Como nos Livramos do Euro? (1.º capítulo)

Posted by Hugo Neves on

1. Uma escolha absurda



Os governos europeus estão presos na teia monetária que eles próprios construí­ram obstinadamente durante décadas, e com a qual esperavam a captação de receitas miraculosas para fugirem à dura necessidade do ajustamento estrutural das suas despesas. Preparada desde longa data, após a dissolução do sistema de câmbios quase fixos de Bretton Woods, em 1971, depois ainda com mais ambição após o falhanço do sucedâneo desse sistema, a Serpente monetária europeia, a abolição das moedas nacionais, substituídas por uma moeda comum — o euro —, voltou­‑se contra os seus promotores durante as convulsões de 2007­‑2009.
Não é uma surpresa. A integração monetária de economias muito heterogéneas, conduzida com obstinação e desprezando todas as análises económicas, constituía um erro fundamental, que a teoria permitia prever antes mesmo da criação do euro [1]. Previsível, o erro fora efectivamente previsto pelos especialistas, pelo menos por aqueles que eram suficientemente independentes para dispensar o «politicamente obrigatório». E hoje em dia, essa integração concretiza­‑se em total conformidade com os efeitos previstos pelos modernos ensinamentos macroeconómicos.
De facto, a moeda única implicava, por definição, o desaparecimento de políticas monetárias nacionais — taxas de juro e taxas de câmbio —, que constituem um instrumento indispensável para atenuar os efeitos dos inevitáveis choques e vicissitudes da conjuntura económica. Políticas monetárias essas que foram substituídas por uma política monetária centralizada, que por esse facto não convêm a nenhum dos países membros cujas conjunturas divergem habitualmente, e que assim continuaram após a criação do euro. À primeira grande crise, avisavam economistas ao mesmo tempo competentes e profissionalmente independentes [2], as divergências de fase entre as economias nacionais tornar­‑se­‑iam agudas, exigindo políticas monetárias correctivas específicas para cada país, e, portanto o abandono da política centralizada. É neste ponto que nos encontramos actualmente, no macaréu da «grande recessão», a mais grave que conhecemos desde os anos 30.
De panaceia nos discursos oficiais, o euro tornou­‑se um problema real, e os mesmos que ainda ontem o incensavam, desprezando todas as evidências, interrogam­‑se agora sobre as melhores maneiras para o «salvar», enquanto no seu foro mais íntimo receiam que já esteja morto [3].
Porém, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos, e os planos de salvamento, os fundos de apoio aos Estados insolventes, e outras veleidades de coordenação de políticas orçamentais, nada farão: é o próprio sistema do euro que está em causa, e este sistema é, por natureza, autodestrutivo.
Visto que, fundamentalmente, o euro é nocivo para as economias do continente, o seu desaparecimento não deve ser temido, mas sim acolhido como uma oportunidade para o crescimento futuro das nossas economias. É uma questão de lógica elementar: se o euro exerce sobre a economia efeitos globalmente prejudiciais — o que é amplamente reconhecido actualmente, ao fim de dez anos de experiência —, o desaparecimento desse fardo não poderá senão revelar­‑se benéfico para a melhoria do nível de vida [4].
Mas as elites dirigentes da política, da administração e dos negócios, que se obstinaram na criação do euro [5], deveriam reconhecer, perante a dissolução da moeda e a retoma do crescimento que se lhe seguiria, a inépcia do seu credo centralizador e a sua enorme responsabilidade na esterilização progressiva do crescimento das nossas economias, após quase um quarto de século de duração [6]. Não é pois surpreendente que estes dirigentes se sirvam de todos os expedientes possíveis (mas uniformemente dispendiosos), não para salvar a moeda única, que continua a degradar as conjunturas dos países­‑membros, uma missão particularmente impossível, mas sim para atrasar tanto quanto possível o momento da verdade, que se irá traduzir num retorno às moedas nacionais. Como esses expedientes são relativamente variados e como cada um do países­‑membros é capaz de os utilizar de modo diferente, acontece que a trajectória conducente à dissolução do euro, bem como o calendário respectivo, escapa a qualquer previsão exacta, embora o sentido dessa evolução não seja posto em dúvida. Os eurocépticos ganharam, em toda a linha, o combate intelectual.
