Eu, Cayetana (1.º capítulo)

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 I – RETRATO



Chamo­‑me Cayetana, Cayetana de Alba. Tenho mais meia dúzia de nomes e uns quantos títulos. Tem­‑se escrito com frequência que não há nobre nenhum do mundo que tenha mais títulos do que eu. Talvez, é possível que assim seja. Escrevam o que quiserem. Já se disseram tantas coisas sobre mim! Algumas – poucas – são verdadeiras; outras – muitas – são falsas; em muitos casos, são simples disparates.
De todos os nomes que os meus pais escolheram para mim – que são uns oito ou nove –, o de Cayetana é aquele de que mais gosto e o que sempre usei. Também gosto muito de Eugenia, nome que devo à imperatriz Eugenia de Montijo, minha tia­‑bisavó. Já não gosto tanto de Alfonsa, mas é um nome a que tenho afecto, porque me foi posto em homenagem ao meu padrinho, o rei Afonso XIII, de quem gostei muito e de quem conservo muito boas recordações. Relativamente aos meus títulos, fico­‑me pelo de XVIII duquesa de Alba. É um título que, ao longo de seiscentos anos, só foi usado por duas mulheres; as outras eram apenas duquesas consortes. A minha predecessora no título foi a XIII duquesa de Alba, uma mulher que muito admiro.
Inicio nestas páginas a tarefa de reavivar a memória. Quis assinar este livro com o nome de Cayetana Stuart y Silva, obviando o Fitz­‑James para encurtar. O meu pai, Jacobo Fitz­‑James Stuart y Falcó, foi o XVII duque de Alba e um grande homem. Eu nasci no Palácio de Liria, à 1,45 da madrugada de 28 de Março de 1926. Sei a hora exacta porque está escrita em vários documentos da Casa de Alba, em cujos arquivos se encontram igualmente as notícias da imprensa da época, anunciando o meu nascimento. Nessa noite de Março, o meu pai tinha convidado para o jantar três dos seus maiores amigos: o doutor Gregorio Marañon, que também era um escritor magnífico; o filósofo José Ortega y Gasset; e outro escritor, Ramón Pérez de Ayala. Hoje em dia, talvez pareça estranho que o meu pai tivesse convidados precisamente na noite em que a minha mãe, Maria do Rosario Silva e Gurtubay, se preparava para dar à luz. Presumo que quisesse distrair­‑se, deixar de pensar naquilo que estava a acontecer no quarto da mulher. Os tempos eram outros. Com certeza que a compostura teve influência na decisão de convidar os amigos nesse dia; o meu pai nunca se teria permitido andar a passear dum lado para o outro no quarto, aguardando o acontecimento, ou mostrar­‑se nervoso – apesar de eu ser a primeira filha e de ele já ser um homem maduro, quase com cinquenta anos. A minha mãe, pelo contrário, tinha apenas vinte e cinco. É natural que o pai preferisse discutir temas profundos com os amigos do que estar preocupado com o que se passava no quarto ao lado porque, não obstante a sua têmpera, não podia esquecer que, desde que se tinham casado, seis anos antes, a minha mãe já tinha sofrido dois abortos.
Contou­‑me o meu pai que estavam precisamente nos licores quando eu nasci. Tinham jantado no primeiro andar. Naquela altura, a disposição de Liria era ligeiramente diferente da actual. Como se sabe, o palácio foi bombardeado pelos nacionalistas durante a Guerra Civil, e depois completamente destruído por dentro pelos milicianos. Na noite em que eu vim ao mundo, os convidados do meu pai tinham ido de fraque, como era norma na época. Não me lembro de me dizerem sobre que tinham conversado, mas talvez tenha sido sobre política, porque a verdade é que tanto Pérez de Ayala, como Ortega y Gasset e o doutor Marañon eram mais críticos da monarquia do meu padrinho Afonso XIII que o meu pai, que era um homem totalmente leal ao rei – de quem, além do mais, era amigo. Há seis séculos que sempre assim foi: os Alba apoiam a monarquia.
