A Saga dos Maçons (1.º capítulo)

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 1 – Irmão La Fayette e irmão Washington



O templo do segredo

Ele tem dezoito anos acabados de fazer, uma guedelha ruiva e a atitude embaraçada de um rapaz que mal saiu da adolescência. Para vir ao encontro vestiu-se com especial cuidado. Mas o homem que o recebe ordena-lhe que tire as suas joias e se despoje da sua arma e das suas moedas. Ele deverá desfazer-se de todos os objectos metálicos que o ligam às paixões e às vaidades do mundo exterior. Agora o homem pede-lhe que desabotoe a camisa e exponha a sua ilharga esquerda e, em seguida, que levante a perna direita das suas calças.

Ele sente-se um pouco ridículo, muito vulnerável, absolutamente humilde. Imagina que é isto que procuram que ele sinta. Então obedece. Tal como o faz quando o homem lhe tira o sapato esquerdo. Não compreende nada e deseja ardentemente fazer uma pergunta. Mas cala-se, invadido por um misto de respeito e temor. Eis que agora o homem lhe passa uma corda em torno do pescoço! A sua imaginação inflama-se. Será que o querem estrangular? Não, o nó é corredio. A corda é como que um último elo que ainda o prende à realidade. Levam-no para uma pequena divisão obscura com as paredes pintadas de negro.

Durante um tempo que lhe parece infinitamente longo, espera. E medita, como lhe pediram para fazer. Agora que os seus olhos se habituaram à obscuridade, fixa o crânio, o pão bolorento e a ampulheta que dispuseram em seu redor. Pensa na morte, no tempo que passa, na sua condição humana. A divisão exígua assemelha-se a um túmulo. Deverá ele morrer para a sua existência passada? Observa os dois cadinhos que estão sobre a mesa, um cheio de enxofre e o outro de sal. Pensa nos alquimistas de outrora à procura da pedra filosofal. Chegará ele a conhecer a alquimia espiritual que lhe prometeram? Lê esta inscrição na parede: V.I.T.R.I.O.L.: «Visita Interiora Terrae, Rectificandoque Invenies Occultum Lapidem» («Visita o interior da Terra, por rectificação encontrarás a pedra oculta»).

Por fim vêm buscá-lo. Vendam-lhe os olhos. Por que razão o mergulham na escuridão? Não lhe haviam garantido que aqui ele «rasgaria as trevas» e acederia «ao conhecimento»? Três pancadas sobressaltam-no. Adivinha que o homem bate a uma porta com o punho da sua espada. Ouve-o pedir autorização para entrarem. A porta abre-se. Com o coração a bater e cego, avança com prudência. Na divisão são numerosos os que o rodeiam, o observam. Ele apercebe-se da sua respiração. Subitamente sente no peito uma ponta gelada. Um punhal! Fica petrificado. Uma voz rompe o silêncio para lhe recordar que ele jurou guardar segredo, jurou nunca falar daquilo que viu e ouviu neste lugar. Caso transgrida o seu juramento, «a garganta ser-lhe-á cortada», «o coração e a língua arrancados» e «o corpo desmembrado». Ele estremece e pergunta-se em que apuros se terá metido.

Demasiado tarde para recuar. Agarram-no e obrigam-no a pôr-se de joelhos. A voz interroga: «Desejas tornar-te maçon?» Ele responde: «Sim». A voz insiste: «E é por tua própria e plena vontade?» «Sim», responde pela segunda vez. Sim, ele quer aderir a esta Fraternidade de pessoas bem-nascidas onde se prega o amor, a entreajuda e a tolerância. Promete sobre a Bíblia que acabam de lhe colocar na mão esquerda. Seguidamente levantam-no e fazem-no dar três voltas à sala. «Qual é o desejo predominante do teu coração?» pergunta-lhe a voz. Como poderá ele saber? Alguém lhe sopra ao ouvido: «A Luz». Ele repete a resposta: «A Luz». «Então que o façam ver a luz», ordena a voz. Ele sente que desatam a venda. E vê pela primeira vez as colunas do templo e homens em semicírculo que guardam as espadas com que o picavam nas suas bainhas.

