Entre Mulheres | 1.º capítulo

Posted by Luís Lucas on

Rita


É curioso como nas épocas festivas nos apercebemos, ainda mais agudamente, da passagem do tempo. Outro jantar de Natal só de mulheres… Há quantos anos instituímos a obrigatoriedade deste encontro? Não me consigo lembrar, mas estou certa de que, no primeiro jantar, o Miguel ainda não tinha nascido, portanto, é de certeza há mais de dezasseis anos. Dezasseis anos… E, apesar disso, o jantar do ano passado parece ter sido apenas há um ou dois meses. Passou‑se um ano, já?

Pergunto‑me há quanto tempo comecei a dizer a frase “parece que foi ontem”. Dantes, parecia‑me uma frase de velhos, um sinal de senescência, mas, agora… Tanto do que é a vida que me parece que foi ontem e, por não ter sido ontem, dou comigo a olhar para um filho adolescente, um homem quase, mais alto do que eu, e em quem mal consigo reconhecer aquele bebé frágil, aquele menino risonho, cujos olhos se acendiam de amor e orgulho, quando me via, de coração suspenso, junto ao portão da escola. Hoje já não... Hoje, para lá deste meu coração ainda suspenso, há um quarto com a porta sempre fechada, com músicas que não entendo e palavras que parecem de aço.

E, por não ter sido ontem, o espelho das manhãs a devolver‑me cada vez mais pedaços estranhos de mim, do meu rosto, do meu corpo: o pescoço suave onde pousavam, sedentos, os teus beijos, aos poucos tornado indefinido, apesar dos cremes, apesar do colagénio, apesar desses rituais femininos com que julgamos evitar o inevitável. Os seios, de que eu tanto me orgulhava, pendendo agora tristes, apesar das promessas do pacote de tratamentos refirmantes que me ofereceste há dois anos, pelo Natal. Deveria ter sido capaz de ler, nessa oferta, o teu desânimo. Deveria ter sido capaz de entrever, nessa oferta, o peito extrovertido e orgulhoso da tua secretária, que julgo que mora em Massamá, ou na Rinchoa, ou na Reboleira, ou noutro qualquer desses subúrbios cinzentos, onde a vida se vai gastando, em prédios tão desolados como os sonhos dos que neles habitam. Deveria ter sido capaz de adivinhar, também nessa oferta, os serões pela noite fora e um perfume que me invadia o quarto, madrugada adentro, pé ante pé, agarrado ao corpo que, exausto, atiravas para a cama. Deveria ter sido capaz….

Hoje não sei se me apetece este jantar. As piadas de sempre, os mesmos risos demasiado postiços, as margaritas de aperitivo e o vinho, demasiado vinho, sempre demasiado vinho, para anestesiar as memórias do que nunca chegámos a ser.

Para além de tudo isso, talvez um grupo de homens na mesa ao lado e, nesse caso, os ridículos esgares do cio e as risadas, nervosas e tolas, próprias desses rituais nocturnos de acasalamento entre espécies à deriva, que adiam os seus medos, nestas noites de solidões  encontradas.

E, em cada riso postiço, a ilusão de que somos de novo adolescentes: quatro raparigas, de dezassete anos, para quem o mundo inteiro é uma possibilidade. Talvez seja já postiça, também, a nossa amizade. Será apenas a teimosia de não deixar morrer um mundo em que fomos felizes? Um mundo que cabia, por inteiro, no recreio do liceu e nas festas de sábado à noite. Um mundo feito de horas ao espelho, ensaiando roupas e maquilhagens e ouvindo a mesma música, vezes e vezes sem fim. Um mundo em que os amores (todos os amores) seriam, para sempre, os últimos. Um mundo que éramos só nós e a nossa amizade, e apenas isso nos importava, e apenas isso contava, porque havia os olhares que diziam e percebiam tudo, porque havia o abraço que apagava todos os medos, porque havia a mentira dita aos pais, piedosa e no momento certo, e, se havia tudo isto, de que mais poderíamos, algum dia, precisar?

Mas mesmo que, nessa época, tal nos parecesse absolutamente impossível, a vida foi‑nos mostrando que não se tem dezassete anos para sempre. Foi‑nos mostrando que os amores nunca são os últimos, mas que vão deixando marcas. Foi‑nos mostrando que o mundo é demasiado grande e não cabe, afinal, no recreio do liceu nem nas festas de sábado à noite. Foi‑nos mostrando que os olhares e os abraços nem sempre chegam a tempo, e que as mentiras só foram piedosas para quem as contou, e nunca para quem as ouviu.
Hoje temos todas quarenta e cinco anos e várias cicatrizes, destas vidas que, para nenhuma de nós, foram aquilo com que sonhámos. Recordamos o passado para não pensar no presente e porque nos apavora o futuro. Ainda rimos e choramos juntas, nestes jantares, e desculpamos, com o vinho, a imensa fragilidade do que somos.

