Adão e Eva depois da Pílula (1.º capítulo)

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 1. O pano de fundo intelectual


A vontade de não acreditar

Imagine o leitor por momentos que grande parte do mundo vive influenciada por um conjunto de ideias de nefastas consequências económicas, políticas e sociais. Imagine mesmo que um dos problemas do mundo é o impacto negativo destas ideias sobre as pessoas que a elas estão sujeitas, razão pela qual um certo número de intelectuais trabalhou longa e arduamente para reunir um conjunto de dados empíricos relativos à influência destas ideias, tendo chegado a demonstrar as múltiplas vias pelas quais elas prejudicam os seres humanos.

Dê agora mais um passo. Imagine que, a despeito dos dados empíricos sobre os custos humanos destas ideias perniciosas, muitas pessoas, incluindo grandes intelectuais e estudiosos, ignoram tão problemáticos factos: alguns deles negam, pura e simplesmente, os dados; outros tentam atribuí-los a causas diferentes das referidas ideias; e outros ainda – talvez os mais perversos – argumentam que, pelo contrário, as consequências destas ideias são boas, ou seja, que podem parecer más a certos espíritos especialmente obtusos, mas que fazem todo o sentido quando a consciência de cada um é devidamente orientada.

Se lhe parece inconcebível que pessoas instruídas e geralmente racionais, na posse de dados empíricos inegáveis, prefiram ignorá-los a mudar de opinião, tenha a certeza de que não é. Pelo contrário, este quadro de negação intelectual descreve na perfeição aquilo que se passou durante várias décadas entre as gentes instruídas do Ocidente desenvolvido, relativamente a uma questão de não pouca importância, que ficou resolvida por volta da altura em que nasceram muitos dos actuais alunos das nossas universidades.

A questão era, evidentemente, a Guerra Fria. Por muito inconcebível que pareça numa análise retrospectiva, até para aqueles que assistiram em primeira mão a pelo menos uma parte destes anos, os factos morais da Guerra Fria foram postos em questão ao mais alto nível intelectual, em especial nas universidades americanas, até cerca de dois segundos antes da queda do Muro de Berlim. Isso mesmo, pode parecer inconcebível, mas – e a despeito do facto de muitos habitantes deste planeta saberem exactamente o que era o comunismo, em especial aqueles que tinham tido o azar de o experimentar na pele – não houve no Ocidente, nas décadas que antecederam 1989, unanimidade quanto à natureza maléfica da aplicação prática das ideias e dos governos comunistas.

Mais ainda, a opinião das elites intelectuais sobre este assunto estava, na sua maioria, alinhada do outro lado; principalmente nas universidades, e em especial nas universidades de elite, os departamentos de ciência política eram dominados pelas correntes daquilo a que então se chamava o anti-anticomunismo, ou seja, a ideia de que ser anticomunista era pior do que ser pró-comunista.

Por muito espantoso que hoje pareça, o facto é que, ao longo dos anos em que o Ocidente lutou contra o comunismo, havia bastantes professores e intelectuais que eram marxistas declarados. Outros tinham uma posição mais matizada, considerando que, se os comunistas estavam a fazer mal, os capitalistas e os governos do Ocidente estavam a fazer tão mal ou pior do que eles, uma linha argumentativa a que os críticos anticomunistas chamavam «equivalência moral». O aspecto mais interessante deste raciocínio é, naturalmente, o termo «equivalência», que pressupõe, pelo menos, que os comunistas eram tão maus como nós. A verdade, porém, é que havia muitos outros críticos do capitalismo ocidental que não achavam que os dois sistemas fossem moralmente equivalentes – achavam que o comunismo era obviamente superior ao capitalismo.

Havia ainda outros intelectuais que se opunham a um anticomunismo alegadamente simplista por outras razões; argumentavam eles que a Guerra Fria era um «falso constructo», porque as diferenças entre comunismo e capitalismo eram bastante mais superficiais do que pareciam. Um subconjunto deste raciocínio era a chamada «teoria da convergência», segundo a qual, e a despeito de todas as aparências em contrário, os Estados Unidos e a União Soviética estavam cada vez mais parecidos, pelo menos no modo como se comportavam.