Estamos em 1775 e Gilbert Motier de La Fayette acaba de aderir à maçonaria, pronunciando mais ou menos as mesmas palavras e efectuando os mesmos gestos que aqueles que actualmente, passados mais de trezentos anos, batem à porta dos templos. O «Irmão La Fayette» ou o maçon sem fronteiras, um pé aqui e outro além-Atlântico, tão famoso em França como nos Estados Unidos. O «herói dos dois mundos» foi o actor de duas revoluções, a americana e em seguida a francesa, o traço de união entre dois continentes, entre duas utopias.



Maçons sem fronteiras

Foi em Paris, ou talvez em Metz onde esteve destacado durante algum tempo, que La Fayette «viu a luz». O local da sua iniciação permanece nebuloso, mas a sua adesão à Irmandade é indesmentível (aderiu nomeadamente à loja São João da Escócia do Contrato Social em 1782 e foi Grão-Mestre dos Amigos da Verdade em 1806). Reivindicará esta pertença até ao seu último suspiro. A sua vida, cheia de voltas e reviravoltas, assemelha-se a um livro de imagens que ilustram as horas mais exaltantes da ordem e cruza-se com a de outro ilustre irmão, senão mesmo o mais ilustre. De facto, quando aos dezoito anos, com o coração aos pulos, o peito desnudado e as calças puxadas para cima, La Fayette enfrenta as espadas dos irmãos maçons, está a seguir as pegadas de George Washington, o seu futuro ídolo. Vinte e três anos antes, em 1752, numa loja maçónica da Virgínia, o futuro primeiro presidente dos Estados Unidos também fora «vendado». Era pouco mais velho que La Fayette em 1775. E certamente não imaginava o extraordinário futuro que o esperava.

Washington, La Fayette. Um nasceu em 1732 e o outro em 1757. Um quarto de século e um oceano separam-nos. Porém, a revolução americana e a maçonaria vão fazer nascer entre eles «uma das maiores histórias de amizade dos finais do século XVIII[1]». É no dia 1 de Agosto de 1777 que os dois homens se conhecem. Washington tem quarenta e cinco anos e vê chegar ao seu quartel-general um jovem fogoso que acaba de festejar as suas vinte primaveras: Gilbert Motier de La Fayette atravessou o oceano para se colocar ao seu serviço, fascinado pelo acontecimento que se produzira um ano antes, a 4 de Julho de 1776: treze colónias da América proclamaram unilateralmente a sua independência. Pela primeira vez na História, num território tão vasto, homens comuns estão prestes a tomar decisões sobre as suas instituições e a escolher o seu modo de governação. Para obterem a sua liberdade, batem-se contra o maior dos impérios, o da coroa britânica. E é George Washington que comanda o seu exército para fazer frente às tropas do rei de Inglaterra.

O jovem marquês quer participar na epopeia. Não é o primeiro. Washington viu já desfilar alguns destes «mercenários», idealistas ou ambiciosos, que sonhavam fazer fortuna no novo continente. Mas vê neste La Fayette algo mais. Em primeiro lugar, foi contra a opinião da sua família e do seu rei que se juntou aos revolucionários e foi a suas expensas que fretou um barco com o nome La Victoire. Washington observa este «pequeno franciú» impetuoso com assombro.

Como imaginar dois homens mais diferentes? O general americano está na meia-idade. A sua fama já atravessou o Atlântico. Ao contrário de La Fayette, não tem grandes estudos, não faz discursos brilhantes e não possui título nobiliárquico. Mas a sua autoridade é indiscutível. Se não se tivesse dedicado de alma e coração à revolução, este filho de fazendeiros teria podido continuar tranquilamente a aumentar a fortuna da família. Os seus antepassados haviam fugido de Inglaterra por ocasião da tomada de poder pelo puritano Oliver Cromwell e haviam-se instalado na Virgínia para explorarem uma vasta propriedade, Mount Vernon, que George Washington herdara. Ele possui dezenas de escravos (mais tarde militará no Congresso a favor de uma «abolição gradual» da escravatura). É um dos fazendeiros mais ricos da colónia, o mais abastado de todos os «Pais» da revolução americana.

