A exploração sexual de crianças no Ciberespaço (Prefácio)

Publié par Afonso Reis Cabral le

Prefácio

 

 

Para muitos utilizadores das novas tecnologias de informação, o ciberespaço proporciona acesso à informação e entretenimento, construção de colectivos inteligentes e oportunidade de estabelecimento de novos fluxos comunicacionais, facilitando o contacto entre pessoas espalhadas por diversas regiões do planeta. Para outros, no entanto, este ambiente equivale a um território sem lei, o que justifica todo o tipo de condutas, já que é um espaço à parte, subtraído de qualquer ingerência ou censuras sociais, o que possibilita desde a prática de actos que não são realizados em contactos de face a face em razão das regras de boa convivência, até ao estabelecimento de redes invisíveis de criminalidade. É esta compreensão do ciberespaço como território sem lei que tem preocupado os estudiosos do tema, pois a partir dela têm proliferado os actos de violação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, com destaque para os abusos de natureza sexual.

Os abusos mais comuns contra a população infanto-juvenil perpetrados no ambiente virtual são: a sedução (grooming), que é realizada quando se convence a criança ou adolescente a participar numa situação traumática ou criminosa; mostrar cenas ou fotos pornográficas ou vídeos obscenos; produzir, distribuir ou usar materiais com cenas de abuso sexual; realizar cyberbulliying, ou seja, intimidar ou ameaçar menores de idade pela internet; estímulo ao turismo sexual; e exploração comercial sexual e tráfico humano ou sexual.

A escolha de adolescentes como vítimas dá-se por diversos factores: a excessiva confiança demonstrada nesta faixa-etária, momento em que os adolescentes acreditam que nada acontecerá com eles, ao que se soma a necessidade de desafiar a autoridade parental, praticando actos que lhes pareçam transgressões; os adolescentes, apesar de tentarem aparentar esperteza e astúcia, são na realidade ingénuos, o que os leva a ser facilmente influenciados por adultos e desconhecidos; têm necessidade de atenção e afecto; gostam de aventuras, e entrar em contacto com pessoas estranhas parece-lhes desafiador; são tratados e percepcionados como adultos precoces, o que os conduz a uma maior exposição na web, erotizando mensagens e revelando a sua imagem; muitos são provenientes de famílias desestruturadas, onde não encontram apoio familiar, o que impulsiona a sua busca por atenção no ciberespaço, tornando-os mais vulneráveis aos contactos do abusador. A estas características, ainda podemos acrescentar as situações de dúvida e insegurança em relação à sua sexualidade ou opção sexual, o que os leva a procurarem apoio nas comunidades sexuais, acabando por se tornarem presas fáceis dos abusadores.

Os crimes contra crianças e adolescentes praticados por meio da Internet, apresentam várias peculiaridades: ao dispensar o contacto físico entre a vítima e o abusador, permite que a vítima muitas vezes não se aperceba da prática do acto, pois basta capturar imagens do adolescente e transformá-las digitalmente, dando-lhe um carácter pornográfico. Outras vezes, ocorre o contato on line entre o abusador e a vítima; esta cede-lhe as imagens, fazendo-o na convicção de se tratar de outra pessoa (por exemplo, alguém da sua idade ou da sua escola) e desconhecendo as finalidades para as quais será usada. Neste caso, quando o adolescente desconfia ou se nega a praticar o que lhe é solicitado pelo abusador, é normalmente ameaçado de que as imagens serão divulgadas, contando o abusador que medo e a vergonha a façam ceder.

No caso dos cibercrimes, a violência física só se efectiva a partir do momento em que há contacto físico entre a vítima e o abusador, o que é comum nos casos em que o internauta menor de idade aceita encontrar-se com a pessoa com quem troca mensagens. A violência psicológica e a sexual são, infelizmente, bastante frequentes, já que a influência negativa produzida pela pessoa mais velha sobre a criança e o adolescente assume a prática de violência psicológica; já a violência sexual configura a prática de jogos sexuais, mensagens de duplo sentido, convites, incitação e indução ao prazer sexual, tipos de violência largamente presentes no ciberespaço.

A violência sexual pode manifestar-se de muitas maneiras, como abusos verbais que se concretizam por meio de conversas com conteúdo sexual, desapropriados à idade daquele adolescente; telefonemas e troca de mensagens com conteúdo ordinário, por vezes utilizando mensagens com duplo sentido; exibicionismo que ocorre quando o abusador exibe os seus órgãos genitais ao adolescente, chegando a masturbar-se diante do menor de idade; voyeurismo que é a prática de espionagem do corpo da criança ou adolescente que, induzido pelo outro internauta, acaba por expor o seu corpo.