A certa altura, eu inscrevi-me numa cadeira que era dada por um sofisticado e extremamente convicto membro desta corrente de pensamento; foi em 1979, o ano em que, só para dar um exemplo, a União Soviética enviou para o Afeganistão, na altura do Natal, uma força de quarenta mil homens, que travaram uma guerra contra os civis desse país que ainda hoje se distingue pela ferocidade gratuita que a caracterizou. Contudo, nem este género de acontecimentos conseguia abalar as ideias destes sofisticados pensadores, que tinham decidido ignorar os dados objectivos e obedeciam ao imperativo não escrito de provar que os Estados Unidos eram a encarnação do mal. Quem perguntasse à grande maioria dos intelectuais e professores da época se a Guerra Fria era moralmente inequívoca, e se o comunismo estava ou não a criar uma sequência de miséria sem precedentes, teria recebido uma combinação das reacções atrás enunciadas: negação, negação furiosa e negação indignada.

Vista retrospectivamente, esta formidável perversidade – este acto de abdicação intelectual que não tem explicação – não foi apenas um surto de degradação intelectual, foi uma das características definitórias da Guerra Fria. Esta negação propagou-se a toda a intelligentsia do Ocidente, desde Seul até Boston, desde Oslo até Buenos Aires, passando por todos os pontos intermédios onde houvesse gente capaz de ignorar os dados empíricos e inventar motivos aparentemente sofisticados para o fazer. Jeane Kirkpatrick, anticomunista de fundo, chamou a esta resistência profunda e sistemática aos factos «a vontade de não acreditar», num ensaio a que deu o mesmo título; trata-se de uma frase bem expressiva, que merece ser ressuscitada no contexto deste livro, por razões que serão explicadas adiante.

Demorei-me nesta analogia com a Guerra Fria, porque ela permite esclarecer um problema do nosso tempo que parece inexplicável a muita gente: a intensa vontade de não acreditar nos efeitos prejudiciais de outra força social e moral que mudou o mundo. Refiro-me à revolução sexual, ou seja, à desestigmatização e desmitificação das relações sexuais extramatrimoniais e à redução das relações sexuais em geral a uma espécie de divertimento higiénico, em que vale tudo desde que os envolvidos sejam adultos e não tenham sido obrigados a nada. Este é o mundo com que os filósofos liberacionistas sonham há séculos a esta parte, e o mundo em que efectivamente vivemos hoje em dia, como grande parte dos adultos reconhecerá sem a menor dificuldade. Este é um dos poucos aspectos da herança da revolução sexual que ninguém põe em causa.

Menos consensual, porém, é a natureza das repercussões da dita revolução, e esta ausência de consenso é interessante, porque os dados empíricos contrariam actualmente, e de forma esmagadora, o liberacionismo – da mesma maneira, aliás, que os factos da aplicação prática do comunismo contrariavam os comunistas, apesar de muitos intelectuais do Ocidente continuarem a negá-lo.

Não pretendo com isto dizer que a revolução sexual deu origem a coisas como o Arquipélago de Gulag ou as outras heranças dramáticas do comunismo (a que os apologistas do marxismo e dos regimes marxistas chamavam «excessos»). Não pretendo dizer que a revolução sexual está na raiz de todos os males, como nenhum desenvolvimento histórico singular, por mais relevante que tenha sido, está na origem de todos os males. Mas pretendo dizer, isso sim, que as semelhanças entre as actuais negações intelectuais dos custos da revolução sexual e as negações intelectuais do passado dos custos do comunismo são notórias – e, para aqueles que não negam o que se passou, as semelhanças entre estas duas fases da nossa história intelectual são perturbadoras.

Basta pensar em algumas parecenças entre estes dois eventos de peso da moderna história do pensamento. Assim, em ambos os casos, estamos perante um corpo irrefutável de dados que dá a conhecer as lamentáveis consequências económicas, sociais e morais dos factos; e contudo, em ambos os casos, a minoria dos investigadores que reuniram os referidos dados empíricos e chamaram a atenção para os mesmos foram quase sempre recompensados com um espectro de reacções que vão desde a indiferença até à ira, passando pela ridicularização.