Não faz parte dos independentistas de primeira hora. É um moderado quase apagado face aos grandes tribunos ou políticos como John Adams, Thomas Jefferson ou Benjamin Franklin. A sua escolha para chefe militar pelos insurrectos deveu-se ao facto de ele ser o único dos «quadros» da revolução a conhecer bem o manejo das armas. Destacara-se entre 1754 e 1758 nas guerras «franco-índias» que opunham franceses e ingleses no novo continente. Nessa época era ainda um colono leal, tendo mesmo recebido elogios do Rei George III. Dez anos depois, numa estranha reviravolta da História, bate-se contra aqueles que servira e, desta vez, ao lado dos franceses. Soldado aguerrido, impõe-se pela sua experiência. E pela sua corpulência: mede 1,90 metros e pesa perto de 100 quilos. «Era sempre o maior em qualquer divisão», dizem os seus contemporâneos. O seu porte distinto e o seu «dom para o silêncio» impressionam. Economiza as palavras e evita rir em público. Os seus soldados adoram-no. Em suma, é já um monumento.

La Fayette é um peralvilho que nasceu em berço de ouro. Afortunado herdeiro de uma família da antiga nobreza de Auvergne, dá os primeiros passos na carreira militar. Descende de uma linhagem de oficiais quase todos mortos no campo de batalha, mas nunca conheceu a guerra. Muito jovem, desposou uma jovem aristocrata, Adrienne de Noailles. Graças à influência do sogro, que dispõe de acomodações no castelo, é admitido em Versalhes. Frequenta a corte e seduz pelas suas maneiras. A crónica mundana relata que um dia, ao dançar a quadrilha com Maria Antonieta, tropeça e cai. A rainha troça dele. Mas não tem importância, aprende rapidamente os usos e costumes e faz amizade com todos os VIP da época. Com eles, diverte-se e frequenta prostitutas nos jardins do Palais-Royal. Atordoa-se, inebria-se. Mas não só.

Porque se o Palais-Royal é à data o local de todos os prazeres, encontra-se igualmente no centro de todas as intrigas e de todas as contestações. Nobres, burgueses e artistas comprimem-se nos cafés que ladeiam o jardim, um ilhéu de liberdade no meio do Antigo Regime onde a polícia não entra. Aí, a liberdade de pensamento prospera tanto como a liberdade de costumes, e podem ver-se nas mãos dos passeantes livros de Rousseau ou de Voltaire proibidos pela censura. Nas casas de jogo, bebem, jogam e entregam-se à libertinagem, mas também discutem, apresentam teorias ou criticam. La Fayette sente-se confortável. Mergulha na filosofia, na História, na geografia, lê tudo o que lhe vem parar às mãos. A sua educação sexual é paralela à das humanidades. É também por ter a cabeça cheia da leitura dos filósofos da moda que se junta aos insurrectos: os primeiros a porem em prática aquilo que, até aí, apenas lera nos livros.



O credo das lojas maçónicas

O austero Washington vai descobrir que o turbulento La Fayette não é apenas um cabeça-de-vento, um aventureiro frívolo pronto a aderir a uma qualquer causa para avançar na carreira. Também vai perceber que ele alimenta um sonho e que se bate por uma ideia. O francês sabe mostrar-se persuasivo. Foram descobertas cartas que ele escreveu a sua mulher Adrienne, que ficara em França, durante a travessia do Atlântico, quanto o La Victoire avançava a custo debaixo de ventos contrários: «Defensor desta liberdade que idolatro, escreve, eu próprio mais livre do que todos, ao vir como amigo oferecer os meus serviços a esta república (dos Estados-Unidos) tão interessante, não tenho nisto qualquer interesse pessoal. A felicidade da América está intimamente ligada à felicidade de toda a humanidade; ela vai tornar-se o respeitável e seguro asilo da virtude, da honestidade, da tolerância, da igualdade e de uma liberdade tranquila.» Liberdade, felicidade, virtude, tolerância, igualdade… É uma linguagem que Washington entende perfeitamente: o credo do entusiasta Gilbert constitui a lista de todos os valores saídos do Iluminismo e ensinados pelas lojas maçónicas.

