Capitalismo 4.0 (1.º capítulo)

Publié par Hugo Neves le

CAPÍTULO UM – O Sr. Micawber e Mad Max



As coisas hão­‑de resolver­‑se.
– O refrão simpaticamente auto­‑enganador do senhor Micawber em David Copperfeld

O capitalismo democrático é um sistema concebido para a sobrevivência. Adaptou­‑se com sucesso a choques de toda a sorte, a perturbações tecnológicas e económicas, a revoluções políticas e a guerras mundiais. O capitalismo foi capaz disto porque, ao contrário do comunismo, do socialismo ou do feudalismo possui uma dinâmica interna semelhante à de um organismo vivo. Consegue adaptar­‑se e aperfeiçoar­‑se reagindo ao ambiente em mudança. E evolui para uma nova espécie dentro do mesmo género se isso for necessário para a sua sobrevivência.

No pânico de 2008­‑09, muitos políticos, empresas e comentadores especializados esqueceram a espantosa adaptabilidade do sistema capitalista. As previsões de um colapso global basearam­‑se em perspectivas estáticas sobre o mundo, projectando num futuro indefinido o terrível caos financeiro que reconhecidamente se viveu durante alguns meses. Os mecanismos de auto­‑correcção que as economias de mercado e as sociedades democráticas desenvolveram durante séculos foram esquecidos ou dados como mortos.

A linguagem da biologia tem sido aplicada à política e à economia, mas raramente ao modo como estas interagem.1 O equivalente no capitalismo democrático ao instinto de sobrevivência biológico é a capacidade intrínseca de resolver problemas sociais e de prover a necessidades materiais. Esta capacidade deriva do princípio da concorrência, que dá ímpeto tanto à política democrática como aos mercados capitalistas.

Visto que as forças do mercado recompensam em geral  a criação de riqueza, e não a sua destruição, elas dirigem os esforços independentes e as ambições de milhões de indivíduos para a satisfação de necessidades materiais, mesmo se estas criam por vezes subprodutos indesejáveis. Visto que os eleitores recompensam em geral os políticos quando as suas vidas melhoram e a sua segurança aumenta, e não quando a vida piora e se torna mais insegura, a concorrência democrática dirige as instituições políticas para a resolução, e não para o agravamento, dos problemas da sociedade, mesmo se as soluções criam por vezes, elas próprias, novos problemas. A competição na política é mais lenta e menos resoluta do que a competição no mercado. Deste modo, as suas qualidades de auto­‑estabilização manifestam­‑se por décadas ou mesmo gerações, e não por meses ou anos. Porém, não obstante a diferença de tempos, o capitalismo e a democracia têm uma característica crucial em comum: são ambos mecanismos que encorajam os indivíduos a canalizar a sua criatividade, esforços e espírito de competição para a descoberta de soluções para problemas materiais e sociais. E estes mecanismos funcionam muito bem no longo prazo.

Se considerarmos o capitalismo democrático como uma máquina eficiente de resolução de problemas, as implicações desta perspectiva são muito relevantes para a crise económica de 2007­‑09, mas diametralmente opostas ao senso comum que prevaleceu na sequência desta. Por todo o mundo, os governos foram ridicularizados por tentarem resolver a crise causada pela excessiva concessão de empréstimos emprestando ainda mais. Alan Greenspan foi acusado de tentar adiar o inevitável «dia do juízo final», ao criar bolhas financeiras cada vez maiores. Os reguladores foram atacados por deixarem que bancos praticamente mortos, verdadeiros zombies, continuassem a sua vacilante caminhada, em vez de acabarem definitivamente com eles. No entanto, estas acusações perdem de vista o aspecto para o qual um sistema capitalista democrático está talhado.