Mas lembro­‑me de o meu pai me contar que, durante o jantar, o mordomo os informou de que a minha mãe tinha começado a ter as dores de parto. Tinha estado todo o dia mal disposta, pelo que ele não se admirou. Naturalmente, não ia mandar os convidados embora, além de que entre aqueles cavalheiros se encontrava o eminente doutor Marañon. Calculo que este facto lhe proporcionasse uma certa tranquilidade. O que havia ele de fazer? Naquela altura, os homens não iam ao quarto das mulheres durante os partos, de maneira que o meu pai e os amigos continuaram a jantar. Quando iam nos licores, o mordomo entrou na sala e anunciou que eu já tinha nascido: «É uma menina.» E o meu pai exclamou: «É uma menina? Pois ainda bem. Fico muito contente por ser uma menina!» Foi assim que o meu pai me contou, e foi assim que eu sempre recordei os factos. Nunca tive a menor razão para pensar o contrário, para pensar que ele teria preferido um rapaz, dada além disso a importância que ele teve na minha vida e eu na dele. E a educação que me deu! Educou­‑me com a mesma ou mais severidade que teria se eu fosse rapaz. Embora seja certo que a minha mãe e os restantes membros da família queriam um rapaz.
O doutor Marañon foi imediatamente ver a minha mãe. Sentia­‑se fraca, mas estava muito bem, e deu­‑lhe os parabéns. Também me examinou a mim, que estava a dormir no berço, no meio dos lençóis de linho com rendas que a minha mãe e a minha avó tinham mandado fazer muito antes. Era manifesto que o filho do duque de Alba e de sua mulher era uma criança muito desejada. Nunca ouvi da boca do meu pai a menor objecção a que eu fosse mulher, bem pelo contrário. E foram estas as circunstâncias em que nasci, num dia soalheiro de Primavera. Sou carneiro, portanto.
Não me lembro em que momento tomei consciência de que era a XVIII duquesa de Alba, a segunda mulher – depois da minha querida Teresa Cayetana, a do retrato de Goya – a ostentar o título. A verdade é que não tenho noção, e muitas foram as vezes que mo perguntaram ao longo da minha vida! A pessoa nasce com isto, não fica registado, não faz parte das minhas recordações, nem das primeiras, nem das segundas… nem das últimas.
Fui baptizada a 17 de Abril, no Palácio Real. Levaram­‑me de carruagem, como era costume na época. As mulas que puxavam a caleche iam muito bem ajaezadas. Eu ia embrulhada numas mantas lindas, que tinham bordado o A da Casa de Alba. Foram meus padrinhos o rei Afonso XIII e a rainha Vitória Eugenia – a rainha Ena –, que quiseram ter essa deferência para com a minha família. Contam que, nessa ocasião, foram buscar a pia baptismal de São Domingos de Gusmão, uma pia que só é utilizada nos baptis­mos dos reis e que se encontra no convento das freiras dominicanas da rua Claudio Coello, em Madrid. É um facto que foi posteriormente recordado, quando começaram a escrever sobre mim, mas nunca ouvi falar de tal coisa em minha casa. Devo dizer que os reis se comportaram como meus padrinhos nas ocasiões mais difíceis da minha vida, dando­‑me sempre provas de um enorme carinho.
Afonso XIII era um homem terno e amável. Em minha casa, era costume contar um episódio ocorrido no último Verão que ele passou em Santander. Estávamos num barco com o rei, suponho que a caminho de La Magdalena, o palácio onde eles passavam o Verão e onde nós íamos visitá­‑los. O meu pai ficava todos os anos instalado no mesmo quarto. Íamos a desembarcar, eu de mão dada com o meu padrinho. Devo ter ficado admirada por ver tanta gente no cais e exclamei em inglês: «They are waiting for us!», «Estão à nossa espera!» Devia ter­‑me sentido uma princesa, ali de mão dada com ele… Desatou toda a gente a rir, incluindo o rei. Falávamos muitas vezes em inglês, julgo que por deferência para com a rainha Ena, que era escocesa de nascimento e neta da rainha Vitória do Reino Unido.