Entre os economistas existe actualmente um consenso muito alargado, embora tardio em França e na Europa, no sentido de reconhecer a impossibilidade de manter uma moeda única em 17 países com estruturas e conjunturas diferentes (ou seja, numa zona monetária imperfeita), sem uma unificação orçamental que não pode ser conseguida de modo durável senão com um governo central, ou, dito de outro modo, por um Estado federal, conclusão que, na Europa, foi tirada somente por um pequeno número de observadores há dez ou vinte anos [7]. Mas a centralização política e orçamental que muitos ainda consideram possível esbarra com obstáculos fundamentais e actual­mente insuperáveis, que a análise económica permite explicitar [8]. É esta impossibilidade organizacional de uma integração orçamental que condena radicalmente a união monetária numa zona não ideal, e a torna ao mesmo tempo nociva e absurda.
Se for esse o caso, porém, é preciso explicar a extraordinária obstinação dos partidários da moeda única. Existe um indício capaz de revelar as razões profundas da sua política tão pouco razoável: consiste nos excessos dos elogios dos próprios apologistas do euro. Se estes se sentem obrigados a atribuir à sua moeda virtudes tão inverosímeis como constituir um «escudo contra as crises financeiras e económicas», a «aceleração do crescimento por uma moeda forte», a convergência forçada das conjunturas e da inflação, ou ainda a eliminação de resistências à liberalização e às reformas bem como o respeito pelos grandes equilíbrios orçamentais, pela simples virtude de uma moeda única — asserções estas muito rapidamente desmentidas pela realidade — [9], então é porque estavam conscientes da necessidade de abafar as dúvidas existentes no seio dos eurocépticos, «representando com voz grossa», como no mau teatro. No mau teatro é preciso exagerar os efeitos por causa da fraca qualidade do texto. No caso do euro, era preciso exagerar os seus putativos benefícios visto serem efectivamente inexistentes, ao mesmo tempo que os inconvenientes se anunciavam severos e muito reais. No entanto, se as virtudes do euro fossem bem menores do que afirmavam os seus promotores, então é porque eles esperavam uma coisa diferente da melhoria da situação económica do conjunto da população. Mas, sendo assim, o que seria exactamente?
É essa explicação em falta que nos propomos dar nas paginas seguintes. Antes de chegarmos a algumas considerações sobre as maneiras possíveis — e as que parecem excluídas — de sairmos do atoleiro onde o euro nos enterrou. Para o fazer temos primeiro de recordar as razões pelas quais o euro não é viável.
Substituir as moedas nacionais pelo euro constituía uma escolha absurda do ponto de vista económico. Com efeito, essa escolha não podia fazer outra coisa senão baixar o nível de vida na Europa. A razão é simples: a moeda é um instrumento maior da política económica, por meio do qual os governos podem influenciar a actividade de modo a estimulá­‑la quando recebe choques que abrandam o crescimento e a empurram para a recessão, mas também para, ao contrário, abrandar essa mesma acti­vidade quando o crescimento se amplifica e arrasta consigo o aumento da inflação. A política monetária consiste em alterar as taxas de juro dependentes do banco central e, ao mesmo tempo, actuar sobre a distribuição do crédito concedido pelos bancos (e a procura dos particulares e das empresas) assim como sobre as entradas e saídas de capitais que afectam as taxas de câmbio com as outras moedas. Por sua vez, a taxa de câmbio influencia as exportações modificando os preços dos bens nacionais no estrangeiro e os preços dos bens estrangeiros no mercado nacional.
Numa economia aberta ao exterior, a taxa de câmbio é, de longe, o mais importante de todos os valores. Com efeito, afecta simultaneamente os preços de todas as exportações e os preços dos bens importados, daí que afecte directamente as actividades das empresas instaladas no país, sejam exportadoras, sejam produtoras de bens e serviços que concorram com os bens importados. Assim sendo, a supressão dos ajustamentos de câmbio com determinados parceiros comerciais tem consequências pesadas.
Esta supressão é tanto mais nefasta quanto a união monetária em causa não é «ideal»,
quanto os seus efeitos não podem ser compensados por outras políticas económicas (orçamentais, por exemplo) e quanto a integração política é impossível nas condições existentes.