Numa democracia capitalista, cuja razão de ser é encontrar novas soluções para necessidades materiais de longa duração, um problema adiado é efectivamente um problema resolvido. Para ser mais preciso, um problema cuja solução pode ser diferida no tempo é um problema que irá provavelmente ser resolvido de um modo que à partida era dificilmente imaginável. Uma vez reconhecida a natureza auto­‑regenerativa do sistema capitalista, a acusação de que se está a «passar os nossos problemas para os nossos netos» – feita quer pelos conservadores a propósito dos défices orçamentais, quer pelos liberais a propósito do aquecimento global – torna­‑se moralmente pouco convincente. Os nossos netos serão quase de certeza mais ricos do que nós e terão ao seu dispor tecnologias muito mais poderosas. Portanto, está longe de ser óbvio que devamos fazer sacrifícios económicos em seu nome. No proverbial optimismo do saudoso refrão do senhor Micawber – «As coisas hão­‑de resolver­‑se» – há uma moralidade e uma teoria económica mais sólidas do que podiam imaginar os vitorianos.

No entanto, há uma condição que tem de ser satisfeita para que as coisas se «resolvam», seja na estabilização dos mercados financeiros e na gestão da economia, seja na eliminação dos poluentes globais e na cura de doenças: o capitalismo e a democracia têm de sobreviver. É por isso que são racionais e moralmente admiráveis os sacrifícios para proteger a democracia e a iniciativa privada contra os desafios militares do comunismo, do fascismo e do fundamentalismo religioso, ao passo que os sacrifícios em nome da prosperidade puramente económica dos nossos netos não o são (pelo menos ao nível da sociedade como um todo).

Mas a sobrevivência do capitalismo depende não apenas da protecção militar. O capitalismo moderno é um sistema social complexo que tem sido incrivelmente bem­‑sucedido na expansão da riqueza, das tecnologias e da esperança de vida de cada geração desde os últimos anos do século XVIII. Contudo, como qualquer sistema complexo, é um sistema delicado. Muitos sistemas complexos auto­‑organizados operam com base no que os biólogos e os matemáticos chamam «limite do caos», uma linha de equilíbrio mutável entre as forças disruptivas que o próprio sistema cria. Karl Marx tinha razão ao dizer que o capitalismo, pela sua natureza, cria contradições internas que levam inevitavelmente a crises que ameaçam a sua sobrevivência. O que Marx e os seus seguidores não perceberam, contudo, foi a capacidade da política, sobretudo da política democrática, para resolver essas contradições, para ultrapassar as crises e para permitir a sobrevivência do capitalismo.

O que é preciso, então, para que o capitalismo democrático possa sobreviver? As lições da história, da biologia evolucionista e do senso comum dizem que há uma condição que tem de ser satisfeita para que qualquer sistema complexo sobreviva num mundo imprevisível e em constante mudança: o próprio sistema tem de ser adaptável, quer dizer, tem de possuir mecanismos internos que lhe permitam submeter­‑se a mudanças radicais.

A crise de 2007­‑09 marcou o quarto momento da história em que o capitalismo democrático enfrentou o desafio de uma mudança profunda. A questão agora é a de saber se conseguirá uma vez mais adaptar­‑se, como aconteceu na passagem para o século XX, na década de 1930 e na década de 1970. A experiência leva­‑nos a crer que sim – e a crer também que o principal mecanismo de sobrevivência será o princípio de Micawber: o pressuposto, à primeira vista imprevidente, de que os problemas acabam por resolver­‑se se os adiarmos o tempo suficiente.

Esperar que «as coisas se hão­‑de resolver» pode soar a confusão entre desejo e realidade. Na verdade, trata­‑se apenas de trazer para a política e para a macroeconomia os argumentos de Adam Smith sobre a dinâmica auto­‑organizativa da economia capitalista. Smith mostrou como a «mão invisível» dos mercados competitivos coordena automaticamente as acções de milhões de indivíduos que perseguem o seu interesse próprio por forma a que elas satisfaçam as necessidades de todos, apesar de ninguém pensar conscientemente no bem comum.

Esta mão invisível guia a iniciativa e criatividade individuais de modo a que os problemas colectivos da sociedade sejam solucionados desde que sejam satisfeitas duas condições. Em primeiro lugar, tem de ser dado tempo suficiente ao processo de auto­‑organização espontânea para que se produzam novas adaptações após cada crise periódica do capitalismo. Em segundo lugar, têm de existir os incentivos apropriados para que a concorrência empresarial e a criatividade humana possam lidar com os problemas comuns da sociedade e satisfazer também os desejos materiais individuais. Como argumentou repetidas vezes Joe Stiglitz, prémio Nobel da economia, não podemos presumir que os mercados privados «alinhem incentivos privados com benefícios sociais»2 – e isto é sobretudo verdadeiro quando se dão mudanças tecnológicas e políticas dramáticas.