Os dados empíricos a que hoje temos acesso demonstram ubiquamente as vantagens do casamento e da monogamia, a começar pelos próprios membros do casal. Numerosos investigadores em ciências sociais demonstraram, por exemplo, que os membros de casais monogâmicos ocupam as melhores posições em todos os indicadores de bem-estar[1]. Há uma enorme série de dados que confirmam a tese de que as famílias que têm na sua base um homem e uma mulher casados – incluindo as famílias menos favorecidas – vivem melhor do que as famílias que têm na sua base um homem e uma mulher em regime de co-habitação.[2]

Passemos depois à pequena biblioteca actualmente em constituição sobre o tema dos «estudos de felicidade». As mulheres cujos maridos sustentam a família são tendencialmente mais felizes que as outras[3]; os homens casados ganham mais e trabalham mais do que os solteiros[4]; conversamente, há uma relação próxima entre a promiscuidade nos adolescentes e jovens, por um lado, e o fracasso escolar e outros problemas, como o uso de álcool e de drogas, por outro[5]; finalmente, tem sido demonstrado por numerosos autores que a generalização do divórcio e da monoparentalidade – outros dois frutos da revolução sexual –, para além de ser prejudicial para muitos indivíduos, sai cara à sociedade no seu todo.[6]

Sara McLanahan é outra investigadora que tem contribuído meticulosamente para o armazém de dados acerca dos efeitos negativos da revolução sexual, desde os tempos em que era uma voz isolada num deserto de liberacionistas. Growing Up with a Single Parent, a obra seminal que publicou em 1994 de parceria com Gary Sandefur, começa com uma das mais sucintas e directas acusações à revolução sexual jamais aparecidas em letra de imprensa: «Andamos a estudar este assunto há dez anos e, em nossa opinião, os dados são bastante claros: as crianças que são educadas apenas por um dos pais biológicos estão, em geral, em piores condições do que aquelas que são educadas numa família onde ambos os pais biológicos estão presentes, independentemente da raça e do nível de instrução dos pais, independentemente do facto de os pais serem casados quando as crianças nascem, e independentemente de o pai ou a mãe voltarem a casar-se.»[7]

Desde então, estas e outras formulações parecidas têm sido objecto de batalhas renhidas entre os sociólogos, com a maioria a tomar partido, por vezes de forma feroz, contra McLanahan e os que pensam como ela. Não é que estes intelectuais não conheçam os dados; o que acontece é que se sentem obrigados a procurar outras explicações para os mesmos, tal é o profundo desejo de não acreditar que conforma – e deforma – grande parte do que hoje lemos sobre a sexualidade.

Mas também podemos pegar em dados mais recentes das consequências da revolução. Como por exemplo Between Two Worlds: The Inner Lives of Children of Divorce, uma obra muito interessante publicada em 2005, da autoria de Elizabeth Marquardt.[8] Com base num questionário de 125 perguntas feito a dois grupos – um deles constituído por filhos de pais divorciados, outro por filhos de pais casados – com a colaboração de Norval Glenn, os resultados obtidos por Marquardt mostram claramente os elevados riscos de disfunção e perturbação que acompanham muitas destas crianças até ao estado adulto.

Que diferenças encontram Marquardt e Glenn entre as duas amostras? Começando por alguns aspectos muito práticos – digamos, se a família funciona como centro de gravidade: por exemplo, 32% dos filhos de pais divorciados, mas apenas 8% dos filhos de pais casados, afirmaram que a família não tinha o costume de fazer uma refeição por dia em conjunto; quase dois terços dos filhos de pais divorciados, mas apenas 25% dos filhos de pais casados, afirmaram que «na minha família havia tensão»; apenas um terço dos filhos de pais divorciados, em comparação com 63% dos filhos de pais casados, afirmam sem hesitar que «na minha família, os filhos eram o centro». E há muitos mais exemplos que confirmam este dado nada surpreendente: as famílias destruídas têm menos tempo e menos espaço para os filhos do que as famílias que permaneceram intactas.