É também junto dos seus irmãos maçons que Washington se moldou às ideias novas do seu tempo. A pertença à Fraternidade cimenta a amizade dos dois homens. Mas também são muitas as diferenças nos seus percursos iniciáticos. La Fayette tornou-se maçon sobretudo porque em Paris, nesses meados do século XVIII, frequentar as lojas maçónicas era o último grito da moda. Como dizia Maria Antonieta: «Todos o são». A maioria dos aristocratas, o círculo mais íntimo do rei e, porventura, até mesmo Sua Majestade! Foi sem dúvida com os seus companheiros de pândega do Palais-Royal que La Fayette deu os primeiros passos no «mosaico do Templo[2].» Porque todos estes alegres folgazões – o conde de Ségur e o seu cunhado, o visconde de Noailles – são “irmãos”. La Fayette não foge aos costumes em vigor e, tal como eles, veste o avental.

Tudo era oferecido de bandeja a La Fayette. Já George Washington deixara de estudar aos catorze anos. E é provável que a maçonaria tenha servido para aperfeiçoar a sua educação e saciar a sua sede de conhecimento. À data da sua morte, deixará uma imensa biblioteca. Quando se inicia, em 1752, ainda não se fala de independência no Novo Mundo. Ele próprio continua a ser um súbdito fiel do rei de Inglaterra. Nesta época, a «modernidade» ainda vem da Europa, velha em História mas rejuvenescida pela efervescência filosófica e política que a agita. Como poderia George Washington ter tido conhecimento dela nas profundezas da sua Virgínia, este Estado do sul que prospera com a cultura e o comércio do tabaco, senão pela loja maçónica que frequenta na pequena cidade de Fredericksburg? A maçonaria acaba de ser «importada» para a América pelos colonos. Na Europa nascera alguns anos antes na esteira do movimento de ideias que subverte a ordem e as mentalidades antigas: o Iluminismo. As lojas maçónicas são um dos vectores dessa agitação. E um passadiço entre os dois continentes.



A França, a América e as «redes» maçónicas


Teria George Washington manifestado a mesma amizade para com Gilbert de La Fayette se este não fosse um iniciado? Não se refaz a História. Mas o que é certo é que o marquês – que chega à América acompanhado de outros oficiais franceses, na sua maioria membros da ordem – fez-se valer dos seus títulos de maçon perante o comandante-chefe do exército americano. E durante as suas estadias além-Atlântico – duas durante a guerra da Independência em 1777 e 1780, uma terceira em 1784 e uma digressão triunfal em 1824 – adere a diferentes lojas ao sabor das suas deslocações. Frequenta nomeadamente a Grande Loja da Pensilvânia e a Loja dos Três Amigos do corpo expedicionário de Rochambeau. «Depois de ter aderido à maçonaria americana, dirá anos mais tarde, George Washington parecia ter recebido uma iluminação. Desde esse instante nunca mais tive ocasião de duvidar da sua inteira confiança».

Talvez La Fayette exagerasse. Mas o certo é que a maçonaria desempenhou um papel não despiciendo na edificação da nação americana desde o despoletar da revolução até à redação dos textos que criavam um Estado novo, passando pela organização do exército continental. De facto, os irmãos participam em ações contra os ingleses desde as primeiras horas da insurreição. Durante a guerra, George Washington serve-se das lojas militares para reunir e formar as suas tropas. E quando se tratou de gravar no mármore os princípios da República americana, em que é que os seus fundadores se inspiraram? Nos filósofos do Iluminismo, que tinham lugar de honra entre os maçons.

Ao mesmo tempo, em França, há irmãos que se apaixonam pelos acontecimentos do Novo Mundo e que mais tarde terão um papel activo na Revolução Francesa. Mas entretanto vêem na insurreição americana a realização concreta das suas utopias. É verdade que nem todos partem para combater como La Fayette. Para ajudar os Estados Unidos organizam peditórios ou recolhas de fundos. Em 1782, por exemplo, a loja La Candeur, frequentada pelo marquês de La Fayette, lança um apelo a todos os irmãos franceses. O seu objectivo? Recolher fundos para oferecerem um navio de guerra aos americanos!

