O Falcão Albanês (1.º capítulo)

Publié par Afonso Reis Cabral le

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            O funeral do gato Osborne deu brado em Tercena, a pequena povoação onde Silvério morava. A mulher-a-dias contou a uma amiga a forma como foram salvos pelo gato. Claro que, contar segredos a uma amiga, é o mesmo que colocar megafone na praça e o acontecimento foi propalado pela aldeia, levantando enorme celeuma. Um conhecido da mulher atreveu-se a duvidar, brincando:

            – Tal era a pedrada que até te deu para ouvires o gato falar…

            A mulher-a-dias, que era muito ciosa da sua palavra e até já tinha aberto a cabeça a um engraçadinho que, anos atrás, duvidara dela, desta vez aceitou passivamente a incredulidade do vizinho. A forma tolerante como a mulher encarou o remoque deixou o homem intrigado e levou-o a acreditar que algo de anormal se passara.

            As pessoas, em geral, estão disponíveis para aceitar a existência de factos extraordinários. E em tempos de nuvens negras, como são os que atravessamos, acontecimentos invulgares dão algum sabor e sentido à vida.

            Mas o decisivo para a divulgação do fenómeno foi a notícia que a TVI deu do acontecimento. Uma equipa de reportagem da estação televisiva parou na povoação e entrou num bar para tomar um café.

            Jornalista tem faro de cão e cheira ao longe tragédias ou acontecimentos invulgares. Os seus ouvidos apurados, quais radares, ouviram a um grupo de mulheres, numa mesa, contar aspectos do extraordinário acontecimento. Factos destes são uma bênção para quem vive de mexericos e de notícias mais ou menos exóticas.

            Quiseram logo entrevistar a mulher-a-dias ou o Silvério. Um e outro recusaram, indignados. Não resignados com a recusa, tentaram falar com o engenheiro Gabriel, mas este desligou-lhes o telemóvel na cara. Como sabia que a miúda marada era fraca e gostava destes espalhafatos, e antes que os jornalistas a contactassem, Gabriel mandou-a para uma casa de campo que possuía na serra de Montejunto.

            Como as fontes mais qualificadas se recusaram a testemunhar, os jornalistas deram voz ao mulherio que contou o que aconteceu e o que não aconteceu. Algumas até insinuaram que o gato Osborne também participara na orgia sexual. Quem isto garantia era uma matrona com um caniche ao colo que se enroscava, de uma forma suspeita, ao braço da mulher e revirava os olhos. Ao afirmar isto, não estou a descer ao mesmo nível de suspeita evidenciado pelas tagarelas mas, como é meu dever, estou simplesmente a contar o que estes olhos, que a terra há-de comer, observaram.

O certo é que a jovem jornalista, impressionada com a extraordinária história que lhe caiu nas mãos, foi de um rigor a toda a prova e contou a verdade do que se passara, e nada mais do que a verdade. Também, quando esta é tão arrasadora e extraordinária, quem precisa de recorrer à fantasia?

            A peça jornalística narrava que um gato salvou quatro pessoas que pretendiam suicidar-se, perdendo ele a vida nesse acto herórico. O felino transgrediu uma norma da sua raça que o impedia de comunicar e de interferir na vida dos humanos.

            Um amigo meu, que leu estes escritos antes de serem publicados, perguntou-me porque diabo estava eu a ficcionar de forma tão elogiosa a actuação de uma televisão considerada uma fábrica de lixo pelos meus pares escribas. Respondi-lhe que o nome da estação surgira ao acaso.

            – Não será porque a dita televisão, ao contrário das outras, fez uma divulgação do teu romance anterior?

            Há amigos que ainda são piores que os jornalistas; têm radares que captam as nossas mínimas manifestações de sobrevivência. Para não ficar mal perante o meu amigo disse-lhe que se assim sucedera era o meu subconsciente a ser grato.

         – Pois – respondeu-me, irónico – já vi chamar muitos nomes ao oportunismo, agora subconsciente é a primeira vez…

            Ter amigos é muito bom, mas tem destes inconvenientes: pôr a nu os nossos pequenos truques para sobreviver nesta vida difícil.Mais implcáveis ainda que os amigo são os filhos, e posso dizer isto por experiência própria.