Considere­‑se, por exemplo, as emissões de carbono. Os incentivos do mercado hoje em dia tornam muito mais atractivo o uso do carvão e petróleo do que o de qualquer outra fonte de energia e, portanto, excluem a possibilidade de o sector privado investir no desenvolvimento e no aumento relativo da tecnologia energética de baixa emissão de carbono, como a solar, a eólica, a nuclear e outras. Estes incentivos aos mercados podiam ser alterados, mas apenas mediante decisões políticas. Para alterar os incentivos, os governos podiam impor impostos mais elevados sobre os combustíveis fósseis ou limites físicos às emissões de carbono, semelhantes às interdições introduzidas no passado a produtos químicos perigosos como o chumbo, o tabaco, o DDT e os CFCs, que criaram um «buraco» na camada de ozono da terra.3 Se os governos levassem a cabo tais iniciativas, os mecanismos do mercado reduziriam as emissões de carbono para qualquer nível que o sistema político lhes prescrevesse, e fá­‑lo­‑iam de modo mais célere e menos dispendioso do que se pode imaginar. No entanto, se os incentivos não se alterarem por via do processo político assente no princípio «um homem, um voto», não é de crer que a iniciativa privada, que segue o princípio «um dólar, um voto», possa criar espontaneamente um mundo com baixas emissões de carbono.

Um dos maiores erros cometidos pelo fundamentalismo do mercado foi o de pressupor que os mercados criarão sempre os incentivos necessários para que a iniciativa privada resolva problemas sociais urgentes. Na realidade, há muitos desafios – o desemprego massivo da década de 1930, a inflação e a agitação laboral nos anos 1970, a instabilidade financeira e as mudanças climáticas no período presente – que podem ser enfrentadas somente se a política criar novos incentivos económicos e novas instituições que estimulem as capacidades de inovação e de resolução de problemas da iniciativa privada.

À medida que as sociedades progridem, terão sempre de enfrentar novos desafios (com o tempo, as reformas feitas pelas gerações precedentes criam novos problemas para as que lhes sucedem, problemas esses que exigem novas reformas). Mais tarde ou mais cedo, ocorre uma crise, e a necessidade de reformas torna­‑se tão premente que a oposição conservadora acaba por ser suplantada. Porém, estes são processos que levam normalmente anos ou décadas, não meses. As dificuldades para o sistema capitalista surgem normalmente com a adaptação de incentivos e de instituições a condições sociais em mudança. Por exemplo, o governo dos Estados Unidos podia facilmente reduzir os custos dos seguros de saúde, que são quase o dobro dos de outros países com padrões médicos equivalentes, tomando uma decisão política que alterasse os incentivos ao mercado – mas isso equivaleria a suplantar uma poderosa oposição de interesses instalados que beneficiam do status quo. Em cada uma das grandes transições do capitalismo moderno, têm de ser criadas novas instituições e têm de ser realinhados os incentivos económicos a despeito da intensa oposição. Quando os requisitos dos novos incentivos se tornam demasiado radicais para os arranjos político­‑económicos estabelecidos, o capitalismo atinge um ponto de ruptura evolutivo, como aconteceu nas décadas de 1930, 1970, e está também hoje a acontecer. Os dois capítulos que se seguem procuram descrever em pormenor este processo de adaptação sistémica. Todavia, para introduzir o tema, consideremos brevemente as duas grandes transições do capitalismo no século XX.