A maçonaria facilita a aproximação entre os rebeldes e a elite europeia, que à data enche as lojas. Para além de La Fayette, outros irmãos franceses ou europeus juntam-se aos insurrectos. E quando, em 1776, o maçon Benjamin Franklin, embaixador da jovem nação americana em França, vem a Paris defender a causa dos Estados Unidos, é recebido com grande pompa não só nas lojas maçónicas como também nos salões e na corte. Cenas espantosas: a fina flor do Antigo Regime pasma perante o porta-voz de revolucionários que combatem contra o rei de Inglaterra e se preparam para fundar uma república! É verdade que a América está na moda: uma parte dos aristocratas, os liberais, é favorável às reformas; a outros não desagrada a visão do «arrogante» Império Britânico ser contestado na América… Mas as relações maçónicas de Benjamin Franklin têm a sua importância no acolhimento que lhe é dispensado. Graças a elas, ele pôde, bem antes da independência, estabelecer laços com aristocratas, escritores e cientistas franceses que eram membros da ordem ou tinham ligações estreitas com ela.

Compreende-se assim melhor a «confiança» que Washington depositava em La Fayette. O facto de pertencer à ordem não determinou todas as suas decisões – não obstante o que dizem os obcecados pela «conspiração maçónica» ou pelo seu inverso, os maçons prosélitos, para quem a marcha do mundo só se explica pela influência benéfica dos irmãos. Mas teve um peso considerável na extraordinária amizade entre os dois homens. Une-os um laço quase filial. Gilbert é órfão desde os treze anos, Washington perdeu o pai quando tinha onze anos. E, sobretudo, ele e Marta, a sua mulher, não geraram descendência; têm apenas as filhas de um primeiro casamento dela, que George adoptou. Mas ele sente a falta de um filho, pelo menos espiritual. Sê-lo-á Gilbert, aquele jovem impetuoso que procura um mentor e, ao mesmo tempo, uma figura paterna.

A sua relação resistirá aos anos e à distância. «Vinde com Madame La Fayette visitar-me a minha casa», escreve por exemplo Washington a La Fayette em 1784. «Disse-vos muitas vezes, e repito-o, que ninguém vos receberá com mais afeição do que eu». Alguns meses mais tarde, o marquês aceita o convite e embarca pela terceira vez para a América. Reencontro e nostalgia. Washington tem apenas cinquenta e dois anos mas pressente sem dúvida a importância deste encontro. «Ao ver-vos partir», diz ao seu amigo francês que se despede no fim da sua estadia, «parece que se afasta de mim a imagem dessa França generosa que tanto nos amou, e que eu amei através de vós.» Na altura em que, em Nova Iorque, se preparava para embarcar, La Fayette envia-lhe uma carta igualmente cheia de premonição: «Adeus, adeus, caro general. É com um pesar inexprimível que sinto que vou ficar separado de vós pelo Atlântico. Tudo o que a admiração, o respeito, a gratidão, a amizade e o amor filial podem inspirar reúne-se no meu coração para o dedicar com ternura a vós. Encontro na vossa amizade uma felicidade que estas palavras não conseguem exprimir. Adeus, meu caro general… Zelai pela vossa saúde. Enviai-me notícias todos os meses. Adeus! Adeus!» Em breve arrastado pelo turbilhão da Revolução Francesa, La Fayette nunca mais tornará a ver o seu general «adorado», o «ser mais caro [que teve] no mundo». Washington morre com sessenta e sete anos em 1799, de complicações na sequência de um resfriamento.



O «semi-deus»

Hoje em dia George Washington é sem dúvida o americano mais venerado no seu país, o mais celebrado de todos aqueles a que chamam os Pais Fundadores (a centena de homens que redigiram e assinaram a Declaração de Independência em 1776 e, em seguida, a Constituição americana em 1878). Porventura mais discreto do que os cinco outros Founding Fathers que, como ele, passaram à posteridade: Benjamin Franklin, o génio multifacetado, John Adams, o advogado, Thomas Jefferson, o intelectual que segurava a pena aquando da assinatura da Declaração de Independência, James Madison, um dos autores da Constituição, e Alexander Hamilton, o jurista e financeiro. Mas era bem mais consensual.