Seguem-se outras diferenças, mais nebulosas, mas nem por isso menos notórias. Judith Wallerstein referiu com perspicácia que, de uma maneira geral, as pessoas que estudou sofriam «do medo permanente de uma tragédia à espreita ao virar da esquina, que sobre eles se abateria sem aviso prévio». Esta apreensão é confirmada pelas pessoas estudadas em Between Two Worlds; com efeito, são muitos os sujeitos estudados por Marquardt que – à semelhança da própria autora – referem sofrer de um estado generalizado de apreensão e receio do mundo, que se prolongou até bem entrada a idade adulta. Diz um deles, uma declaração cujo conteúdo se repete em muitas outras: «Tinha sempre a sensação de estar à espera de que alguma coisa corresse mal. Não pensava propriamente que ia morrer ou coisa parecida. Mas tinha sempre a sensação de que havia qualquer coisa à minha espera ao virar da esquina.»

A obra de Marquardt é uma de muitas que nos conduz ao âmago moral da revolução sexual: as múltiplas provas de que quem mais sofreu com ela foram as mulheres e as crianças. Mas nem as pessoas que se orgulham de exibir uma compaixão politicamente correcta, e que criticam aos conservadores e aos crentes a sua alegada «insensibilidade», conseguem identificar a manifesta contradição entre as suas expressões públicas de compaixão noutras matérias e a sua adesão à ética liberacionista.

E a decidida recusa em reconhecer que os ombros que mais intensamente carregaram com o peso da revolução foram os dos mais jovens e mais vulneráveis – a começar pelos fetos e continuando nas crianças e nos adolescentes – é talvez o exemplo mais notório do ambiente de negação que rodeia as consequências da revolução sexual. Não há outro domínio da vida humana em que as pessoas comuns se mostrem tão indiferentes ao sofrimento específico dos mais pequenos e dos mais fracos. Nas universidades, em particular, ecoam por todo o lado os cantos indignados dos que protestam contra o genocídio no Darfur, a crueldade gratuita exercida sobre os animais, e a violação grosseira dos direitos humanos por parte de governos opressores como o governo da China – tudo problemas reais pelos quais estudantes reais vertem lágrimas reais. Mas esta compaixão selectiva é uma das características mais curiosas do nosso tempo: pessoas que, em qualquer outro contexto, se orgulham de saltar imediatamente em defesa dos oprimidos esquecem imediatamente quem são esses oprimidos quando o tema em questão é a revolução sexual.

Contudo, e apesar de muitas pessoas não se terem honestamente apercebido de tudo isto no começo, a revolução sexual – e nomeadamente a corrente desta revolução que desfila sob o estandarte de que a família é o que cada um quiser que ela seja – prejudicou, específica e especialmente, a vida de muitíssimas crianças. Com efeito, por esta altura são várias as gerações de estudos em ciências sociais que mostram que as crianças que crescem sem o pai em casa têm muito mais problemas emocionais, financeiros, educativos e outros do que os seus pares[9]; que correm mais riscos de ter problemas mentais e comportamentais de vária ordem[10]; que têm mais hipóteses de ir parar à prisão. David Blankenhorn, outro autor pioneiro neste domínio, escreveu um livro – cujo título, Fatherless America [Uma América órfã de pai] não podia ser mais adequado – a explicar os previsíveis efeitos nefastos de se crescer sem o pai em casa; por exemplo, os filhos de mães divorciadas ou solteiras têm muito mais probabilidade de ser alvo de violência doméstica do que as crianças que vivem com os seus pais biológicos.[11]

Este género de dados empíricos abunda, para quem precisar de os consultar; para quem não precisar, bastará o simples testemunho daqueles que passaram por estas situações. E, em paralelo com os dados das ciências sociais, abunda também outro género de elementos. Por exemplo, o rock e o rap contemporâneos vivem, em grande medida, das consequências da revolução sexual; com efeito, entre os temas predominantes nestas músicas (para além do sexo propriamente dito), contam-se os abandonos do lar, as famílias desfeitas, a violência dos namorados das mães, os predadores sexuais, e os restantes efeitos da revolução.[12]

E assim como ignoram que os membros mais jovens e mais fracos da sociedade foram desproporcionadamente prejudicados por um Zeitgeist que privilegia os mais velhos e mais fortes, muitos iluminados e apaixonados ignoram igualmente um segundo facto, relacionado com o primeiro: que a revolução sexual foi uma tragédia para a maior parte das mulheres. E contudo, quais reféns apanhadas na síndrome de Estocolmo, as feministas – mais do que qualquer outro grupo de interesse, talvez à excepção dos pornógrafos – insistem na defesa da revolução sexual. Quantos universitários de tendência feminista que participam em manifestações em defesa do direito ao aborto têm consciência de que, em muitas zonas do mundo, incluindo os Estados Unidos, as raparigas têm mais probabilidades de ser abortadas do que os rapazes?