Na década de 1930, o capitalismo democrático enfrentou as ameaças inauditas do comunismo, do fascismo e da Grande Depressão. A resposta passou por um incremento da despesa dos governos anteriormente impensável – com a segurança social, a tributação redistributiva e os direitos laborais. Mas no fim da década de 1960 e na de 1970, estas reacções à crise precedente começaram, elas mesmas, a ameaçar a sobrevivência do sistema. Da década de 1980 em diante, as revoluções de Thatcher e de Reagan responderam aos novos desafios da inflação e do desemprego gigantesco encolhendo a administração pública, desregulando os mercados financeiros e transformando os incentivos à economia na parte superior e inferior na escala dos rendimentos. Estas reformas conseguiram suplantar os desafios da década de 1970, mas também elas começaram a criar distorções que acabaram por despoletar a crise quase fatal de 2007­‑09. Esta crise, por sua vez, está a forçar a próxima transformação sistémica, transformação essa que pode muito bem vir a ser tão radical como as revoluções de Roosevelt e de Thatcher e Reagan.

A transformação do capitalismo parece sempre mais difícil de alcançar quando é mais necessária – num momento de ruptura iminente. Os grupos de interesse que  prosperaram no velho sistema lutam então com unhas e dentes para impedir a mudança. Teimam que o único modo concebível de organização económica é a versão do capitalismo que os dotou de riqueza e poder e que qualquer tentativa para mudar o sistema está condenado ao fracasso. Advertem para o facto de as reformas serem um risco demasiado elevado quando a economia está, toda ela, à beira do colapso. Estes foram os argumentos das associações empresariais que se opuseram ao New Deal e à economia keynesiana da década de 1930. Estes foram os argumentos dos sindicatos e dos funcionários públicos que lutaram contra Reagan e Thatcher nos anos 1980. E são estes os argumentos usados hoje em dia pelos grupos de pressão da banca e da finança.

Os grupos de pressão não são os únicos a dizer que o modelo de capitalismo prestes a desintegrar­‑se deve ser apoiado porque é o único que pode funcionar. Os meios de comunicação social, os académicos influentes e a elite política partilham habitualmente da mesma opinião. Estes poderosos fazedores de opinião adquiriram a sua posição de destaque no velho sistema. O seu conservadorismo intelectual é muitas vezes ainda mais arreigado do que os interesses económicos pragmáticos dos grupos de pressão. Na década de 1980, os académicos liberais e a elite jornalística sentiam­‑se tão ameaçados pela revolução de Thatcher e Reagan quanto os líderes sindicais e os funcionários do governo cujos empregos eram directamente afectados. O mesmo aconteceu com os media e os académicos da década de 1930, predominantemente conservadores, e o mesmo acontece hoje em dia.

Não é por isso surpresa que nestes momentos históricos, quando o sistema capitalista parece entrar em agonia, ele pareça também incapaz de reforma radical. Mas esses são exactamente os momentos em que o génio da democracia se chega à frente para desempenhar o seu papel. Precisamente quando o sistema económico parece estar a falhar inelutavelmente, lá vem a política para sacudir as estruturas institucionais. São criados novos incentivos, e, depois de um período de transição, ganha forma uma versão reformada de capitalismo. O princípio «As coisas hão­‑de resolver­‑se» é por isso um princípio perfeitamente válido nas democracias capitalistas, desde que a economia política seja suficientemente flexível para se adaptar – e tenha tempo para isso.

A ressalva relativa ao tempo é crucial, pois a evolução pode corresponder a um processo lento. É por isso que os apelos ao sacrifício imediato para impedir que se adie o inevitável dia do juízo final são cantos de sereia que atraem o capitalismo para a sua destruição, e não um toque a reunir em sua defesa. O tempo, longe de «se esgotar» nas profundezas da crise, como estão sempre a proclamar os alarmistas, está quase sempre do lado do sistema. Se o capitalismo puder ser mantido o tempo suficiente, acabará por encontrar um caminho para se adaptar e sobreviver. Contudo, as exigências impacientes para purgar e para liquidar dominam sempre o debate público nos momentos de crise do sistema. Em tais momentos, as atitudes do Sr. Andrew Mellon, o conhecido secretário do tesouro americano na altura do presidente Hoover,4 parecem irresistíveis aos olhos dos ultra­‑zelosos proponentes da iniciativa privada. Na verdade, estes fundamentalistas do mercado são ainda mais perigosos para o capitalismo do que os revolucionários marxistas – e andam pelo menos tão iludidos quanto estes. As suas reivindicações mais habituais são que o capitalismo tem de regressar às suas raízes históricas, que as pessoas deve ser constrangidas sem piedade a honrar os contratos e as dívidas, que devem ser tiradas as amarras à livre iniciativa e que a interferência política sobre as forças do mercado deve ser restringida com maior rigor.5  