Ainda em vida, os seus admiradores consideram-no já um semi-deus. Com o fim da Guerra da Independência (1783) é-lhe dado a o título de «Pai da Nação». Cedo compreende que os Estados Unidos, criação voluntária, têm necessidade, bem mais do que as «nações antigas», de imaginarem a figura do «genitor». E o seu papel à cabeça do exército faz dele o único símbolo nacional de um país onde, após a vitória sobre os ingleses, tudo está por construir. Entre a proclamação da independência (1776) e a adopção de uma constituição (1787), irão decorrer cerca de dez anos, dez anos de debates entre «federalistas» e «republicanos», entre adeptos de um governo minimalista e centralizadores, entre estados do sul e estados do norte…

Neste período, a glória de Washington é tão grande e os Estados Unidos ainda tão frágeis, que o general teria podido facilmente tornar-se um tirano… E, no entanto, a 4 de Dezembro de 1783, decorridos apenas três meses sobre a assinatura do Tratado de Versalhes, pelo qual a Grã-Bretanha reconhece finalmente a independência da nação americana, ele dá uma espantosa lição de democracia. Despede-se dos seus soldados e anuncia que vai regressar às suas propriedades. «A hora da minha demissão está marcada para o meio-dia», explica calmamente perante o Congresso, «após a qual me tornarei um cidadão privado nas margens do Potomac». A notícia deixa boquiabertos os monarcas de todo o mundo. E esta renúncia ao poder esculpe um pouco mais a sua lenda.

Em Fevereiro de 1784 Washington, o «reformado» provisório, conta ao seu amigo La Fayette como «à sombra da [sua] vinha e das [suas] figueiras» se sente «livre do tumulto dos acampamentos militares e das agitações da vida pública», tão diferente do «soldado sempre em busca de fama», do «homem de estado que consagrava os seus dias e as suas noites a planos que fariam a grandeza da nação ou a ruína dos outros», ou do «cortesão a vigiar permanentemente a postura do seu príncipe na esperança de um sorriso gracioso». «Satisfaço-me com prazeres simples», escreve. «Não apenas me retirei dos empregos públicos como me devolvi a mim mesmo. (…) Não invejando ninguém, decidi estar satisfeito com todos e é nesta disposição de espírito, meu caro amigo, que descerei docemente o rio desta vida até repousar junto dos meus pais». Sábio Washington.

Só será presidente em 1789, mas um presidente livremente escolhido e no quadro de uma constituição. Primeiro chefe de estado da História americana, tem um lugar à parte na mitologia do seu país. Um historiador tentou recentemente imaginar o que teria ele feito no Iraque se estivesse no lugar de George Bush! «Nenhum país tem uma idolatria tão grande pelos seus fundadores. Nenhum país pede a personagens mortos há 200 anos que o esclareçam sobre assuntos contemporâneos[3].»… Nos Estados Unidos uma questão recorrente aflora permanentemente a imprensa, os ensaios, os debates políticos ou jurídicos: «What would the Founders do?» (Que fariam os Pais Fundadores?) Os americanos sentem-se fascinados pela história das suas origens. Muito antes de Dan Brown e do seu «símbolo perdido», centenas de biografias que narram a vida dos Pais Fundadores tornaram-se best-sellers. Outras obras pseudo-históricas, senão mesmo claramente fantasistas, obtiveram o mesmo sucesso. Em 2004, por exemplo, o filme de John Turteltaub, National Treasure[4], conta que os Fundadores inscreveram na Declaração da Independência indícios que conduziam ao tesouro dos Templários! O segundo filme da saga (O Tesouro: Livro dos Segredos, 2008) começa com uma cena filmada no George Washington Masonic National Memorial, imenso monumento construído pelas lojas maçónicas americanas para glória do seu grande homem.

 

O enfant terrible

A posteridade do irmão La Fayette está muito mais recheada de contrastes do que a do irmão Washington. É verdade que esteve sempre à frente do seu tempo, permanentemente ávido de acção e de mudança, mas também muitas vezes um deplorável político e conspirador. Apesar de tudo, para muitos maçons, o fogoso marquês encarna na perfeição o ideal de uma Fraternidade «empenhada». «De certa forma, ele é a primeira personalidade a fazer da maçonaria um vector político, senão mesmo partidário, a favor das ideias de progresso do Homem e da Sociedade[5].». No decurso da sua existência romanesca atravessou dez regimes e três revoluções (a americana e as duas francesas de 1789 e de 1830).