Da mesma maneira, as universidades americanas decidiram ultimamente ensinar às mulheres métodos de defesa contra eventuais violadores; a Universidade de Princeton tem um programa deste género, que inclui um fantástico vídeo online em que as mulheres aprendem a gritar, a agachar-se e a dar pontapés em pontos estrategicamente óbvios do corpo do agressor. E ninguém põe em causa a necessidade de as mulheres se defenderem; mas, quando se apercebe da omnipresença deste género de cursos nas universidades de todo o país, uma pessoa dá por si a reflectir que talvez eles fossem menos necessários se as universidades fossem menos libertinas e se fosse mais fácil distinguir um rapaz a cair de bêbedo de um violador efectivo.

Apesar de tal afirmação ser objecto de escândalo nestes tempos metrossexuais, a verdade é que as mulheres continuam a ser muito mais vulneráveis do que os homens à violência física. As mulheres divorciadas ou solteiras têm muito mais hipóteses – o dobro das hipóteses, de acordo com um estudo – de ser alvo de violência do que as mulheres casadas[13]. Mas, pelo facto de se chamar a atenção para os malefícios da revolução sexual sobre as mulheres, não se está a querer dizer que os homens não tenham sofrido com ela; acontece que, para muitos homens, a revolução sexual parece funcionar mais como um vírus de acção lenta, cujos resultados negativos só se tornam manifestos já muito avançados os anos. Como salientaram Maggie Gallagher e Linda Waite, entre outros investigadores, os homens divorciados têm taxas muito mais elevadas de depressão, alcoolismo e outro tipo de «comportamentos de risco», entre os quais se contam disparates tão básicos como não ir ao médico.[14]

Mas as mulheres sofrem os efeitos negativos da revolução sexual de forma mais imediata a premente: são as mulheres que abortam e que ficam deprimidas por causa disso, as mulheres que geralmente são obrigadas a educar os filhos sozinhas porque os homens se vão embora com outras, as mulheres que geralmente são mais afectadas do ponto de vista financeiro com o divórcio, e as mulheres que enchem as páginas das revistas e dos websites de encontros com conversas sexuais de duplo sentido. Basta aceder a qualquer destas fontes, a qualquer programa televisivo ou radiofónico de conversa para mulheres, a uma série de televisão como Sexo na cidade, para se perceber em todos eles a típica e profundamente contraditória combinação de frases, em metade das quais se afirma que é maravilhoso viver numa época em que as mulheres alcançaram a sua emancipação e podem divertir-se sexualmente como lhes apetecer, enquanto na outra metade se lamenta a misteriosa impossibilidade de compatibilizar esta situação com a existência de um namorado estável, empenhado e boa pessoa.

É como se, por exemplo, a PETA[15] lançasse uma revista em que metade das páginas eram dedicadas à defesa do vegetarianismo, enquanto a outra metade continha apetitosas fotografias de carne de porco, vaca e galinha, mergulhada em sumptuosos molhos. Se isso acontecesse, toda a gente se aperceberia da contradição inerente a tal comportamento. Contudo, devido à vontade de não acreditar, quando se trata das consequências da revolução sexual, as pessoas recusam-se a aperceber-se.

Se a vontade de não acreditar foi intensa no Ocidente durante os anos da Guerra Fria, a despeito dos muitos factos conhecidos acerca da realidade do comunismo, imagine-se quão mais intensa é a vontade de não acreditar nos factos relativos à revolução sexual; como dizia Malcolm Muggeridge, «as pessoas não acreditam em mentiras porque são obrigadas, mas porque querem». E aquilo em que as pessoas mais querem acreditar é que podem ter relações sexuais onde, como e com quem quiserem, sem sofrerem qualquer penalização por isso. É essa a realidade contra a qual os factos empíricos se erguem: a natureza humana, e nada menos que a natureza humana.