 

            Houve uma época da minha vida em que, farto de vergar a mola para os outros, sonhei ser capitalista. Andei a pesquisar como poderia concretizar a ideia e cheguei à conclusão que vender papel higiénico seria uma boa saída, tal a merda que neste pais se faz…

            Arrastei para esta aventura o meu filho mais novo. Mas o rapaz revelava um desinteresse e um tédio pelos meus esforços de fazer o negócio singrar, que me exasperava. Enquanto eu, ao telefone, me esforçava por cativar os clientes para reforçar as encomendas ele lia, tranquilamente, o Tio Patinhas.

            Como sou da escola de ensinar os filhos pelo exemplo, dizia-lhe, no fim da conversa telefónica:

            – Vês, meu filho, é assim que se conquistam os clientes. Este tinha pedido papel higiénico, mas eu, com persistência, consegui que ele encomendasse outro material de limpeza.

            O rapaz olhou-me com imenso tédio e disse uma frase arrasadora:

            – Para vender mais uns litros de detergente não é necessário estar a lamber os colhões ao cliente…

            Eu, que sou da escola da cenoura, apeteceu-me empunhar o cacete e desancar o desnaturado filho. Furioso, gritei-lhe:

            – Filho da puta! Vais vergar a mola na construção civil para saberes o que é lamber os colhões a alguém…

            O rapaz nunca me vira tão furioso. Por precaução meteu o livro do Patinhas na gaveta da secretária e simulou que arrumava o material do armazém. Porém, nunca deixava de me atazanar o juízo. Quando falhava uma encomenda maior, lá vinha uma gracinha do género:

            – Pai, acho que esta semana devias reforçar a aposta no euromilhões…

            Tive que pôr o rapaz a andar porque era um factor de permanente destabilização. Ainda hoje não sei porque tinha tanto asco à minha actividade empresarial. Seria porque, pela primeira vez, se sentia prisioneiro, amarrado a um trabalho? Ou porque me via descer do patamar de herói onde quase sempre os filhos adolescentes colocam os pais?

            Houve um acontecimento que foi decisivo para acabar com a colaboração      do meu filho no negócio do papel higiénico. Uma das formas que ele tinha para me exasperar era, enquanto eu me esforçava por, através do telefone, aumentar as vendas, ou suava as estopinhas a organizar o armazém, ele lia com toda a calma os livros de quadradinhos. Repreendia-o e ele lá ia ajudar-me, mas o trabalho era feito com tanto desinteresse e de forma tão atabalhoada que eu tinha que refazer quase tudo o que ele não deixava em condições.

            Por essa altura, talvez para fugir à monotonia e às contrariedades das tarefas de vendedor, comecei a escrever, secretamente, uma espécie de diário romanceado. Todas as noites, depois de organizar o trabalho para o dia seguinte, desabafava as minhas mágoas para o papel. No fim, arrumava o manuscrito na gaveta da secretária e fechava-a à chave.

            Um dia, esqueci-me de fechar o cofre do meu tesouro literário. O meu filho, talvez procurando os meus segredos mais íntimos, e vendo a gaveta aberta, leu o que eu tinha escrito.

            Quando à tardinha regressei da entrega de uma encomenda, o puto encarou-me trocista:

– Com que então a escrever romances?

            O seu olhar era cruel como só o sabem ser os olhos de um adolescente em disputa com o progenitor. Eu não sabia se havia de chorar ou de despedaçar o desgraçado. Recorri à réstia de energia que me habitava e gritei-lhe:

– Rua, cabraozinho de merda!...A tua mãe que te ature…

            Quando ele saiu, sentei-me na secretária e comecei a chorar baixinho.

            No dia seguinte a mãe dele, de quem eu estava separado, telefonou-me, furiosa:

            – Porque não queres que o teu filho trabalhe contigo? Pretendes que ele se meta na droga e ande com más companhias?

            – Eu quero que o meu filho e tu se fodam! – E desliguei-lhe o telefone.

            Hoje estou agradecido ao rapaz. Graças a ele, e à concorrência que me arruinou, abandonei o monótono negócio do papel higiénico e dediquei-me à escrita. A minha ex-mulher ficou furiosa porque, como nada ganhava com a escrita, deixei de pagar a pensão de alimento do rapaz.

            – Quando for um escritor conhecido, com milhares de livros vendidos, pago todas as mensalidades em atraso – disse à mulher, pelo telefone.