Após ter combatido com Washington e chegado a França coberto de honrarias, La Fayette poderia ter retomado a sua posição na corte. Mas a grande aventura americana deixara nele marcas muito profundas. Regressou ao seu país com uma certeza: se, do outro lado do Atlântico, pudera nascer um mundo novo, na velha Europa os dias do Antigo Regime estavam contados. La Fayette, o «americano», trataria de acelerar a sua queda. Chega inclusivamente a elogiar a república dos Estados Unidos, «que jamais terá nobreza nem rei», a Frederico II. O rei da Prússia é de facto um «déspota esclarecido» e um notório maçon mas repreende o impertinente: «Conheci um jovem que, após ter visitado países onde reinavam a liberdade e a igualdade, resolveu instaurá-las no seu país. Sabeis o que lhe aconteceu? – Não, Sire – Pois bem, Monsieur, foi enforcado!»

O aviso de pouco lhe serve. O muito rico marquês põe o seu prestígio ao serviço das ideias mais iconoclastas do seu tempo. Em 1788, adere com a sua mulher à Sociedade dos Amigos dos Negros fundada por Brissot, também ele maçon. Alguns anos antes escrevera esta carta espantosa a Washington: «Permiti que vos apresente um plano que poderia tornar-se muito útil à porção negra do género humano. Unamo-nos para adquirir uma pequena propriedade onde possamos tentar emancipar os negros e empregá-los apenas como trabalhadores rurais. E se tivéssemos êxito na América, dedicaria com alegria o meu tempo a concretizar esta ideia nas Antilhas. Se for um projecto bizarro, prefiro ser louco desta maneira a ser considerado sensato por uma conduta oposta.» Ele próprio «proprietário» de escravos na sua propriedade (que no entanto libertará após a sua morte), Washington não dá seguimento ao assunto. A Revolução americana não chega ao ponto de emancipar «negros»! Que importa, La Fayette funda sozinho a sua herdade ideal. Em 1786 adquire duas propriedades na Guiana. Aí, os negros beneficiam das mesmas condições de trabalho que os brancos. As punições corporais são abolidas…

Cerca de dez anos antes, durante a guerra da Independência, o marquês contactara também os índios Huron e Iroquois, que os ingleses haviam incitado a erguerem-se contra os americanos. Imbuído das ideias de Montaigne sobre o «bom selvagem» e das teorias de Rousseau, ele conseguira fazer um tratado com os pele-vermelhas e persuadira-os a formarem uma aliança com os insurrectos. Os índios deram-lhe o nome de Kayewla («Cavaleiro temível»). Anos mais tarde, chegarão mesmo a «oferecer-lhe» um rapaz de treze anos, que o marquês levará consigo para França!

Regressado da América, La Fayette milita igualmente pela emancipação dos judeus – que apenas acederão à cidadania depois de 1789 – e pela dos protestantes «submetidos em França a um intolerável despotismo», escreve ao seu mentor Washington. Tal como Malesherbes, faz campanha junto de Luís XIV para que devolva os direitos aos reformistas franceses. Em 1787, o rei cede e promulga o édito da tolerância. O velho mundo começa a vacilar.

Em 1789, treze anos após a insurreição americana, a França claudica e o marquês exulta. Participa na segunda grande convulsão do século XVIII, insuflando em Paris um sopro vindo dos Estados Unidos com o seu projecto de «Declaração dos direitos naturais do homem que vive em sociedade», inspirado na Declaração da Independência, ou a sua ideia do distintivo tricolor. Azul, branco, vermelho… são também as três cores do estandarte americano. O marquês, que chefia a Guarda Nacional, a 15 de Julho de 1789 pede aos seus homens que façam dele o seu emblema. Goza então de uma enorme popularidade. Apelidam-nos de «o americano». «No Novo Mundo ele contribuiu para a formação de uma sociedade nova, no mundo antigo para a destruição de uma sociedade velha», dirá mais tarde Chateaubriand[6].

