Sobre "Tiologias"

Publicado em

Tiologias, de Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada

Mafalda Miranda Barbosa

 

Coimbra, 3 de Dezembro de 2014

 

  1. Começo por me dirigir à Senhora Drª Zita Seabra, representante da editora que nos congrega neste espaço, agradecendo-lhe o convite e, antes disso, a disponibilidade para oferecer ao público obras como as Tiologias do Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada, que tanto nos enriquecem. São para o Senhor Padre Gonçalo as minhas segundas palavras. Palavras de profundo reconhecimento, por se ter lembrado de mim para esta apresentação – lembrança que, decerto, só pode ser expressão da amizade em Cristo – e sobretudo por, ao longo de tantos anos, nunca ter desistido de, através dos seus escritos, nos levar a conhecer o amor misericordioso do Pai. Dirijo-me, por fim, a todos os que aqui se encontram, na esperança de – não por obra minha, mas por intercessão do Espírito Santo – lhes poder dizer algo que não evite o inevitável – ler as Tiologias do Padre Gonçalo.
  2. Digo que ler as Tiologias significa o inevitável, porque o livro, em boa verdade, dispensa qualquer apresentação: não só a chancela do seu autor nos dá garantias de deleite para o tempo que passarmos na companhia das letras que o compõem, como, para nós, que nos habituámos a ser leitores assíduos das crónicas do Pe. Gonçalo, ele não representa o absoluto desconhecido.
  3. Em boa verdade, estas Tiologias foram sendo construídas ao longo dos anos e, talvez por isso, encerram as mesmas peculiaridades com que fomos sendo confrontados nos jornais: a subtileza, o sentido de humor, a provocação, a alegria, mas também e mais importante, a constância na fé e o inabalável conhecimento da doutrina católica. O próprio título, antecipando a boa disposição de muitas páginas, anuncia-nos o tom marcadamente humorístico de alguns escritos, contrabalançado por momentos de profunda seriedade, e relembra-nos Nosso Senhor, a Quem imagino com um sorriso franco no rosto e uma capacidade inigualável de Se rir connosco, seus filhos. É através do riso, na obra Tiologias, são castigados, ao bom jeito latino, muitos dos costumes de crentes e não crentes. E é através do sorriso que esse castigo surge acompanhado do anúncio do misericordioso perdão de Deus.
  4. Por outro lado, esta escrita repartida no tempo faz com que, longe de nos oferecer um tratado, nos leve a entrar em contacto com Nosso Senhor através dos temas do quotidiano (um quotidiano tão singelo como aquele que surge retratado em Portugal dos Pequenitos ou em A língua de Camões e a coxa ou em Tim-tim co-adotado) – Já não é a banalidade do mal que nos domina, sem darmos conta, mas a normalidade do dia-a-dia, encarada na perspetiva correta, que nos leva ao Pai. E nessa medida, as Tiologias são um convite à santidade, que se torna explícita em Encontrarás dragões, na abertura do 3º capítulo: é que, como aí se pode ler, os santos não nasceram já predestinados para “uma tão excelsa missão”. Eles “sofreram no corpo e no espírito todos os combates a que deve fazer frente a natureza humana para corresponder à vocação para a perfeição da caridade, que é o amor”; são aqueles que “mesmo tendo encontrado dragões, interiores e exteriores, os souberam vencer com a ajuda de Deus, estimulada pelo seu constante começar e recomeçar”. As Tiologias servem, em muitos pontos, de guia prático para encontrar o caminho da santidade. E, assim, são, também, uma forma de oração.
  5. Trata-se, em rigor, de uma oração quase universal, da qual ninguém é excluído. Nela estão presentes os sobrinhos de Deus, aqueles “tão bem, tão bem que tratam a Deus por tio”, porque “chamá-Lo pai seria ficar automaticamente irmã ou irmão dessa gentinha pé-descalça e macheirosa que vai à Cova da Iria de xaile e garrafão”; estão presentes os que, de uma forma ou de outra, se assumem como donos da Igreja e prescritores das regras a que o senhor padre deve obedecer, sempre zelosos dos andores e das imagens dos santos; estão presentes os familiares dos católicos retroativos, aqueles “ilustres ateus ou agnósticos recém-falecidos que, sem mediar qualquer conversão in extremis, nem sinal ou leve suspeita da mais vaga fé cristã, são declarados, para efeitos exequiais, retroativamente católicos”; estão presentes os novos cátaros, que fazem da sua “intransigência doutrinal o imperativo principal da sua fé”, esquecendo que “a Igreja está longe de ser um condomínio fechado para uso de umas quantas almas seletas”; estão presentes os pecadores, “as pessoas cristãs que têm dúvidas de fé, que atentaram contra a vida dos seus filhos por nascer, que esmoreceram na esperança, que vivem em uniões não abençoadas, que não conseguem amar e perdoar o próximo, que seguem tendências contrárias ao uso natural do corpo, que são alcoólicas ou drogadas”. Enfim, estamos lá todos os que, longe de nos reconduzirmos em absoluto às personagens tipo destas crónicas, participamos em maior ou menor medida em cada um dos estereótipos.