Olho para o vestido estendido, dócil, sobre a cama, à espera de deslizar pela minha pele, cobrindo uma nudez que me incomoda cada vez mais. É novo o vestido. Elegante, sóbrio, capaz de me tirar alguns anos e alguns quilos. No fim de contas, é disto que se trata, é isto que todas queremos: a ilusão de menos uns anos e menos uns quilos. A acompanhar o vestido, um colar de autor, uma bijutaria caríssima, que para mim foi um capricho e para ti foi expiação. A lembrança da manhã em que o comprámos, durante um passeio pelo Príncipe Real, faz‑me sorrir. Nesse momento, quase acreditei que éramos como no princípio (e que poderíamos ser agora, e que poderíamos ser sempre) e que ainda nos olhávamos, que ainda nos conhecíamos, que ainda nos (amávamos?)… Foi um passeio sereno, aquele, tão parecido com aquelas manhãs do começo de nós: um café e uma fatia de bolo, na pastelaria onde dantes passávamos tantas horas, os jornais lidos sem pressas e um sol de inverno, que quase me aqueceu a alma. Depois do café e dos jornais, a minha mão no teu braço e os nossos passos, lentos e outra vez cúmplices, maravilhando‑se nas montras de design, cheias dessa panóplia de objectos que são absolutamente essenciais para aqueles que têm tudo.

E, numa das montras, este colar: — “Lindo!” — Disse eu.

— “Anda, vou oferecer‑to!” — Respondeste tu, e eu, tonta, julgando ver, nos teus olhos, o que os teus olhos há tanto tinham esquecido.

Reparei na empregada da loja, elegante e em‑ proada, de seios extrovertidos e empinados que, seguramente, te hão‑de ter recordado os infindáveis serões de trabalho, todos passados em restaurantes do Guincho, com mãos acariciando‑se sobre a mesa, discretas e vigilantes, e em motéis com espumante barato e espelhos no tecto, onde te reconciliavas com a tua própria virilidade.

E reparei, também, no alívio com que pagaste uma peça estupidamente cara, expurgando, em cada cêntimo, a culpa pela tua infidelidade, a culpa pelo teu silêncio, a culpa deste desamor.

Mas hoje este colar é apenas mais um pormenor elegante, um detalhe do bom gosto pelo qual sempre fui reconhecida. Bom gosto e bom‑ar foram sempre, aliás, a minha marca.

Já no liceu, quando todas tentávamos a rebeldia nas roupas, nas maquilhagens, nos penteados, era o meu ar de menina‑bem que sobressaía, atraindo os remoques dos nossos colegas (todos eles meninos ricos), que se diziam de esquerda, e que criticavam, a mim mais que a qualquer de vós, a burguesice.

Agora acho que já não me importo demasiado. Habituei‑me. Mas ainda assim, há dias em que me irrita a minha própria compostura, que me irrita o meu bom‑ar e a minha contenção.

A contenção e a compostura próprias das verdadeiras senhoras, assim mo ensinaram, desde pequena, e assim as conheci, na minha mãe e na minha avó. A contenção que só os olhos não conseguiam acompanhar, nas noites em que também o meu pai se afadigava, em serões de trabalho intermináveis, dos quais regressava envolto num cheiro de perfume intenso e barato, tão diferente do que deveria ser o perfume de uma verdadeira senhora, tão diferente do perfume da minha mãe. Um perfume que se lhe entranhava nas mãos e que persistia nelas, até ser de manhã, até à hora em que, com um gesto distraído e com os olhos presos no jornal, me despedia na saída para a escola.
Enquanto me inclino para calçar os sapatos, reparo, como aliás tem sucedido nos últimos tempos, que até este gesto, tão simples, já deixou de ser fácil e que o corpo, o meu corpo, desencadeia, nesse processo, um mecanismo complexo de articulações, que antes, na fluidez dos anos, eu jamais suspeitara existir.

É curioso como, com o tempo, vamos ganhando a consciência de cada pequena parcela de nós. Dantes eu era inteira, um corpo uno e indivisível, que sentia como um todo. Hoje sou a soma de muitos pedaços de mim. Pedaços com vida e sentir próprios, que se manifestam nas suas dores e nos seus desconfortos, que acordam e adormecem com vontade autónoma, sem me obedecerem, sem obedecerem a isto que julgo ser eu.

Estou pronta! Olho‑me ao espelho e acho que estou bem: objectivo cumprido na tal ilusão de menos anos e menos quilos. E, por isso, apetece‑me sorrir. Na verdade, apetecem‑me os dezassete  anos.