            – Escritor conhecido e a vender milhares de livros? Ahahahaha, deixa-me rebolar de gozo…

            Aquele riso assassino penetrou-me como um punhal e estive quase a desistir do meu sonho. A minha vida tem sido uma sucessão de desistências e esta seria mais uma, mas aconteceu algo que me salvou.

            Passados poucos dias, estava eu no café, quando alguém me bateu no ombro:

– Olá, pai…

            E ali ficámos, embaraçados, a olhar um para o outro.

            Fui eu que quebrei o silêncio:

            – Ao longo da vida tenho sido uma desilusão para ti, não é verdade, meu filho?

– Estamos quites, pai. Eu também não devo ser um teu motivo de orgulho…

            E, quase ao mesmo tempo, soltámos uma gargalhada. Mandámos vir duas    cervejas e ele contou-me que estava a trabalhar num armazém de material de construção civil e que estudava à noite.

– Pai, não desistas de escrever…

Nos seus olhos, cheios de ternura, vi o melhor prémio Nobel que me podia ser atribuído. E, pela primeira vez na minha vida, não desisti de um projecto.

 

            O funeral do gato Osborne foi impressionante. Uma multidão veio de longe para assistir ao solene acto. Os habitantes de Tercena rarearam na cerimónia porque, disseram, “não queriam fazer figura de parvos”.

            Se nem os humanos são profetas na própria terra queriam que um gato tivesse na morte a consagração daqueles com quem conviveu?

            Ao verem aquela multidão, o engenheiro Gabriel e o Silvério acobardaram- se e saíram do povoado. A mulher-a-dias manteve-se firme e, à hora marcada, agarrou no pequeno esquife com o corpo do gato Osborne no seu interior e começou a deslocar-se para o descampado onde o Silvério tinha aberto uma cova.

            A multidão, meio desconfiada, seguia a uma respeitável distância a mulher e a sua carga fúnebre. Ninguém demonstrou um gesto de amizade ou de calor humano. Aquela gente era possuída de uma mórbida curiosidade que fazia dela uma turba implacável, sedenta de acontecimentos extraordinários ou pronta a achincalhar quem se prestava a protagonizar aquele estranho ritual.

            A mulher-a-dias sentia-se tão só, que apertou com força contra o peito o caixote onde o amigo repousava. Então, como se o gato mais uma vez lhe valesse, alguém se destacou da multidão e ajudou a mulher a carregar o caixote. Era o sem-abrigo da aldeia.

            A multidão, ao verificar a companhia nada recomendável que se acercou da mulher, ainda se retraiu mais e algumas pessoas afastaram-se de vez do insólito cortejo.

            A cova onde o gato iria descansar para sempre ficava na extremidade de um vasto campo de girassóis. Como vimos no romance anterior, o único distúrbio visível da mulher-a-dias era falar com a meia dúzia de girassóis que tinha plantado no quintal de Silvério. E aí ficava uma eternidade sentada, a observar a lenta deslocação destes, seguindo o sol, enquanto lhes segredava estranhas palavras. Foi por saber desta paixão da mulher pelos girassóis que Silvério abriu a campa mesmo junto a eles.

            À cabeceira da campa estava erguida uma tábua, onde o engenheiro Gabriel escreveu:

 

                       AQUI REPOUSA O OSBORNE

                     O MAIS HUMANO DOS GATOS

                     QUE DEU A VIDA    

                     PARA SALVAR QUEM AMOU

 

Conhecendo como conheci o gato Osborne, duvido muito que aquela frase, de o considerar “o mais humano dos gatos”, fosse do seu agrado. Mas, se é certo que determinados seres se libertam da lei da morte pelos seus feitos, nem sempre se livram da contingência de ficarem à mercê dos tresloucados actos dos seus semelhantes, quando partem desta para melhor.

            Alguém, do meio da multidão, murmurou:

            – Se o gato, pelos seus actos, é considerado humano,deviam colocar uma cruz na campa e não apenas essa tosca tábua…

            A mulher-a-dias respondeu:

            – Não. O Osborne foi um gato alegre e resmungão. A cruz é o símbolo de terríveis sofrimentos e de todas as patifarias humanas. O poema nesta madeira tosca é a forma mais sublime de o homenagear.

            – Está louca – murmurou alguém.