OS BENDITOS TÍTULOS E AS PRIMEIRAS VIAGENS

Sempre me contaram que a minha mãe – que toda a gente tratava por Totó – era muito bonita, e essa foi uma das razões pelas quais o meu pai se apaixonou por ela. Era uma beleza morena, de cabelo ondulado e temperamento muito alegre. Eu herdei o ondulado do cabelo – mas não a cor –, uma característica que esteve na base de um sem­‑número de tensões com o meu pai, que queria que eu usasse o cabelo liso e cortado à pajem. O meu pai era vinte e dois anos mais velho que a minha mãe, e eu sempre achei que a alegria e a simpatia que toda a gente lhe atribui seriam para ele uma injecção de vitalidade. Também herdei dela uma grande parte dessa vitalidade.
Não quero falar muito dos títulos de nobreza, mas gostava de dizer que a minha mãe era filha dos duques de Híjar, um ducado que remonta a Jaime, o Conquistador. Quando se casou com o meu pai, trouxe vários títulos para a Casa de Alba, entre os quais o marquesado de San Vicente del Barco e o ducado de Aliaga.
O casamento dos meus pais teve lugar a 7 de Outubro de 1920, na embaixada de Espanha em Londres. O meu pai era profundamente anglófono, não só em termos emocionais, mas também pela educação que tinha tido. Sentia­‑se tão britânico como eu me sinto sevilhana, uma paixão que marcou a minha infância e a minha adolescência. Este afecto pelos britânicos é parcialmente justificado pelo nosso primeiro apelido, Fitz­‑James Stuart, que significa, à letra, «descendente de James Stuart». Este apelido entrou para a Casa de Alba quando Maria del Pilar Teresa Cayetana de Silva y Álvarez de Toledo – a XIII duquesa de Alba por quem tenho tanta admiração, que foi tão incompreendida e vilipendiada na história, e nego desde já que tenha sido amante de Goya, uma das muitas mentiras que se contam sobre ela – morreu em 1802, aos quarenta anos, sem filhos nem irmãos. O título de duque de Alba passou então para uma irmã do avô de Maria Teresa, que se tinha casado com Jacob Fitz­‑James y Colón de Portugal, III duque de Ber­wick. Acontece que ele era descendente de outro duque de Berwick, que os Alba tinham trazido para Espanha, a fim de defender o trono de Felipe V. A vitória das tropas do duque na batalha de Almansa, em 1707, durante a Guerra da Sucessão espanhola, proporcionou a chegada ao nosso país da dinastia dos Borbones.
Quem me conheça, por pouco que seja, sabe que os Alba – primeiro o meu pai e agora eu – não damos grande importância à questão dos benditos títulos. Mais ainda, ao longo da minha vida confessei muitas vezes que as questões da nobreza e dos títulos não me interessam grandemente. Trago o assunto à colação e refiro o passado para explicar um pouco o amor que o meu pai tinha a Inglaterra. Ao fim e ao cabo, trata­‑se de um país que faz parte da história desta Casa. E quero acrescentar que o parentesco, tantas vezes referido, entre Winston Churchill e o meu pai – que, além de amigos, eram primos – também provém do ducado de Berwick.
O meu pai frequentou a cultura britânica desde muito jovem. Estudou num colégio jesuíta, o Beaumont College, no condado de Berkshire, e foi aí que começou a tomar forma o seu estilo de vida. A seguir, empenhou­‑se em acti­var as relações entre Espanha e Inglaterra, a ponto de a Comissão Hispano­‑Inglesa, que tanta importância teve durante a primeira parte do século e que foi uma peça fundamental na influência dos intelectuais de toda a Europa que acorreram a Espanha, ter sido fundada no Palácio de Liria, na Primavera de 1923. Poucos saberão que o meu pai e o embaixador Esme Howard se esforçaram por reforçar esses vínculos. A comissão estava integrada nas actividades da Institución Libre de Enseñanza[*], onde o meu pai tinha muitos amigos. Creio que foi Jesús Aguirre, o meu segundo marido, que me recordou – ou me revelou, porque eu não me lembrava – que o meu pai entregava à Comissão Hispano­‑Inglesa o seu vencimento de senador, para ajudar a financiar as actividades da residência de estudantes. O pai era pouco ou nada dado a falar destas coisas.
A Comissão Hispano­‑Inglesa foi uma das iniciativas que mais prestígio e mais alegrias deram ao pai naquela altura. Cultivou as relações entre Espanha e Inglaterra com verdadeira paixão e a sua colaboração com personalidades fulcrais da vida intelectual espanhola deu frutos notáveis. Graças às suas diligências e às da própria Comissão, figuras como o economista Keynes – elemento de relevo do grupo de Bloomsbury e casado com uma bailarina famosa – e Howard Carter – o arqueólogo que descobriu o túmulo de Tutankhamon – vieram a Madrid proferir conferências na residência. Keynes passou pelo Palácio de Liria quando eu tinha apenas quatro anos; Carter já lá tinha estado em 1924, dois anos depois de ter descoberto o túmulo, numa altura em que eu ainda não existia – conheci­‑o mais tarde.