 

 

[1] «A criação da moeda única, o euro, é o mais grave erro económico cometido pelos governos europeus desde as políticas deflacionistas que transformaram a crise bolsista de 1929 numa década de depressão mundial, ao longo dos anos de 1930. Esta criação deu origem a um erro político ainda mais grave: a tentativa de fusão de Estados­‑nação do continente num Estado único de dimensão muito grande.» Era assim que eu escrevia em 1998, na véspera da implementação do euro, nas conclusões do meu livro L’erreur européenne (Grasset).
No passado, logo em 1991, o mais completo e o mais constante dos «eurocépticos», Martin Feldstein, então presidente do famoso National Bureau of Economic Research, previra com exactidão as consequências nefastas e as vicissitudes do futuro euro, em diversas comunicações, nomeadamente num artigo com grande repercussão, «Europe’s monetary unin: the case against MEU», publicado pelo semanário The Economist em 13 de Junho de 1992.

[2] O exemplo foi referido por algumas personalidades com concepções teóricas tão diferentes como Martin Feldstein e Paul Krugman, a que um pouco mais tarde se juntou Milton Friedman, e mais recentemente Joseph Stiglitz.

[3] Um número cada vez maior de comentadores tira esta conclusão, após a alta do euro em relação ao dólar durante a presente década, e ainda mais depois da crise, como muito recentemente aconteceu com Charles Calomiris, em «The Euro Is Dead» (Foreign Policy, 6 de Janeiro de 2011). Contudo, de um modo original mas ilógico, Calomiris propõe a ressurreição posterior do euro.

[4] De facto, a importância do atraso de crescimento acumulado durante os anos do euro (e durante os anos 90 devido às políticas de preparação da unificação monetária através da convergência com os critérios de Maastricht) permite prever bons anos de prosperidade «de recuperação» após o desaparecimento dessa moeda. Recuperação de crescimento semelhante à que aconteceu nas economias europeias após a Segunda Grande Guerra Mundial durante os «Trinta Gloriosos».

[5] Veja­‑se a lista de alguns deles, que assinaram o manifesto publicado pelo Le Monde de 28 de Outubro de 1997, cujos extractos constam no Anexo II deste livro.

[6] Incluem­‑se aqui os anos de gestação e de preparação da passagem para o euro, durante os quais as políticas de convergência aplicadas pelos países candidatos prefiguraram aquilo que seria mais tarde a política da moeda única, com os efeitos nocivos correspondentes.

[7] Particularmente em França, o número de economistas críticos do euro contava­‑se pelos dedos de uma mão, ou no máximo de duas mãos. Os mais constantes eram quatro, tal como os Três Mosqueteiros: Alain Cotta, Gérard Lafay, Jean­‑Pierre Vespérini e o autor destas linhas. Alguns outros adoptaram posições mais ou menos reservadas, em função das circunstâncias e das suas obrigações profissionais.

[8] Trata­‑se da análise da desintegração de todas as grandes estruturas hierárquicas em período de revolução e de abundância de informação, matéria que desenvolvi no meu livro Le second XXe siécle: déclin des hierarchies et avenir des nations, Grasset, 2000.

[9] Veja­‑se o meu artigo de 2002: «Les promesses de l’euro: tout était faux», disponível no meu site http://jjrosa.com.


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