            A mulher-a-dias ouviu e ficou triste. “Não há nada que emocione esta gente, pensou. Estão aqui apenas pela sua mórbida curiosidade”. E, coisa rara nela, invadiu-a uma tal fúria contra aquela gente, que desejou ter um poder mágico para os vergar, para os fazer ajoelhar na terra fria, comovidos pelos grandes mistérios e solidários pelas pequenas dores.

            Ela acreditava no milagre do sol em Fátima, perante o exaspero do engenheiro Gabriel que procurava demonstrar-lhe que aquilo tinha sido um embuste e que não passava de uma maquinação contra a revolução bolchevique. Mas, o que pode o racional contra a fé dos simples?

            A mulher olhou fixamente para o sol, mas o esperado milagre não se deu. Então, colocou o caixote onde repousava o gato Osborne na cova e o sem-abrigo da aldeia começou a enchê-la de terra.

            Nesse momento, uma nuvem, vinda não se sabe de onde, já que o céu estava límpido e não se via nuvens ao redor, surgiu e tapou por completo o sol. Os girassóis, que tinham a corola inclinada para onde o astro rei se encontrava, no lado oposto da campa, viraram-se suavemente para o local onde se desenrolava a cerimónia do adeus ao gato Osborne e inclinaram a cabeça.

            A multidão, maravilhada, ajoelhou e muitos choravam.

            Quando se afastaram da campa, verificaram que esta estava coberta de girassóis que seguiam, de novo, a direcção do sol, agora já liberto da estranha nuvem. Vozes mais incrédulas afirmaram que foi o sem-abrigo que, quando a multidão virou costas, arrancou uma braçada de girassóis e os espetou na campa do gato Osborne. E, mesmo o fenómeno da ocultação do sol pela nuvem, e a rotação da corola dos girassóis na direcção do esquife do gato, foi explicado, no café da aldeia, por um engenheiro químico reformado. Afirmou o técnico que é normal as nuvens taparem o  sol e que nestas alturas os girassóis se desorientam e dirigem a corola para o sítio onde sentem mais calor.

           O sem-abrigo da aldeia, que no café lambuzava um mil-folhas e um galão, ouviu a sentença e falou para quem o quis ouvir:

           – Explica bem o engenheiro, só não informa onde arranjou o diploma, já que profissão prática no ramo da química ninguém lhe conhece…

            O visado saiu impante do café, perante o risinho do mulherio, mesmo assim divididas entre acreditar no milagre e na explicação racional do duvidoso engenheiro químico reformado.

            A notícia dos estranhos acontecimentos espalhou-se e diversas pessoas começaram a frequentar o local em busca de solução para os seus problemas. O dono do terreno, verificando que a sua propriedade estava a ser constantemente invadida, mandou um tractor arrasar a campa onde o gato repousava, mas, de todas as vezes que a campa era destruída, alguém a reconstruía de novo. Este jogo do gato e do rato só findou quando o proprietário do terreno começou a construir um edifício no sítio da campa.

            Quando a máquina escavadora penetrou fundo na terra, verificou-se que o caixote, onde o gato Osborne devia repousar, estava vazio. Os crentes, que já eram muitos, afirmaram que Deus santificara o gato e que ele subira, em corpo e alma, para o paraíso. Os incrédulos afiançaram que a mulher-a-dias, pela coberta da noite, tinha retirado o corpo do amigo do caixote e o levara para um sítio secreto para ele descansar em paz, longe da raiva destruidora do proprietário do terreno e do fanatismo dos seguidores de milagres.

            E o fenómeno morreu ali. A jovem jornalista da TVI ainda tentou retomar o tema, realizando uma reportagem em que ouvia crentes e detractores do fenómeno. O dono do terreno, que era também proprietário de uma grande gráfica, e que anunciava os seus negócios na referida televisão, ameaçou que, se houvesse mais alguma reportagem sobre “aquela macacada”, acabavam-se os anúncios do seu grupo empresarial na dita televisão.

            Remédio santo. O director de informação chamou a jovem e deu-lhe uma lição sobre pragmatismo jornalístico e as normas do mundo dos negócios. A jovem, timidamente, protestou que aquilo era uma promiscuidade entre interesses privados e informação. Como a jornalista estava a recibos verdes, o director de informação mandou a jovem passar pela tesouraria para receber o que lhe era devido. E passados dias a fogosa jornalista estava num “call center” a vender colchões para o reumático.  


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