Apetece‑me rever‑vos, rever‑nos, e retomar as conversas que, ainda ontem (e faz já um ano), deixámos a meio, por causa do vinho, por causa da música, por causa dos jeitosos da outra mesa que, afinal, acabaram por se revelar insuportavelmente cabotinos, no seu alarde de BMWs e estratégias de marketing, tentando, também eles, disfarçar, com penosa agilidade, as atrofias dos seus quarenta anos já bem avançados.

Passámos a adolescência juntas: os fins‑de‑semana nas casas umas das outras, os campos de férias, as tardes de estudo. Depois, mesmo em faculdades diferentes, em cursos diferentes,  acompanhámo‑nos sempre. Nos bons e nos maus momentos, nos sucessos, nos fracassos, nos sonhos desfeitos e nos caminhos que abríamos à vida. Éramos tão diferentes e eram tão diferentes as nossas aspirações de felicidade. Tantos projectos, meu Deus! E tantas gargalhadas! A alma inteira posta num riso!
Reparo, com uma olhadela ao relógio, que está na hora de sair. Não me quero atrasar, embora saiba que eu vou ser, como sempre, a primeira a chegar e que vou ficar furiosa: comigo própria, por causa desta minha incapacidade de chegar tarde, e convosco, pelo habitual desrespeito, nesse gesto de nunca chegarem a horas.

Pego na carteira, uma clutch sofisticada e vistosa, que foi outro capricho, desta vez de uma tarde solitária e de chuva em que o mundo ameaçava abater por dentro. Li no outro dia, numa revista de cabeleireiro, um artigo acerca do poder curativo das compras para quem se sente deprimido, e lembro‑me de ter pensado que, olhando para as peças de roupa, para os acessórios e para os sapatos, os meus armários são um verdadeiro recordatório de insatisfações, frustrações e solidões várias.

Quando passo no corredor, oiço a música no quarto do Miguel. Bato ao de leve à porta, enquanto lhe digo: — Até logo, meu filho. Vou jantar fora. — Tenho a certeza de que me ouviu (uma mãe sente estas coisas) e, no entanto, nenhuma resposta. Nunca nenhuma resposta. Onde se terão perdido as luzes que se acendiam nos teus olhos, ao simples som da minha voz?

Fecho a porta de casa e chamo o elevador, enquanto tento, com gestos dignos de ilusionista, guardar na pequeníssima clutch, onde se acotovelam já um batom, algum dinheiro, um cartão de crédito, um pacote de lenços de papel e o estojo das lentes de contacto (coração para a direita, flor para a esquerda), as chaves de casa.

Já tinha decidido não levar carro. É um inferno o estacionamento, numa sexta‑feira e nestas épocas festivas. Além disso nunca gostei de guiar sozinha depois de escurecer. Tenho saudades de me sentar ao teu lado, sentindo‑me bonita, protegida e feliz, quando saíamos à noite. Eras sempre tu quem guiava, quando estávamos os dois. Mais um sinal da minha compostura e do meu conservadorismo!

Talvez apenas mais um sinal da minha submissão a ti, como sempre reclamou a Cristina, ostentando essas certezas absolutas, com que sempre mascarou o seu medo da solidão.

A Cristina, emancipada e precursora das ladies nights, com strip‑tease masculino, e das aventuras de uma noite que doíam uma vida. A Cristina com o telefone sempre desligado nos Natais e nas Páscoas, que a presenteavam com uns olhos vermelhos e inchados. A solidão mascarada, como preço da independência. A carreira e o loft junto ao rio, de cujas janelas observa as famílias felizes em passeios domingueiros, deixando, atrás de si, um rasto de risos infantis, que a persegue para o resto do dia, e que ela afoga em whisky e xanax, com a desculpa do cansaço de uma semana infernal, na agência de comunicação. Bolas, não é fácil apanhar um táxi! Todos os que passam estão ocupados. Estou tentada a voltar a casa e ir buscar o carro. Enquanto, hesitante, dou dois passos atrás em direcção ao prédio, reconheço o teu carro a virar para a garagem. Chegas cedo hoje – o que terá acontecido ao serão no motel?

Ter‑se‑ão cansado de ti, as maminhas extrovertidas e empinadas da secretária de perfume barato?

Decido que agora é que não vou mesmo levar o carro: teria que ir, primeiro, buscar a chave, deixada, como sempre, no pequeno prato, logo à entrada da porta. Se o fizer, vou encontrar‑te no elevador, vou ter de sorrir, enquanto roças, ao de leve, os teus lábios na minha bochecha, num arremedo de beijo que me vai dar vontade de chorar.


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