Felizmente para as nossas sociedades, é nesta altura que a democracia intervém. Os políticos do fundamentalismo do mercado podem afirmar, especialmente quando estão fora do governo, que o capitalismo se pode salvar a si mesmo se regressar a uma mítica era dourada da livre iniciativa sem entraves. Mas os eleitores são em geral mais sensatos. Percebem, mesmo se apenas subliminarmente, que o capitalismo sobrevive andando para a frente, não para trás. E em momentos de crise, eleitores e políticos pragmáticos compreendem que o capitalismo precisa de tempo para se adaptar a novas condições. É por isso que um político ultra­‑conservador como George W. Bush consignou mais dinheiro para intervenções do governo no mercado livre do que todos os presidentes anteriores juntos. É rejeitada a economia de terra queimada que os ideólogos do mercado livre sempre advogam em tempos de crise e os banqueiros centrais asseguram o adiamento do dia do juízo final que há­‑de julgar os excessos do passado.

Em resumo, a democracia oferece habitualmente ao capitalismo um espaço para que este possa respirar, permitindo que o sistema e as suas instituições possam evoluir. O capitalismo torce e, por isso, não quebra.

Quais são as implicações desta visão das coisas relativamente à crise que atingiu o seu clímax nas semanas que se seguiram ao colapso do Lehman Brothers a 15 de Setembro de 2008? Em vez de destruir ou de estropiar permanentemente o sistema financeiro internacional, como foi então sugerido por muitos comentadores, a crise marcou o começo de uma quarta grande transição na história de duzentos e cinquenta anos do capitalismo. Longe de estar à beira da extinção, o sistema capitalista começou a evoluir para uma nova espécie, que presumivelmente estará mais bem preparada para a vida do século XXI. Este processo de evolução transformará a economia, a política e os negócios nos próximos anos e décadas. A parte V fornece exemplos específicos destas mudanças iminentes na política, nos negócios e na economia. Explicará como esta quarta grande variante do capitalismo, aqui designada capitalismo 4.0, será provavelmente diferente tanto do fundamentalismo do mercado do período de Reagan e Thatcher como da fé nos governos que seduziu o mundo da década de 1930 à de 1970.

Ao especular sobre o futuro, no entanto, é insensato fazer predições dogmáticas. Na verdade, uma distinção fundamental entre o capitalismo 4.0 e as variantes anteriores estará provavelmente no reconhecimento de que o mundo será de longe um lugar muito mais complexo e imprevisível do que nós podemos supor. A experimentação, e não a certeza, irá ser a palavra de ordem tanto na vida política como na empresarial. A humildade intelectual e a incerteza irão estar mais na moda nas décadas que se avizinham, especialmente entre economistas e políticos, do que estiveram nas três décadas de fundamentalismo fanático do mercado inaugurado pelas revoluções de Thatcher e Reagan, ou nas quatro décadas de excessiva confiança burocrática iniciadas com o New Deal.  

A visão do mundo que surge com o capitalismo 4.0 terá de reconhecer que o mundo é demasiado complexo e incerto para se poder compreendê­‑lo, e muito menos dirigi­‑lo, seja por uma confiança ingénua nos mercados, como na última versão do capitalismo, seja por uma excessiva fé num estado benigno e omnisciente, como no modelo anterior. No capitalismo 4.0, os peritos que dizem adivinhar o futuro de acordo com leis económicas imutáveis serão provavelmente considerados charlatães e postos de lado, pois a única coisa que sabemos de certeza sobre economia e políticas públicas é que não há certezas.6

Além do mais, as pessoas podem começar a aperceber­‑se cada vez mais de que as previsões incorrectas sobre o crescimento económico ou sobre a situação financeira, e as políticas erradas que estas inspiram, nem sempre se devem à ignorância dos economistas e dos outros peritos, ou à desonestidade dos políticos. O problema também não tem a ver, para citar a habitual chamada de atenção que encontramos nas dissertações académicas, com o facto de ser «preciso investigar mais».