Assim sendo, como pode a minoria intelectual que se encontra na posse dos factos, e que não os nega, furar esta profunda resistência? Uma das formas é fazer aquilo que a minoria dos pensadores renegados fazia durante a Guerra Fria: nunca desistir de apresentar, com grande paciência, os dados do mundo real, por muito que os opositores se mostrem decididos a ignorá-los e a desdenhar de quem assim se comporta, sem nunca descer ao nível dos intelectuais e bloggers liberacionistas que gostam insultar os cristãos. Estamos proibidos de tratar os nossos adversários como eles nos tratam a nós – como se precisássemos de uma tenaz muito comprida para os manter à distância. Em particular, estamos proibidos de os tratar como os meios de comunicação tendem a tratar os cristãos, em especial os evangélicos, a saber, com o frisson antropológico de exploradores que se encontram pela primeira vez na presença dos índios ionomami do Brasil (que, como se sabe, ainda vivem na Idade da Pedra). Não podemos jogar com o mesmo baralho que os nossos adversários.

Então? Em primeiro lugar, temos de compreender uma coisa que pode parecer contra-intuitiva: não é verdade que nós, os modernos, vivamos numa época de niilismo. Há muito quem diga que sim, e é frequente as pessoas que se sentem desesperadas com a revolução sexual e os seus efeitos serem desta opinião. Acontece que, contrariamente ao que julgam estes pessimistas, não estamos predestinados pelo pós-modernismo a mergulhar num pântano niilista, da mesma maneira que os intelectuais do passado não estavam predestinados por Marx a viver num futuro colectivista distópico (embora houvesse muita gente que estava convencida disso). A verdade é que os nossos contemporâneos aderem a uma série de códigos morais universalizáveis, embora lhes dêem outros nomes.

Jeane Kirkpatrick concluía «A vontade de não acreditar» com uma observação importante: sejam quais forem as razões que presidem à vontade de não acreditar, não podemos limitar-nos a lavar as mãos do assunto e a permitir que os defensores de ideias erradas reclamem para si o monopólio da verdade. «A descrença nos dados [empíricos]», escrevia ela referindo-se à Guerra Fria, «é uma atitude disfuncional, que não corresponde aos padrões da história contemporânea, e que não é “proveitosa para a nossa vida”, ao contrário daquilo que [William] James afirmava que uma ideia verdadeira deve ser».

Em última análise, a apologia virá também deste facto: o fosso intelectual que separava os defensores e os detractores do comunismo na Guerra Fria e o fosso intelectual que separa actualmente os defensores e os detractores da revolução sexual têm outra característica em comum; em ambos os casos, havia muitos que, dum lado e doutro, desconfiavam de que a história já tinha resolvido a questão. E isto aplicava-se mesmo a importantes intelectuais anticomunistas da época, como Jean-François Revel, que iniciava uma obra de 1984, a que deu o arrepiante título de O fim das democracias, com uma frase igualmente arrepiante: «A democracia poderá não ter passado de um acidente da história, um breve parêntesis que está a fechar-se diante dos nossos olhos.»[16] Por seu turno, Whittaker Chambers abria a sua magistral autobiografia, Witness, com uma carta dirigida aos filhos, em que os punha em guarda contra um mundo «doente de morte»[17]; e, quando decidiu abandonar o comunismo, disse à mulher: «Estamos a trocar os vencedores pelos vencidos»[18]. Felizmente, Chambers – que era um homem muito especial e muito destemido – estava enganado neste aspecto, embora tivesse razão relativamente a muitos outros.

Em lugar do materialismo histórico daquela época, que tão imponente e implacável nos parecia na altura, os americanos confrontam-se hoje com outro possível veredicto da história: a ideia de que também a revolução sexual é uma força motriz que é impossível deter ou inverter. Mas a história não absolve as pessoas com essa facilidade; e mostra que a verdade empírica acaba por vir ao de cima, mesmo quando aqueles que são ameaçados por ela se mostram inabaláveis na negação dos factos, e mesmo quando aqueles que estão na posse dos mesmos factos desconfiam pessoalmente de que a máquina da história é imparável.