  6. São-nos, portanto, dirigidas, ao longo de 11 capítulos e cerca de 148 crónicas, inúmeras reflexões que, tendo como propósito espicaçar o leitor, nos auxiliam nos mais variados temas. Recheadas de uma fina ironia, por vezes mordaz, capaz de, sem ferir ninguém, caricaturar alguns traços dos fiéis que somos, para nos chamar a atenção para alguns pontos, outras vezes desenhadas num tom intencionalmente mais sério, as crónicas que compõem a obra Tiologias fazem-nos navegar por mares muito diversos. Torna-se, por isso, impossível, neste tempo limitado de que dispomos, dar conta de todos eles: nem tal seria desejável. Por mais que possamos extrair conclusões, por certo utilíssimas, destes textos, jamais conseguiríamos aceder à mestria com que as ideias são comunicadas. A única alternativa é, pois, lermos, relermos, aprendermos e reaprendermos com as Tiologias que nos trazem até aqui. O que não quer dizer que não possamos sublinhar algumas passagens ou vincar algumas temáticas.
  7. Nelas, somos levados a refletir sobre o que temos de mais genuinamente nosso – a nacionalidade – num apelo que, encaminhando-nos até à Mensagem de Pessoa, nos leva à ideia de reconstrução da identidade de Portugal, alicerçando-nos, para o efeito, nas suas raízes culturais e no Cristianismo que esteve na base da sua fundação. E isto não por uma qualquer “soberba nacionalista, que se afirma no desprezo pelas outras nações, que vota a uma ignominiosa exclusão, mas na agradecida devoção a que o quarto mandamento da lei de Deus nos obriga, porque o amor aos pais há-de ser também ao seu país e às suas gentes, ou seja, à pátria”, e pela certeza de ser esta uma abençoada terra de Santa Maria, onde – e não podia deixar de referir a menção à Universidade de Coimbra feita na obra – nesta cidade, “em tempos idos, ninguém podia obter um grau académico sem se comprometer a defender a Imaculada Conceição de Nossa Senhora”. Deixem-me, pois, que lhes diga que também hoje se invoca Nosso Senhor, nos atos públicos realizados na Sala dos Capelos, e que, no final da licenciatura, os estudantes que o queiram consagram a sua profissão futura a Nossa Senhora, padroeira desta Universidade.
  8. Também hoje se ensina nos bancos desta academia a importância da fundamentação ético-axiológica do direito, tema recorrente nestas Tiologias, que conseguem, com as suas crónicas, tornar simples o que é complexo. E por isso apresentam, quer no tocante ao aborto, quer no tocante ao casamento, quer no tocante à adoção, quer no tocante à eutanásia argumentos tão clarividentes na defesa da posição eticamente mais valiosa que podemos mesmo dizer que desarmam os opositores. Não basta, como se pode ler, que “a lei cumpra alguns requisitos formais e nem sempre a vontade das maiorias é justa, até porque um direito que é apenas voz do poder preponderante dificilmente poderá ser instrumento eficaz na construção de uma sociedade justa”. Nem basta que se advogue um qualquer igualitarismo formal, porque “só seremos efetivamente todos iguais quando se reconhecer, também ao nível social e jurídico, que somos todos diferentes”. O autor mostra-nos, ademais, que não precisamos de deixar de ser católicos para pensar o direito, embora o seu catolicismo jamais o impeça de argumentar normativamente. Isso mesmo se torna evidente em crónicas como Casamento civil indissolúvel, já, onde combina o sentido do direito com a ironia a que nos habituou, Os azares de John Galliano, uma autêntica denúncia ao politicamente correto dos nossos dias; A lógica da Avestruz; Um direito desumano; Romeu, Julieta e a adoção; O direito a ter pai e mãe; Um mal maior contra o bem menor; Salomão, precisa-se!; Os filhos da mentira; Emoção sem razão, onde claramente nos mostra que “a lei não existe para satisfazer os caprichos egoístas de alguns, mas para defender os inalienáveis direitos dos mais indefesos cidadãos”; ou como Desumano, infelizmente; Famílias de plástico, não obrigado; Dor de amor, onde se denuncia a sociedade neopagã, que torna concreta a eugenia de recentes tiranos, e se afirma, por referência a um caso de eutanásia, que “a questão não é a dor, mas o amor: só não quer viver quem não se sente amado”, num grito que nos faz pensar na graça que é ter “a esperança certa de um amor maior, que é vida para além da vida”.