A imprevisibilidade é inerente ao comportamento humano, e isto é verdade tanto na economia como na política, na psicologia, na diplomacia e mesmo na guerra. É ainda mais verdadeiro no que toca aos mercados financeiros, cujas tendências dependem apenas do que irá acontecer no futuro, e também relativamente ao que as pessoas acreditam que irá acontecer e como essas crenças, por seu turno, podem afectar o comportamento de outros investidores e, assim, a própria realidade. Keynes usou a expressão «espírito animal» para designar esta reciprocidade complexa e imprevisível entre realidade e crenças, e George Soros desenvolveu o tema com mais pormenor na sua teoria da reflexividade.7 As suas consequências para as finanças, para a política e para a economia constituem um dos temas principais ao longo deste livro .

O reconhecimento de que o mundo é intrinsecamente imprevisível e impossível de controlar pode levar a crer que o capitalismo 4.0 irá corresponder a uma era de profundo pessimismo. Mas isto não é necessariamente assim, em parte por causa da sistemática adaptabilidade do capitalismo e da democracia que foi acima descrita como princípio de Micawber. Uma outra razão que explica porque é que a incerteza não conduz por força ao pessimismo decorre de uma característica curiosa da vida económica e política, à qual se pode dar o nome de paradoxo de Mad Max.

O filme Mad Max, de 1979, passa­‑se num futuro distópico que sucedeu ao colapso da civilização. Grupos de motards violentos vagueiam pelo interior australiano, lutando por comida, armas e combustível. O chefe destes grupos é o cruel Mad Max, num papel desempenhado por Mel Gibson, que controla um parque de armazenamento de petróleo abandonado e um depósito de munições. Veio­‑me à cabeça este filme em Março de 2009 – praticamente na altura em que a crise financeira atingiu o seu ponto mais difícil – numa conversa com um cliente da minha empresa de consultoria, um sócio­‑gerente de um fundo de cobertura que tinha acabado de fazer mil milhões de dólares apostando na quase bancarrota de todas as instituições financeiras do mundo. A despeito das terríveis notícias da banca, começavam a aparecer nos indicadores económicos sinais de que a percepção dos mercados podia estar a mudar e de indícios esporádicos de crescimento (os «laivos de optimismo» na terminologia de Wall Street). Perguntei ao meu cliente o que pensava ele destes «laivos de optimismo». A sua resposta deixou­‑me atordoado:


Foram precisos trinta anos de loucura para criar esta trapalhada e serão precisos outros tantos para dela sairmos – não meses ou anos, mas décadas. Há muito que vi que a coisa se estava a preparar e isso permitiu­‑me fazer mil milhões de dólares. Portanto, acho que percebo o que se está a passar. Posso ser um rapaz do campo vindo do Texas e não sou economista, mas os mil milhões que fiz dizem que sei ver a diferença entre os rebentos de um campo de milho e a erva que sai de um monte de estrume.
Para lhe dizer a verdade, já nem me dou ao trabalho de olhar para os números. Seja o que for que digam os indicadores, temos pela frente dez anos de depressão, quiçá vinte. O que me interessa não é saber se esta depressão vai durar dez ou vinte anos; o que me interessa é saber se as sociedades democráticas conseguirão aguentar­‑se tanto tempo. O meu pressentimento é que não.
Por isso, não quero saber dos números da economia, dos planos de incentivos do governo ou das subidas e descidas do mercado. Aquilo que procuro enquanto investidor é o próximo grande acontecimento – quiçá o último grande acontecimento, assim que este caos chegue a um ponto de não retorno. Esse último grande acontecimento, creio, será a falência do estado americano com os chineses a querer o dinheiro das suas obrigações do tesouro. Quando isso acontecer, o dólar degenerará rapidamente e não serão uns laivos de optimismo que servirão para comprar um rolo de papel higiénico. Por isso, para mim, as únicas coisas que vale a pena ter são os activos que irão manter o seu valor quando o dólar e o estado americano desaparecerem: ouro, petróleo e terra arável – além de armas e munições para a sua protecção.


