Portugal e a Grande Guerra - 1º Capítulo

Posted by Rita Martins on

PREÂMBULO






O presente livro é o resultado de uma série de conferências ou comunicações, proferidas em colóquios e seminários académicos na universidade, e de intervenções mais pontuais que fui fazendo, desde 2014 a 2018, a propósito da efeméride histórica do centenário da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da participação portuguesa nesse grande confronto internacional, que assinalou a verdadeira transição entre o século XIX e o século XX. Alguns desses trabalhos ou intervenções foram genéricos, com o objetivo de recordar o essencial da Primeira Guerra, do seu contexto político, diplomático e social, das suas operações militares e, sobretudo, do seu significado e consequências civilizacionais. A esses se juntaram estudos mais específicos, sobre um ou outro ângulo, tema ou protagonista português da Guerra, ou durante a Guerra, que permitem compreender, ou visualizar, a beligerância portuguesa de maneira mais aproximada.
Concretizando a estrutura do trabalho, ele funciona como um tríptico, constituído por um primeiro texto de caráter introdutório e (mais) geral, e por um segundo e terceiro textos de temática especializada. Assim, o capítulo 1 tem por objetivo oferecer um resumo da importância da Grande Guerra de 1914-1918 no curso, mais vasto, da contemporaneidade europeia (e mundial), e uma evocação das razões, discursos, dinâmicas e resultados da muito polémica participação nacional no conflito, particularmente na frente europeia da Guerra, com o envio do Corpo Expedicionário Português (o CEP) para a Flandres. Traçado este cenário, que explora também o que eram as condições sociais, políticas, culturais e até económicas da Primeira República portuguesa, seguem-se então dois estudos de caso.
O primeiro desses estudos – que ocupa o capítulo 2 – aborda a figura de João Chagas, nome cimeiro da política e da diplomacia republicanas, e, sobretudo, o seu Diário (mais de um milhar de páginas distribuídas por quatro volumes), como narrativa coeva e uma das fontes históricas mais importantes para o conhecimento do belicismo português, isto é, da defesa propagandística da intervenção de tropas portuguesas em França, ao lado dos aliados, contra o inimigo germânico. O segundo desses estudos – que ocupa o capítulo 3 – centra-se na figura de José Stuart Carvalhais, nome importante do meio artístico, jornalístico e boémio da Lisboa republicana do tempo, e, sobretudo, na sua criação de banda desenhada mais famosa – a dupla de heróis Quim e Manecas, sempre inventivos e irrequietos – como forma inovadora de, nas páginas d’O Século Cómico e da Ilustração Portuguesa, fazer, para os mais novos (em registo infanto-juvenil, mas com ressonâncias para os adultos), uma narrativa visual, ficcional e romanesca do guerrismo português.
Através da biografia e da escrita de João Chagas, embaixador de Portugal em Paris durante quase toda a Primeira República, podemos mergulhar nos bastidores da alta política nacional (e internacional) e compreender por que razões o país foi para a Grande Guerra, e como essa participação, hiperbolizada nas suas vantagens pelos apoiantes de Afonso Costa, foi vivida, desde a expetativa otimista inicial até ao desalento final, como um dos temas mais polémicos e divisivos de toda a história da Primeira República portuguesa. Através da biografia e dos desenhos de Stuart Carvalhais, caricaturista, pintor, fotógrafo, figurinista ou cenógrafo multifacetado e autodidata, podemos visualizar um registo único de como a Grande Guerra, decidida e feita nas cúpulas do poder, chegava aos jornais, à opinião pública, à sociedade que a viveu e a sofreu, e como podia ser contada aos mais novos, a cores, através da linguagem inovadora da banda desenhada, com o registo humorístico das aventuras de Quim e Manecas.