  9. Porque o quotidiano também é feito de grandes momentos e concretas celebrações, as crónicas contidas na obra Tiologias não podiam deixar na sombra as grandes festividades católicas, que nos relembram as raízes da nossa fé e nos dão alento para a vivência do tempo comum. As Cinzas, a Paixão, a Páscoa, o Natal: estão todos lá, nestas Tiologias. Que, porque são Tiologias e não um tratado de Teologia, nos apresentam cada um destes momentos grandes da fé de uma forma intimista, calorosa, quase familiar, que nos insta, pelo exemplo de personagens reais ou fictícias, a redescobrir a essência das festas, a deixar-nos de folclores e a vivê-las unidos ao Deus feito menino por loucura, ao Cristo pregado na Cruz por Amor, ao Deus vivo anunciado em cada Páscoa. Sem perder de vista a força dos dogmas (sobre os quais nos ajuda a pensar, como em A Hipótese que não existe ou A Páscoa, a ciência e o sudário, onde coloca em diálogo fé e ciência, a propósito do santo sudário), somos tocados por Deus que nos acompanha a cada instante, que nos pega ao colo nos momentos de fragilidade, que chora connosco, que se alegra com as nossas alegrias, que rejubila com os nossos sucessos, que nunca desiste de nós nos nossos fracassos, e que nos convida “com a imperfeição dos seus milagres” a cooperar com Ele e nos chama “através dos milagres em duas etapas” à esperança, à oração e à ação.
  10. Um Deus que nos oferece a sua Mãe, figura central de tantas outras crónicas, como O triunfo do Imaculado Coração de Maria, ou A política de Nossa Senhora de Fátima, ou Nossa Senhora de Fátima e Lenine, ou A traição da Irmã Lúcia, relatos impressionantes da força da intervenção da Providência Divina nos destinos deste mundo, testemunhos arrepiantes da presença constante de Nossa Senhora nas nossas vidas e declaração de que o verdadeiro poder está entre os que, neste mundo, são desprezados e esquecidos.
  11. Um Deus que, sendo Amor, não deixa de ser exigente com os Seus filhos e que por isso não se contenta com o relativismo gnóstico tão em voga, que deixa à total autonomia das consciências – mal entendida, entenda-se – o juízo acerca dos comportamentos. Conscientes disso, as Tiologias oferecem-nos verdadeiros antídotos contra o politicamente correto dos nossos dias. Por isso, vemos a obra desmistificar o catolicismo adversativo, próprio dos que são católicos, mas, por necessidade de afirmação do seu próprio pensamento e inteligência, renunciam a Cristo para aceitar o aborto, para negar o inferno, para apoiar a eutanásia, tal como vemos, noutra crónica, a contradição entre ser católico e ser maçon, ou tal como nos confrontamos, noutros escritos, com a denuncia da idolatria pelos animais, ao ponto de nos falar no cãotólico!
  12. Um Deus, por fim, que nos oferece a Sua Igreja, à qual o Padre Gonçalo, como nós batizados, pertence, na qual cumpre uma importante missão sacerdotal e à qual devota particular amor. É esse amor à Igreja que nos é revelado noutras passagens das suas Tiologias, num tom que não pode ser senão contagioso para o leitor, como quando nos fala no Santo Padre, no Papa Bento XVI, ou para esclarecer o que a comunicação social teima, irremediavelmente, em confundir (como no célebre episódio da vaca e do burro do Presépio, que deu origem à crónica Bento XVI e o Farmville, num registo de humor que nos faz – pelo menos àqueles que se deixam viciar por estes jogos de computador – soltar uma gargalhada), ou para agradecer a fragilidade do Sumo Pontífice “que o obrigou a permanecer em sentido a seu lado na oração e na fidelidade ao seu magistério”, ao mesmo tempo que, diante dos ataques à sua pessoa, saiu à liça, com a indignação de um filho ferido no seu mais sincero e profundo afeto filial, ou para confessar que “não sabia que queria tanto a Bento XVI”, ou para se referir às características próprias do Papa Francisco e, amorosamente, se referir a ele como o Papa que é o “papá de todos e de cada um de nós”.
  13. Bem-haja, Padre Gonçalo, por nos invetivar de uma forma tão intensa e de, não querendo vencer, nem convencer ninguém, não se demitir do seu dever e não desistir de travar o “bom combate da fé”. Cabe-nos a nós, a cada um de nós, ler e reler os seus escritos, rir com eles, acompanhar as suas lágrimas que não envergonham, porque também as viu correr na face de Jesus e nos relembra isso, e viver com a alegria própria de quem sabe ser filho deste Deus que é tão bem anunciado nestas páginas.

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