A DOENÇA DA MINHA MÃE

Quando olho para trás, a primeira coisa que me vem à memória não são situações muito felizes. A minha mãe está fechada no quarto, de cama. Também me lembro dela no jardim ou no campo, mas sempre deitada. Lembro­‑me de, em certa ocasião, ter entrado no quarto dela porque queria vê­‑la, e de ela ter imediatamente pegado no que eu julguei ser uma bolsa que tinha em cima da cama – foi certamente aquilo que tinha mais à mão – e ma ter atirado, ordenando­‑me que saísse imediatamente do quarto. Recordo, ainda hoje, a minha perplexidade infantil. Depois, com o passar dos anos, explicaram­‑me que ela estava muito doente, e que eu não podia aproximar­‑me dela porque havia perigo de contágio. Custou­‑me perceber, porque era muito pequena, mas não tive outro remédio.
Passou muito tempo até eu compreender que ela estava tuberculosa, e nessa altura já a minha mãe tinha morrido. Foi azar: foi por poucos anos que não foi salva pela penicilina. Morreu em Janeiro de 1934, tinha eu sete anos. Foi uma morte inesperada. Tinha acabado de regressar do sanatório da Suíça onde passava grandes temporadas a tratar­‑se da doença, e estava bastante bem. Mas apanhou uma constipação que a fez piorar. O meu pai organizava viagens para me afastar daquele ambiente de doença, mas também porque ele, como grande político e amante da cultura que era, sempre deu muita importância a ver o mundo, a viajar e conhecer outras culturas, coisa que lhe parecia, em muitos casos, mais decisiva do que os estudos para a formação de uma pessoa. Alguns dos meus filhos – Jacobo, por exemplo – herdaram este espírito andarilho do avô e de mim.
Embora as recordações que tenho da infância tenham um matiz doloroso, não tenho grande consciência de ter sido uma criança melancólica, abatida por esta tristeza. Não me lembro nada do funeral da minha mãe, nem de se chorar em casa; suponho que as crianças se defendem dessas situações. Quando me apercebi de que tinha tido uma infância difícil e solitária, já era adulta e estava preparada para não me deixar levar pelas debilidades e as queixas. A despeito de me terem privado do contacto com a minha mãe, guardo dela gratas recordações. Principalmente o seu doce sorriso talvez porque, ferida de morte pela maldita doença, pusesse no rosto essa feição amável quando sabia que ia ver­‑me. É assim que a imagino actualmente e é assim que ela perdura na minha memória, talvez pelas fotografias que havia dela em Liria, ou por aquelas que vi posteriormente.
Noutra recordação de infância, vejo­‑me montada num pónei no jardim do Palácio de Liria, sob o olhar atento do meu pai ou de alguma preceptora; ou então de Paquita ou de Marciana, a governanta e a criada da minha mãe. Não me lembro de quem tomava conta de mim, mas lembro­‑me do pónei: estou a vê­‑lo com tanta nitidez como se o tivesse aqui ao meu lado. Gostava muito desse pónei, que se chamava Tommy, e tenho uma fotografia em que estou montada nele, a rir­‑me. Tinha um grande amor a esse animal.
Suponho que Tommy tenha sido um sinal da importância que os animais, em geral, teriam na minha vida; em especial os cavalos e os cães, mas sem esquecer os meus pássaros. Tommy tinha manchas brancas por trás das orelhas e outra no lombo, que lhe chegava até à cauda. E parecia que andava com umas peúgas até meia perna – ou meia pata, para ser mais precisa –, porque tinha as patas dianteiras brancas desde a úngula até à rótula. Também tínhamos muitos cães; há séculos que os Alba gostam de cães. Basta olhar para as pinturas e os retratos dos meus antepassados, em que abundam os cães e os cavalos – como acontece no caso do meu quadro preferido: o retrato da duquesa Cayetana, de Goya. O meu pai tinha sempre um cão com o nome dele, Jacobo, um indício do bom humor e da fleuma que o caracterizavam.
Julgo que foi no princípio dos anos 30 que começaram os meus passeios pela Casa de Campo, onde me deixavam brincar com as outras crianças. Logo a seguir, porém, puseram­‑me no colégio das irmãs da Assunção, onde aprendi a ler. Naquela altura, quem tratava de mim – para além do meu pai e da preceptora – era a minha avó materna, Rosario Híjar, a quem eu tratava por China, talvez por ser pequena e miudinha. Sempre achei que, quando morreu a minha mãe, que era filha única, a minha avó se encheu de medo de que me acontecesse alguma coisa. Preocupava­‑se muito comigo, tentando preencher o vazio que a filha tinha deixado, embora tal coisa fosse impossível.
Tinha tanto medo de que eu sofresse algum acidente, que às vezes me pressionava demasiado e eu sentia­‑me sufocar. Por exemplo, eu gostava imenso de trepar às árvores, mas a minha avó ficava doente com isso e ralhava comigo, embora o fizesse sempre com muita ternura. Foi para mim uma figura muito importante naqueles anos da infância, e talvez de uma certa solidão. Outra pessoa que se preocupava muito comigo era a tia Sol, irmã do meu pai, que era quase tão apaixonada por Sevilha como eu. A minha avó e a minha tia alegravam­‑me; vivi com elas até aos trinta anos, e ambas fizeram um pouco o papel de mães.

 

 

[*] Famosa experiência pedagógica fundada em 1876 em defesa da liberdade de ensino, e que teve grande repercussão na vida intelectual de Espanha (N. da T.).


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