À medida que ia ouvindo esta tirada, notei que o meu exaltado cliente apenas diferia no estilo, e não na substância, dos inúmeros comentadores, financeiros célebres e economistas premiados com o Nobel que iam aparecendo nos media mais reputados durante o nadir da crise, em Março de 2009 – o Financial Times, o Wall Street Journal, a Business Television e a BBC. Também notei que aquilo que tornou a histeria em voga tão persuasiva era também o seu principal defeito: o tom de absoluta certeza, a lógica simples e as extrapolações apelativas a partir dos acontecimentos recentes. Estes são os truques habituais da demagogia que tornam o dogmatismo tão convincente e enganador.

Além disso, houve um outro elemento no início de 2009 que, aparentemente, criou uma espécie de senso comum a favor dos profetas da desgraça. Entre meados de 2007 e o terrível Outono de 2008, provou­‑se que estes oráculos do apocalipse tinham razão, sendo que alguns deles fizeram fortunas apostando com base nas suas previsões que adivinhavam o desastre. Foi este o trunfo retórico lançado pelo meu cliente Mad Max quando a sua diatribe atingiu o seu ponto culminante. O seu superior discernimento e presciência conferiram­‑lhe o direito a assistir ao fim da civilização a partir do conforto do seu muito civilizado escritório no centro de Manhattan, mobilado ao estilo Luís XV e com vista espectacular sobre o Central Park. Todavia, a incongruência da sua riqueza e o seu cruel pressentimento tornavam o seu argumento completamente absurdo. O meu cliente ganhou o seu dinheiro porque o capitalismo era um sistema extremamente volátil e imprevisível. Como podia então ele estar tão seguro de que o futuro estava já irrevogável e claramente predeterminado?

O sistema de iniciativa privada, pela sua natureza, não permite extrapolações lineares. Quem quer que esteja convencido de que os acontecimentos podem apenas evoluir numa única direcção só pode estar enganado. Além disso, mesmo que as predições ao estilo Mad Max fossem plausíveis, qual era o modo de reagir mais racional?

Se o mundo estava realmente a cair na anarquia, como podia um financeiro de meia idade, franzino, que começava a dar sinais de falta de cabelo e sem dotes especiais nas artes marciais ou de sobrevivência, beneficiar com a acumulação de petróleo ou de ouro. Depois do desmoronar da lei e da ordem, a sua aparente riqueza depressa se sumiria nas mãos de comandos e assassinos a soldo da Máfia. O colapso da civilização e uma «guerra de todos contra todos» hobbesiana sepultaria os milionários dos fundos de cobertura entre os fisicamente mais débeis.8 Se, por outro lado, a civilização sobrevivesse, um milionário sem aptidões militares, mas com bom faro para a especulação financeira podia acalentar a esperança de fazer mais um ou dois mil milhões. Podia continuar confortavelmente a apostar nos mercados e a confiar na lei, na polícia e no exército para proteger os seus direitos de propriedade, em vez de acumular as suas próprias «armas e munições». Dado este equilíbrio de recompensas potenciais, este homem foi claramente irracional ao «investir» no fim da civilização, fosse o que fosse que a sua análise teórica tivesse sugerido. Nessas condições extremas, o princípio Micawber de que «As coisas hão­‑se resolver­‑se» é a única base de acção razoável para as empresas e investidores, mesmo sendo verdade que ninguém pode predizer exactamente qual o deus ex machina que vai aparecer para prevenir o desastre.

Espantou­‑me que este paradoxo de Mad Max fosse o equivalente financeiro da aposta de Pascal, o famoso argumento utilitarista a favor da existência de Deus, inventado, com um toque de ironia, pelo filósofo francês e matemático Blaise Pascal.9 Suponhamos que Deus não existe. Se Nele acreditarmos, iremos ser recompensados no céu e teremos uma vida mais feliz na terra. Se Nele não acreditarmos, seremos eternamente amaldiçoados e torturados. Suponhamos agora que Deus não existe. Se Nele acreditarmos, ficaremos a saber quando morrermos que estávamos enganados, mas isso não nos trará prejuízo, uma vez que estaremos já mortos na altura em que ficamos a saber a verdade. E se Nele não acreditarmos, ficaremos a saber que tínhamos razão, mas isto não nos trará qualquer proveito quer estejamos mortos ou vivos. A conclusão parece inescapável: é racional acreditar em Deus, quer ele exista ou não.