É por isso que é tão importante conhecer bem os factos, mesmo quando – ou melhor, especialmente quando – estamos em desvantagem numa proporção de mil para um. Quando, dentro de décadas ou de séculos, as pessoas analisarem este e outros debates de peso, a primeira coisa que vão querer saber é de que lado estavam a razão, os factos e a lógica – ou seja, de que lado estavam os que se mostravam dispostos a acreditar na verdade, apoiados nas investigações dos estudiosos cuja obra é um testemunho dessa verdade, quer o resto do mundo esteja disposto a acreditar nela, quer não.

 

 

[1] Veja-se por exemplo Linda Waite e Maggie Gallagher, The Case for Marriage: Why Married People Are Happier, Healthier, and Better Off Financially, New York, Doubleday, 2000; reimpr., New York, Broadway Books, 2001. Veja-se igualmente Claire M. Kamp Dush e Paul R. Amato, «Consequences of Relationship Status and Quality for Subjective Well-Being», Journal of Social and Personal Relationships 22 (Outubro de 2005), pp. 607–27

[2] Veja-se por exemplo Robert I. Lerman, «Impacts of Marital Status and Parental Presence on the Material Hardship of Families with Children», e «How Do Marriage, Cohabitation, and Single Parenthood Affect the Material Hardships of Families with Children?», ambos publicados pelo Departamento de Saúde dos Estados Unidos, 2002.

[3] Veja-se W. Bradford Wilcox and Steven L. Nock, «What’s Love Got to Do with It? Equality, Equity, Commitment, and Women’s Marital Quality», Social Forces 84, nº 3 (Março de 2006).

[4] H. Chun and I. Lee, «Why Do Married Men Earn More: Productivity or Marriage Selection?», Economic Inquiry 39, nº 2 (Abril de 2001), pp. 307–19.

[5] Veja-se, por exemplo, «Substance Use and Sexual Health among Teens and Young Adults in the U.S.», Folha de dados da Henry J. Kaiser Family Foundation, Fevereiro de 2002.

[6] Veja-se, por exemplo, Jessica Gavora, «Single Women as a Threat to Freedom», in Adam Bellow (org.), New Threats to Freedom (Conshohocken, Pa.,Templeton Press, 2010), pp. 56-66.

[7] Sara McLanahan and Gary Sandefur, Growing Up with a Single Parent: What Hurts,What Helps, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1994.

[8] Elizabeth Marquardt, Between Two Worlds: The Inner Lives of Children of Divorce, New York, Crown Books, 2005.

[9] Só para dar um exemplo repetidamente documentado, os filhos de mulheres que nunca se casaram têm mais probabilidades de ser suspensos na escola, de não passarem de classe, para além de terem problemas comportamentais. Veja-se por exemplo James Q. Wilson, «In Loco Parentis: Helping Children When Families Fail Them», The Brookings Review, Outono de 1993.

[10] Os adolescentes filhos de pais separados têm mais probabilidade de se suicidar e de ter problemas psicológicos do que os adolescentes que vivem com ambos os pais biológicos. Veja-se por exemplo David A. Brent et al., «Post-Traumatic Stress Disorder in Peers of Adolescent Suicide Victims: Predisposing Factors and Phenomenology», Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry 34 (1995).

[11] David Blankenhorn, Fatherless America: Confronting Our Most Urgent Social Problem, New York, Basic Books, 1995. Para as disparidades entre as famílias fundadas num homem e numa mulher casados um com o outro e as famílias fundadas num pai ou mãe solteira, veja-se também Kay Hymowitz, Marriage and Caste in America: Separate and Unequal Families in a Post-Marital Age, Lanham, Md.: Ivan R. Dee, 2006.

[12] Para uma análise da centralidade do tema da desunião familiar no rock e no rap contemporâneos, veja-se Mary Eberstadt, «Eminem is Right», Policy Review, nº 128 (Dezembro de 2004/Janeiro de 2005).

[13] Veja-se Gallagher e Waite, Case for Marriage.

[14] Veja-se ibid., especialmente os capítulos 4 a 9.

[15] People for Ethical Treatment of Animals, uma organização de defesa dos animais com recurso a métodos fortemente contestados (N. da T.).

[16] Jean-François Revel, How Democracies Perish, New York, Doubleday, 2004), p. 3.

[17] Whittaker Chambers, Witness, New York, Random House, 1952, p. 5.

[18] Ibid., p. 25.               


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