Coexistentes no tempo, João Chagas e Stuart Carvalhais provavelmente nunca se cruzaram, sobretudo depois de 1910, quando o primeiro passou de conspirador antimonárquico a importante porta-voz do novo regime republicano, enquanto o segundo continuou a sua vida de artista errante, que fazia “bonecos” para se sustentar, para encher páginas de jornais e para divertir quem o lia. Postos lado a lado, contudo, ambos oferecem ao historiador algo em comum: a oportunidade de olhar o envolvimento de Portugal no grande conflito internacional de 1914-1918 a partir de registos discursivos que são muito diferentes, embora complementares um do outro: decidir fazer a Guerra (intervindo ou tentando intervir nos corredores do poder), e transmitir que Guerra ia sendo feita, naqueles anos, representando-a e recriando-a livremente na linguagem gráfica da banda desenhada que começava, há um século, a revelar as suas virtualidades artísticas nas páginas dos jornais. Daí o subtítulo deste livro. Ele não é (mais) uma história contínua de Portugal na Grande Guerra, mas um olhar diverso, contextualizado a partir do geral desse tema, sobre a sociedade que viveu a Guerra, sobre as modalidades da política republicana perante a Guerra, e sobre uma das formas possíveis de comunicação dessa realidade, tão omnipresente naqueles anos centrais do regime republicano português.
Construído como um todo que espero ser coerente, este livro pode ser lido em sequência, da primeira à última página, ou considerando cada um dos seus três capítulos como um trabalho autónomo. Por isso mesmo, não há uma bibliografia final única, mas bibliografias específicas em cada capítulo. Alguns títulos ali referidos – os mais importantes e, por isso mesmo, de uso mais recorrente –  aparecem repetidos em duas ou até em todas as partes do livro; outros, específicos do tema em tratamento, figuram apenas no final do texto a que dizem respeito. A identificação completa das referências bibliográficas que constam das notas de rodapé deverá, portanto, ter isso em conta. Para não truncar os capítulos, que não foram redigidos em continuidade, mas em momentos diferentes, deixei ficar algumas repetições entre eles, sobretudo visíveis em aspetos gerais de contextualização, factos, datas ou números de Portugal na Grande Guerra.
Cada capítulo é introduzido por um separador com uma imagem alusiva ao seu tema central – uma fotografia de Joshua Benoliel, da partida de soldados do CEP para a Flandres, que fez capa da revista Ilustração Portuguesa em fevereiro de 1917; uma outra fotografia, em bilhete postal da época, de João Chagas; e uma página da banda desenhada Quim e Manecas, de Stuart Carvalhais, alusiva à declaração de guerra da Alemanha a Portugal, publicada n’O Século Cómico em março de 1916. As legendas que acompanham essas imagens são da minha responsabilidade.
Evocar a guerra – as suas expetativas, as suas ilusões, as suas dinâmicas e os seus resultados, por norma trágicos – escrevendo sobre a Primeira Guerra Mundial é um imperativo cívico, para lá do registo historiográfico. As camadas demográficas dos jovens e de muitos adultos de Portugal e da Europa de hoje não têm, felizmente, experiência ou memória do que é viver em guerra. Mas o mundo, em geral, já esteve mais tranquilo, mais seguro e mais pacífico (mais previsível, em suma), do que está hoje. Lembrar 1914-1918 no fecho do ciclo de evocações do seu centenário é falar acerca do passado, sem, todavia, perder de vista o que não se deseja que possa vir a ser o presente e o futuro do nosso século XXI. Este livro pretende constituir um pequeno contributo para essa causa.
Gostava de expressar o meu muito obrigado à Dra. Zita Seabra pelo interesse e disponibilidade com que, à semelhança de ocasiões anteriores, acolheu a publicação deste meu trabalho na Alêtheia, sobretudo no cenário atual, de crescente contração do mercado livreiro, e, também na editora, à Alexandra Louro, que cuidou da parte administrativa e contratual, e à Rita Martins, que assegurou a produção gráfica da obra, tanto na sua versão impressa como na versão digital de e-book. Um agradecimento é igualmente devido às instituições que cederam as imagens aqui reproduzidas: a Biblioteca Nacional de Portugal, a Hemeroteca Municipal de Lisboa e o Museu Militar de Lisboa.
Este livro é dedicado à minha família e, em particular, à memória dos meus quatro avós, nenhum deles hoje vivo e todos nascidos antes, durante ou pouco tempo depois da Primeira Guerra Mundial, em 1902, 1908, 1916 e 1923. E porque quem escreve livros, em longas horas solitárias, retira tempo de atenção e convívio a quem lhe está mais próximo, ele é também dedicado – uma vez mais, e sempre mais – à Rita.

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