Os abusos dessa natureza produzem uma vitimização difusa e repetida, que se projecta no tempo, pois além de atingir um número incalculável de vítimas, a circulação da imagem ou o seu armazenamento na web perpetuam a prática do crime, que não se limita às fronteiras territoriais dos Estados, envolvendo vítimas de diferentes comunidades. A todas essas características, soma-se a facilidade de articulação de verdadeiras redes de criminosos, o que conduz ao significativo crescimento dos abusos.

Com efeito, essa espécie de crimes tem registado índices de ocorrência progressivos, já que as estratégias dos pedófilos são bastante facilitadas pela utilização da Internet, não só pelo fato de a tecnologia permitir a comunicação entre aqueles que apresentam o mesmo distúrbio, favorecendo a formação de verdadeiras comunidades de pedófilos que atuam livremente, mas também porque o ambiente virtual, e, sobretudo as comunidades do Orkut, oferecem, dia após dia, um novo arsenal de informações, constituindo-se num grande observatório para quem deseja praticar crimes sexuais contra a população infanto-juvenil.

Assim, se até há bem pouco tempo os abusadores precisavam se deslocar para se manterem em contacto com crianças e adolescentes, hoje, alguns minutos de navegação pelo ciberespaço oferecem informações, dados e fotos que permitem ao pedófilo escolher exactamente o perfil da sua vítima. As informações fornecidas pelos usuários indicam os momentos de maior vulnerabilidade, facilitando a escolha da vítima e da ocasião em que se fará o contacto. Além do processo de aproximação ficar favorecido pelo uso da Internet, o tempo para ganhar a confiança da criança e do adolescente encurtou-se sobremaneira, pois basta forjar um perfil falso, passar-se por alguém da mesma idade e com gostos similares, ou apresentar-se como representante de agências de modelos ou clubes de futebol que, de forma rápida, é possível obter fotos e imagens.

Assim, as configurações do ambiente virtual, especialmente a sua porosidade, um novo perfil de infractores, que dominam as tecnologias e constroem redes quase invisíveis de criminalidade e a  vitimização difusa de crianças e adolescentes, apontam para a necessidade de estratégias articuladas entre as instituições encarregadas da sua protecção a que se somam os esforços de cooperação internacional, já que se tratam de crimes que ferem os sentimentos das vítimas e atingem indistintamente todas as crianças e adolescentes, independente de sua nacionalidade ou localização geográfica.

É deste ambiente que o Procurador-Adjunto Manuel Magriço parte, para, ao longo da sua dissertação, e concomitantemente deste livro, explanar a questão da exploração sexual de crianças no ciberespaço e a aquisição e valoração de prova forense de natureza digital. Para a sociedade, de modo geral, e para os tribunais, de modo particular, não basta conhecer este ambiente, é preciso perceber a forma de agir por parte dos criminosos para prevenir os crimes, ou para os reprimir. Para isso é preciso saber investigar, dominar as ferramentas informáticas e digitais, para decifrar o tipo de acção criminosa e o modo de abordar e coagir as suas vítimas, o que exige provas seja sobre o modus faciendi seja sobre os crimes cometidos.

Sendo este um mundo noticiado e havendo especialistas sobre esta temática, a verdade é que é um mundo dissimulado e de coacção, o que torna difícil fazer provados os crimes e perceber os verdadeiros motivos dos seus agentes, numa presunção que permita condenar os crimes e perceber o tipo ou os tipos de consequências que têm nas vítimas. O que permite dizer que toda a gente se arroga conhecedora deste ambiente e dos crimes que propicia, mas com uma total incapacidade de provar ou demonstrar o crime. Manuel Magriço fá-lo de uma forma brilhante e sustentada, com o seu quê de especulação e abertura a novos entendimentos.

Aliás, a bondade deste trabalho, reconhecida pelo júri de mestrado que o classificou com 18 valores, é a de dotar o Ministério Público – e os tribunais – de mais uma ferramenta de trabalho que ajude a proporcionem a percepcionar o ambiente, o modo de pensar dos criminosos, o modo de investigar os crimes e recolher provas, com vista à dedução de acusações sustentadas e de acordo com o Código do Processo Penal. Com este livro, o Ministério Público dá um passo em frente e a investigação contará com um precioso auxiliar.

 

Luís Miguel Larcher
Doutor em Filosofia e Direito  

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