O paradoxo de Mad Max é um argumento bem mais poderoso na sua aplicação a sociedades inteiras do que a aposta de Pascal, que se aplica a indivíduos, pois as crenças económicas podem alterar realidades económicas e sociais, ao passo que as crenças religiosas não podem afectar a existência ou não de Deus. Se toda a gente pensar que o sistema económico global está condenado e que não se pode fazer nada para o salvar, esta crença trará por si mesma o antecipado apocalipse – e ninguém, nem mesmo os profetas da desgraça, ganhará alguma coisa com a sua presciência. Se, por outro lado, as empresas, os consumidores e os investidores decidirem em conjunto que a prosperidade e o crescimento irão ser retomados mais tarde ou mais cedo, as acções que levarão a cabo em resultado desta convicção irão contribuir para que se dê uma recuperação. Aqueles que acreditaram na sobrevivência do sistema económico irão por isso ser recompensados – enquanto investidores, empresários ou empregados –, enquanto que aqueles que fugiram para as colinas nada mais possuirão do que um monte de «armas e munições». Esta versão económica da lógica de Pascal está relacionada com a palavra de ordemo slogan que marcou a eleição presidencial de 2008: a audácia da esperança. E aponta para uma conclusão geral sobre o provável zeitgeist do capitalismo 4.0.

Longe de paralisar a acção política, o reconhecimento da incerteza pode ser uma força. Suponha­‑se que aceitamos que todos os prognósticos são por força inexactos, que o comportamento público é extremamente imprevisível e que, por isso, tanto as avaliações do mercado como as regulações do governo se enganam por vezes espectacularmente, despoletando crises financeiras dispendiosas. À primeira vista, isto parece um conselho desesperado, que sugere que são fúteis todos os esforços da gestão económica, das estratégias de investimento e das lideranças políticas. Mas vendo melhor, é o oposto que é verdade.

Quanto mais incerto é o meio, maior é a necessidade de lideranças inteligentes e de pensamento estratégico (que sejam flexíveis). Uma compreensão adequada da incerteza implica um novo tipo de interacção entre a política e a economia, entre governos e mercados, entre o «um homem, um voto» e o «um dólar, um voto». A última parte deste livro dará exemplos de algumas possibilidade de uma tal visão do mundo. Olhará para o modo como o capitalismo 4.0 – com a sua preferência céptica pela experimentação em detrimento da doutrina e com a sua determinação em dirigir incentivos ao mercado que possam atingir objectivos sociais politicamente determinados – pode responder a alguns dos maiores desafios das décadas que se avizinham: a regulação financeira, as mudanças energéticas e climáticas, o fardo com os cuidados de saúde de populações envelhecidas e a concorrência global com o capitalismo de estado autoritário da China.

Em consonância com o espírito do capitalismo 4.0, as conclusões são optimistas, mas cautelosas. Todos estes desafios podem em princípio ser enfrentados pelos poderes criativos humanos da ambição, do engenho e do espírito competitivo dos mercados, mas sob a direcção das forças políticas. No novo modelo de capitalismo, as forças do mercado estarão sob um controlo cada vez mais apertado, tal como todas as outras fontes de energia poderosas da natureza. O capitalismo será autorizado a funcionar, mas será moldado pela política, mas não pela política presunçosa da era social­‑democrata do New Deal.

A política do futuro terá de estar ciente de que o capitalismo é atreito a crises, ensombrado por incertezas e dependente do apoio do estado no que respeita à sua sobrevivência; mas tem de reconhecer também que as decisões do governo são fonte de conflitos burocráticos, presa de grupos de pressão instalados e muitas vezes motivadas por interesses políticos e não pelo interesse público. Acreditar no capitalismo e aceitar também os seus inúmeros defeitos e contradições requer uma combinação de cepticismo e de coragem intelectual que parece desafiar a lógica, especialmente em momentos de crise. Esta coragem bem pode chamar­‑se, com o perdão do reverendo Jeremiah Wright e de Barack Obama, a «audácia da dúvida».


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