Mas por pouco que não perdia a vida nesta empreitada. Partidário de uma monarquia constitucional e finalmente ameaçado de prisão, foge com as suas tropas para a Áustria em 1792, quando a França se encontra em plena guerra. «Traição», gritam os republicanos. «Para a prisão», exclamam os austríacos, que o consideram apesar de tudo um perigoso revolucionário e o encarceram durante cinco anos. Nos anos seguintes, nem mesmo Napoleão consegue que o tempestuoso marquês entre nos eixos: «Todo o mundo em França se emendou, exclama enervado o imperador, só um não o fez: La Fayette. Não cedeu nem uma linha. Parece-vos tranquilo. Pois deixai que vos diga, ele está pronto a começar tudo de novo!» Napoleão tem razão. Durante a Restauração, La Fayette conspira na Carbonária, um grupo de conjurados liberais ligados à maçonaria que enxameiam toda a Europa nesse início do século XIX. «Ele era o instrumento e o ornamento de todas as sociedades secretas, de todas as conspirações, de todos os projectos de destituição, mesmo aqueles cujos resultados, caso tivessem tido sucesso, ele iria combater e não reconhecer», dirá com crueza Guizot, ministro de Louis-Philippe. Em 1830, quando eclode a revolução das Três Gloriosas, La Fayette retoma – com setenta e três anos! – o comando da Guarda Nacional. Os seus apoiantes querem colocá-lo na chefia de uma nova república. Mas o «herói dos dois mundos» convence os parisienses a colocarem no trono Luís-Filipe, um nobre liberal como ele e no qual ele crê ver o monarca constitucional com que sonha desde sempre – um outro «erro», segundo os republicanos.

Os seus detratores criticam a sua falta de sentido político, a sua ingenuidade, as suas mudanças de opinião. Os seus admiradores, pelo contrário, destacam a sua constância: La Fayette, inclassificável e inquebrantável, acabou por se opor a todos os poderes. «Posso ter-me enganado, mas não enganei ninguém» insiste como que em eco. Morre em 1834 com setenta e sete anos. É perante o seu túmulo que o representante do general Pershing, comandante do corpo expedicionário que veio em socorro de França em 1917, exclamará em memória de uma «dívida» com mais de um século: «A França correu para nós quando a América combatia para garantir a sua independência. Não o esquecemos: La Fayette, we are here!» (“La Fayette, estamos aqui!”). Da história não reza se o soldado americano ficou admirado com a modéstia da sepultura. La Fayette foi sepultado no pequeno cemitério de Picpus em Paris, próximo do que era na época a fossa comum dos guilhotinados do período do Terror, entre os quais membros da sua família e vários amigos seus. A terra que cobre o seu caixão vem da Virgínia. La Fayette trouxera-a numa caixa quando da sua quarta e última viagem aos Estados Unidos em 1824 e pedira que a vertessem sobre o que seria a sua última morada. Desde então uma bandeira americana nunca deixou de flutuar sobre o seu túmulo.

Hoje em dia é mais venerado além-Atlântico do que em França. O seu nome foi dado a quarenta cidades, sete condados e até mesmo uma montanha e foi feito cidadão de honra dos Estados Unidos em 2002, um privilégio concedido apenas cinco vezes. Em França, ainda recentemente estalou a polémica entre aqueles que exigiam a transferência das suas ossadas para o Panteão e os que lhe recusavam o título de «grande homem».

Polémicas à parte, para a maioria dos maçons e à semelhança de Washington, La Fayette representa uma parte gloriosa de uma história, demasiadas vezes ignorada ou encoberta, consoante as correntes, a da ordem no Iluminismo. Actualmente há lojas maçónicas com o seu nome em todo o mundo.

Por que terão estes dois homens sentido a necessidade de se iniciarem? Que terão eles encontrado por detrás da porta dos templos? Para o compreender, teremos que recuar às origens da Fraternidade que nascera cerca de um século antes do outro lado do Canal da Mancha.

 

 

 

[1] Gonzague Saint-Bris, La Fayette, Editions Télémaque, 2006

[2] Pavimento preto e branco que cobre o chão dos templos maçónicos.

[3] Corine Lesnes, Aux sources de l’Amérique : Les enfants de Washington face à leur histoire, Buchet/Castel, 2008.

[4] Estreado em Portugal com o título O Tesouro.

[5] Alain de Keghel, La Fayette, franc-maçon, A.M.H.G.

[6] François René de Chateaubriand, Mémoires d’outre-tombe


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