Será que os Surfistas devem ser Subsidiados? (Introdução)

Publié par Hugo Neves le

 INTRODUÇÃO


Imagine que o Governo lhe escrevia uma carta explicando que passaria a receber um rendimento mensal, independentemente de estar disponível para trabalhar, estudar ou fazer seja o que for em nome da sociedade. Na verdade, não lhe perguntavam sequer se era pobre ou rico, capaz ou incapaz, ativo ou inativo – pagavam, sem perguntas, um valor correspondente ao que chamavam o rendimento garantido para todos. Empresários, desempregados, trabalhadores públicos e privados, milionários ou indigentes, todos recebiam um rendimento igual. No discurso político que sustentava a ideia, ouviria um governante explicar que esta era a solução para a reforma do Estado e, mais importante ainda, o verdadeiro caminho para reconciliar todos, à esquerda e à direita, com uma nova ideia de capitalismo. Nome da medida: rendimento garantido para todos (RGT).
Relendo a carta novamente, e depois do primeiro choque, perceberia que era tudo verdade. Se tivesse emprego, o seu salário simplesmente somar-se-ia ao RGT. Estando desempregado, o rendimento garantido ser­‑lhe-ia religiosamente pago sem que ninguém lhe pedisse que encontrasse um emprego – não tinha sequer de dar satisfações aos centros de emprego da sua área de residência. Na verdade, explicariam que era agora mais livre de procurar a ocupação que quisesse – arranjar trabalho seria tão legítimo como dedicar­‑se a fazer qualquer outra coisa. Ou até, e para que não sobrassem dúvidas, para não se dedicar a nada. Responsavelmente, claro, a carta diria que a intenção deste rendimento garantido era financiar as suas escolhas, fossem elas quais fossem. Se a sua vida era estudar, então que continuasse a fazê­‑lo. Se a sua ocupação fosse tocar música no Metro, ou lançar malabaristicamente massas em fogo por ruas recheadas de turistas, podia simplesmente continuar a fazê­‑lo sem se preocupar em contar as moedas que lhe deixavam no final. Ou podia pôr o boné e pegar mesmo fogo às massas, nunca mais voltando a equilibrá­‑las. Com esse dinheiro, continuaria a carta, talvez pudesse abrir um negócio. Ou fechar um negócio. Ou passar todo o dia na praia a fazer surf. O RGT, diria o texto com orgulho, não tem preferências além de uma preferência evidente: escolhê­‑lo a si. Só o crime, resumiria finalmente a missiva governamental, o impediria de receber o seu rendimento garantido.
Esta ideia, que parece miragem, está a ganhar adeptos num planeta afogado em dúvidas sobre os caminhos que o podem resgatar à crise. O desemprego galopante, por um lado, e os custos de um estado social esmagado financeiramente por uma pirâmide etária que tem mais beneficiários do que contribuintes, por outro, têm sido quebra­‑cabeças sem solução óbvia. O desemprego jovem, ou a incapacidade de financiar os sonhos de milhões de rapazes e raparigas, é sinónimo de vergonha europeia. No mundo, há mais dívida acumulada do que riqueza. E não é possível esquecer a desigualdade de rendimentos.
Em Portugal, quatro dos dez milhões de habitantes que compõem a população total vive com menos de 360 euros por mês – e mesmo depois de transferências sociais, sobram quase dois milhões de portugueses que sobrevivem com menos de 5000 euros por ano, o número que define o limiar da pobreza. Acima dessa linha, «23% das famílias nacionais com filhos e emprego na maior parte dos meses do ano»1 é pobre apesar dos apoios públicos que recebe. Pior ainda: em Portugal, 15% da população é pobre durante toda a vida, sem qualquer interrupção. O flagelo, na realidade, é mundial: desde o ano 2000 que a desigualdade de rendimentos se intensificou em muitos países. No Reino Unido, por exemplo, nove milhões e meio de pessoas não têm dinheiro para manter as suas casas quentes e um terço das crianças não tem forma de satisfazer pelo menos uma necessidade básica, como três refeições por dia[*].
Talvez por isso, ao longo das últimas décadas este incêndio social tem sido combatido com rios e rios de dinheiro sem que, porém, as suas chamas abrandem. Em 1983, Portugal gastava 6,5% da sua riqueza (PIB, o produto interno bruto) com Segurança Social. Hoje, gasta mais de 17% do PIB nas mesmas despesas para que tudo fique praticamente na mesma: em 1983, 78% da população ativa recebia algum tipo de apoio social. Hoje, esse número baixou, mas apenas três pontos percentuais ­– 75% da população ativa continua dependente de apoios sociais. E a falta de respostas não é património de nenhuma ideologia em particular: à esquerda e à direita, ninguém parece ter solução para o desafio.
Enquanto os primeiros, na esquerda, sublinham a importância de criar ferramentas que promovam maior igualdade, os segundos, à direita, insistem na ideia de que um Estado gordo, paternalista, acaba por privar a maior parte das pessoas de autonomia. A retórica de uns e a de outros é sobejamente conhecida: enquanto à direita se sublinha que os subsídios públicos são convites perversos à dependência e à preguiça, gerando uma sociedade em que uns vivem à custa do trabalho dos outros, à esquerda não são poucas as vozes que lembram como a lotaria genética e social pode ser cruel e traiçoeira, atirando para a pobreza quem pouco consegue fazer para se libertar dessa condição. E é nesta dialética destrutiva que as políticas públicas se vão erguendo, sempre financiadas pela mesma classe média, esmagada nos últimos anos por taxas de imposto que alguns já apelidam de confisco.
É neste contexto de ausência de respostas que o tema do rendimento garantido para todos vai fazendo o seu caminho. Dito de outra forma: é neste contexto de ausência de soluções para um desafio que aflige todas as pessoas (o desafio da desigualdade) que ideias alternativas como o RGT têm ganho tração. É mesmo difícil não ser seduzido, de forma quase natural, pelo argumento: a ideia de que a liberdade e a igualdade podem ser valores compatíveis. Isto é, de que defender a liberdade como um valor fundamental (o argumento da direita) não significa aceitar que dela decorram a maior parte das desigualdades do mundo de hoje (o argumento da esquerda). E que esse dilema de sempre, essa dúvida que parece deixar sem respostas os cientistas políticos, se resolve com a introdução de um rendimento garantido para todos, tal como propõe o filósofo belga Philippe Van Parijs, sobre cujo argumento se vai procurar refletir nos próximos capítulos.
Um último reparo: a palavra «pobre» e a palavra «desfavorecido» são usadas ao longo do livro sem eufemismos ou preocupações excessivas com o respeito pelo politicamente correto. Um pobre, neste livro ou na definição mais comum e aceite em qualquer parte do mundo, é alguém que vive numa situação de privação e de ausência de recursos. Ou seja, alguém que precisa de satisfazer necessidades tão básicas como comer uma refeição por dia, mas que não consegue encontrar meios para satisfazer essa e outras necessidades fundamentais. Um desfavorecido, por outro lado, pode ser pobre, mas também pode ser alguém que, conseguindo sustentar­‑se, falha ao tentar concretizar o seu ideal de vida. Alguém que, por razões genéticas ou sociais, história familiar ou profissional, coeficiente emocional ou inteligência prática, não se revela capaz de viver a vida como deseja. Um desfavorecido, neste conceito, é alguém que não consegue que a vida o favoreça. Não se trata de encontrar uma definição onde cabem todos – trata­‑se de olhar à nossa volta e realizar como tantas pessoas passam ao lado da vida.

 

 

[*] Lister, Ruth, Poverty, Cambridge, Polity Press, 2004


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