peça fundamental para a compreensão do processo de democratização português.

Neste trabalho, inserido na problemática geral da história dos média e do jornalismo, pretende-se estudar o Diário de Notícias na fase de maior radicalização do período revolucionário português – o pós-11 de Março de 1975 – e, particularmente, o processo relacionado com o saneamento de um grupo de jornalistas do DN, em Agosto desse ano. Este é um episódio envolto numa grande polémica e sobre o qual existem, ainda hoje, opiniões divergentes. Neste contexto, é fundamental ouvir os seus protagonistas, cruzar informações para, posteriormente, interpretá-las. Assim, as justificações dos jornalistas que puseram em causa a orientação ideológica do jornal, a posição da direcção e administração do jornal, dos restantes jornalistas, dos seus trabalhadores e da imprensa em geral, o posicionamento dos partidos políticos e de figuras políticas e militares, do Sindicato dos Jornalistas e do Conselho de Imprensa, entre outros, constituem peças essenciais para a nossa investigação.

Optou-se por seguir, sobretudo, uma perspectiva histórica dos acontecimentos. Neste sentido, recorremos a bibliografia sobre o processo revolucionário, a
documentação variada, ao confronto de materiais de imprensa e a entrevistas orais a alguns dos protagonistas (com diferentes papéis no caso em análise), muito
pouco exploradas neste âmbito. Tratando-se de um estudo sobre um período relativamente próximo, muitos dos seus protagonistas encontram-se ainda vivos, pelo
que a possibilidade de recolher e confrontar os seus testemunhos constitui uma oportunidade de grande relevância, em larga medida devido à escassez de estudos que coloquem em evidência os diferentes pontos de vista sobre o episódio em análise e, ao mesmo tempo, que revelem pormenores sobre o mesmo. Esta opção permitiu-nos, assim, obter informações novas e clarificar aspectos mais ambíguos, ainda que estejamos conscientes dos riscos do recurso à história oral, pois, como lembra Enzo Traverso, “a história e a memória têm as suas próprias temporalidades, que se cruzam, se chocam e se entretecem constantemente, sem que, no entanto, cheguem a coincidir inteiramente entre si” (2012: 55).

Muito embora este episódio se insira num processo mais amplo relacionado com as tentativas de controlo dos média, não se pretende fazer um relato do que foi
a intensa actividade política operada na imprensa no PREC (Processo Revolucionário em Curso). Antes, pelo contrário, temos como objectivo específico estudar
um caso em particular – o saneamento de jornalistas do Diário de Notícias – inserindo-o no contexto político e mediático da época. Trata-se, portanto, de analisar a
imprensa enquanto participante activa no decurso da revolução, indo para isso além da análise do próprio discurso jornalístico. Em suma, tal como sustenta José
Tengarrinha “a não ser que se queira fazer meras resenhas jornalísticas ou colecções de factos anedóticos, a história da Imprensa portuguesa não poderá ser observada como um fenómeno isolado e sui generis, mas como um dos aspectos – certamente um dos mais vivos e expressivos – da história da nossa cultura” (1989: 263).

Este livro encontra-se estruturado em três partes fundamentais. A primeira tem como objectivos introduzir a temática em estudo, explicar as opções metodológicas
e de fontes utilizadas, bem como apresentar uma revisão da literatura, uma breve síntese da história do órgão de imprensa que será objecto da nossa análise
(com maior incidência no período de 1974-1975) e, por fim, uma contextualização política do período, fundamental para a sua compreensão.

A segunda parte do trabalho pretende apresentar o estudo concreto dos saneamentos ocorridos no Diário de Notícias, no Verão de 1975, e o caminho percorrido
pelos protagonistas deste acontecimento a partir daí. No primeiro capítulo desta segunda parte abordaremos as questões relacionadas com o documento que precipitou os acontecimentos, o chamado «Documento dos 30» (divulgado em Agosto de 1975), tendo a preocupação de fazer um levantamento dos diversos pontos de vista e posições sobre ele assumidas, bem como das suas consequências imediatas. No segundo serão reveladas diversas informações sobre a decisão de sanear vinte e dois dos trinta jornalistas subscritores do documento. Entre outros factos, dedicaremos especial atenção ao plenário dos trabalhadores, do qual sai a decisão de saneamento, à criação do «Grupo dos 24», ao apoio do Sindicato dos Jornalistas ao boicote ao jornal, à realização de uma manifestação de apoio aos jornalistas e a tomada de posição das diversas forças políticas nacionais. O terceiro capítulo desta segunda parte será dedicado aos desenvolvimentos do processo no pós-25 de Novembro, onde se nota, claramente, uma inversão da correlação das forças em presença. A suspensão da
direcção do DN e de 12 dos seus jornalistas, a decisão final do Conselho de Imprensa sobre os «24», a nova posição da ENP nesta matéria e a conturbada reintegração de alguns dos saneados serão pontos fundamentais a abordar neste capítulo. Este processo só terminará já em 1976 (embora permanecendo sobre ele algumas dúvidas). Naturalmente será esta a baliza final do trabalho. Por último, apresentaremos as conclusões finais da investigação.


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